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quinta-feira, 27 de setembro de 2012

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Trecho de "O Padre e a Bruxa" de Natalia de Oliveira




     "Ethan despertou devagar, enquanto abria os olhos, ainda estava naquele momento entre o sonho e o despertar, tudo meio que em névoa. Estava deitado, nu, numa cama que não era a sua. Então sua visão foi entrando em foco e o que viu foi o rosto adormecido de Samantha que ainda dormia de frente á ele, seu cabelo ruivo espalhado pelo travesseiro e uma expressão de paz tão linda que Ethan sorriu. Sentiu o perfume dos cabelos dela e a lembrança do que havia acontecido lhe ocorreu em uma fração de segundos, aquecendo seu coração e mais uma vez sorriu. Naquele momento, não pensava em seus deveres, nas consequências, na igreja, se era errado ou não, em nada, tudo o que queria era que aquele momento durasse para sempre. Sempre havia se perguntado como seria estar apaixonado por uma pessoa á ponto de arriscar tudo por ela, agora sabia.

Olhou para a janela que ficava perto da cama, estava escuro lá fora. Por quanto tempo dormira? Já devia ser muito tarde, mas para a sua surpresa não se importava. Sentia-se feliz como nunca se sentira na vida e nada mudaria isso.

Ele se aproximou mais de Samantha e beijou de leve seus lábios. Ela se mexeu um pouco, mas não acordou.

- Eu te amo. – ele sussurrou acariciando seu rosto e ela pareceu sorrir. Era verdade, naquele momento, oque Ethan sentiu pela primeira vez foi amor.

Ethan ouviu um barulho lá fora, como de farfalhar de folhas secas no chão. Ele virou-se em direção á porta por um instante intrigado, mas como o barulho não continuou ele voltou á sua posição inicial de frente para Samantha, ignorando o perigo que se anunciava. Demorou alguns minutos até que outra vez ouvisse o barulho, dessa vez mais perto da casa. Dava a impressão de que eram passos, não de uma, mas de varias pessoas. O som parecia rodear a casa, lentamente, como se estivessem tomando cuidado para não serem percebidos. Ethan intrigado colocou-se sentado e passou á prestar atenção e ficou olhando para a janela, quase soltando uma exclamação de susto ao ver um vulto passar por ela. Sentiu uma sensação terrível nesse momento, de que algo estava terrivelmente errado. O que estava acontecendo? Ele estendeu a mão para acordar Samantha, mas isso não foi preciso, pois nesse momento, a porta da cabana abriu-se com um estrondo, acordando Samantha com um pulo. Ella abraçou Ethan por trás, para também esconder sua nudez. Um homem grande, de jeans, boné e camisa de flanela entrou, ele havia aberto a porta no chute! Mais cinco homens entraram, todos no mesmo estilo grande e mal encarado, caipiras valentões, digamos assim. Não os conhecia, mas podia jurar que já os tinha visto nas “rodas de orações” de Annabeth, e agora eles estavam invadindo a cabana.

- Ele está com a bruxa! – um deles disse com uma voz vacilante, como se ele tivesse tomado um litro de energético Red Bull – Pega ele!

- Quem são vocês?! – Ethan protestou ao ver essa invasão. Como resposta, levou um tapa na cara.

Dois dos homens pegaram Ethan pelos braços, arrastando-o para fora da cama e da casa, como se ele fosse um animal, pouco se importando com o fato de que ele estava nu.

- Não! – ele protestou, tentando desvencilhar-se, debatendo-se como um gato, mas eles eram maiores e mais fortes. – Me solta! – ele continuava. – Samantha! – ele gritou, pois estava temendo oque aqueles homens pudessem fazer com ela, mas Samantha veio logo atrás, sendo arrastada do mesmo modo gentil por dois daqueles homens, estranhamente, um deles ainda ficou na cabana, aquele que havia arrombado a porta.

- Por favor! – Samantha gritava, chorava, eles a arrastavam pelos cabelos, e também não se importaram que ela também estivesse nua. – Não! – eles a jogaram no chão. Ethan podia ver seu olhar aterrorizado.

Os fanáticos os arrastaram até o gramado do lado de fora da cabana, onde muito mais gente esperava. Toda a congregação de Annabeth, aqueles fanáticos estavam ali, eram dezenas, com tochas, como um levante medieval, um comitê de linchamento.

- Não toquem nela! – ele gritou.

Os fanáticos que seguravam Ethan fizeram com que ele se ajoelhasse e começaram a investir socos contra sua face, e no terceiro soco, quando caiu ao chão, começaram á chutar seu estomago de forma violenta.

- Parem, meus irmãos. – ele ouviu uma voz calma dizer atrás dos agressores e eles realmente pararam. Era a voz de Annabeth que havia se aproximado enquanto os brutamontes espancavam Ethan. – Ele é inocente, foi corrompido pela bruxa.

Os agressores o levantaram para que ele olhasse para Annabeth. Ela estava com os cabelos um tanto emaranhados, seus olhos estavam arregalados e as pupilas dilatadas. Seu conjunto de linho lilás não combinava com a bolsa de couro marrom que trazia apertada embaixo do braço como se a bolsa fosse fugir dela. Finalmente havia acontecido, Ethan pensou, a loucura finalmente havia tomado conta de Annabeth. Não havia nenhum ser racional ali.

O homem que havia ficado na casa voltara agora, trazia duas peças de roupa, uma camisola branca de algodão que ele jogou na cara de Samantha que tremia compulsivamente e a calça jeans que Ethan usara aquela tarde, que por sua vez também foi jogada em sua cara.

- Cubram sua vergonha, pecadores. – Ela disse dando uns passos para trás.

Samantha olhou desesperada para Ethan. Ele retribuiu o olhar como que dissesse “Faça oque eles mandarem, eles são loucos, droga!”. Ambos se vestiram com as peças trazidas, no entanto continuavam sob o domínio dos agressores que os seguravam. O rosto de Ethan doía, bem como sua barriga e suas costas e manter-se ajoelhado era difícil.

- Aproveitou bem seus momentos de devassidão, padre? – Annabeth disse aproximando-se agora que eles não mostravam mais suas “vergonhas”.

- Você é louca! – ele disse com ódio.

- Louca? – ela fez uma cara de ironia. –Você dá as costas á Igreja para fornicar com aquela cadela e nós somos os loucos? - uma enxurrada de “Améns” se seguiram á essa frase. – Mas eu entendo, você foi corrompido, todos nós fomos, com palavras doces e olhos de serpente. – ela se aproximou dele e acariciou seu rosto, como faria com uma criança. – O momento da expiação chegou, e eu aposto que vocês não estavam esperando por isso.

- Se encostar em um fio de cabelo dela eu juro por Deus que. . .

- Oque? Jura o que? – ela riu – Você caiu em desgraça aos olhos Dele, Padre. – ela se virou para a multidão dizendo em alto e bom som – Estão vendo, meus irmãos, oque aquela maligna criatura fez?! – ela apontava para Ethan – Esse não era um rapaz qualquer, era um servo de Deus, puro, e ela o escolheu, ela o desvirtuou. Olhem para ele, – ela apontava – a arrogância e a luxuria o tornaram cego. Mas a culpa é dele?

- Não! – a multidão disse em coro.

- De quem é a culpa então, meus irmãos?

- É da bruxa! – responderam mais alto, levantando as tochas.

- Nós podemos deixar que essa cadela continue com o trabalho do Inimigo, que continue á nos afastar do caminho do Senhor?!

- Não!

- Não, não podemos. – Annabeth disse baixo.

Ela se aproximou de Ethan outra vez, com aquele olhar louco que ela tinha.

- Pelo menos nisso você foi muito útil, Padre O’connel. – ela abriu a bolsa que trazia apertada junto ao corpo e de lá tirou um livro. De começo, Ethan achou que fosse uma bíblia, mas percebeu que já tinha visto aquela capa antes.

- Meu Deus, não. . . – ele murmurou.

Ela levantou o livro alto e os detalhes em dourado na capa de couro cintilaram com as luzes das tochas e ouve uma ovação por parte da multidão. Era o “Martelo das bruxas”, o livro errado nas mãos erradas. Isso não podia estar acontecendo, como ela conseguiu o livro? Ele estava trancado em sua gaveta.

- Esse livro, irmãos, abriu os meus olhos.– ela disse com um sorriso macabro. – Obrigada, Padre, por ele. Ethan olhou para Samantha que o olhava com verdadeiro desespero. – Que tal começarmos com o básico? Amordacem-na e joguem-na no rio, se ela boiar, veremos o que faremos.

- Não! – Ethan gritou

Nesse momento, ele sentiu uma dor forte na parte de trás da cabeça, uma pancada, então caiu no chão e desmaiou. . ."

sábado, 22 de setembro de 2012

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"Sebastian" , capitulo II , por Natalia de Oliveira

Parte I
Capitulo II
"O que não mata deixa forte"
 

       Chandler estava tendo um pesadelo terrível que na verdade começara como um sonho normal. Sonhava que andava calmamente por um vasto campo.  Andava, andava, e cada vez mais o campo parecia se transformar num deserto, um lugar árido, seco.  Então, lá na frente vira uma coisa, algo que não sabia o que era, mas que deveria se aproximar e ver. Conforme foi andando, viu que três corvos rodeavam a coisa, pulavam sobre ela e a beliscavam com seus bicos finos e vorazes.

       Não podia se controlar, tinha que ver o que era, aproximou-se o bastante e percebeu que se tratava de um cadáver.  Estava de bruços e os corvos já haviam comido boa parte de suas costas. Notou então com surpresa que o homem morto usava as roupas de Kevin. Foi tomado por um medo que nunca havia sentido antes. Sabia oque tinha que fazer, mas tinha medo de descobrir que aquele cadáver descomposto fosse seu pai. Mas tinha que se certificar. Aproximou-se mais e ajoelhou-se ao lado do corpo, o odor de carne apodrecida era insuportável. Prendeu a respiração e com força virou o corpo para si e viu que era mesmo Kevin. Os olhos abertos totalmente brancos, a pele já azulada e ferimento á bala na testa não deixavam duvidas.

       - “Pai. . .” – chorava ao ver seu pai morto.

       - “Filho. . .” – disse Kevin de repente com voz cavernosa.

       Chandler largou o corpo que abraçava, caindo para trás sentado enquanto via Kevin erguer-se e avançar cambaleante em sua direção, enquanto tentava afastar-se daquela criatura ainda sentado e horrorizado.

       - “Olha pra mim, olha o que ele fez comigo.” – disse com uma voz cavernosa.

       - “Não!” – gritou fechando os olhos.

       - “Ele me matou, filho. Ele fez de mim comida para os vermes e isso não é nada legal. . .” – ele continuava, mas ai a voz mudou.

       - “Você se ferrou de vez, pirralho.” – Chandler ouviu uma voz diferente e abriu os olhos, via agora no lugar de seu pai, Robert, o assassino, com um sorriso zombeteiro.

       - “Cala a boca!” – gritou em resposta.

       - “Ah, espere para ver, sua vida vai ser um inferno, e está só começando.” – dizia rindo, mas rindo com vontade.

       Nesse momento Chandler acordou assustado e com uma baita dor de cabeça por causa da coronhada. Olhou em volta. Estava num tipo de contêiner e percebeu que estava em movimento. Talvez estivesse em um caminhão ou algo assim, também havia varias caixas de papelão á sua volta. Notou também e com surpresa que seus pés e suas mãos estavam amarrados com cordas. Ficou desesperado. Arrastou-se até oque poderia ser chamado de parede e começara a socar com força.

       - Ei, abram, me deixem sair! – gritou.

       Mas ninguém ouviria, decidiu parar, ficar quieto, poupar oxigênio em meio às caixas. Não sabia há quanto tempo estava ali desacordado nem quando parariam. Só então começou a entender tudo oque havia acontecido. Seu pai estava morto e ele, indo amarrado rumo a algum lugar desconhecido.

       Robert Murphy, Robert Murphy.

       O nome ecoava em sua cabeça, ele era o causador de todo esse mal. Aquele desgraçado matara seu pai sem piedade. Bem que Kevin havia o avisado que aquela família era do mal. Tiraram a única coisa que ele tinha na vida. Começara a chorar em desespero, isso não podia estar acontecendo. Sentia-se tão culpado agora, porque não se mexera antes? Poderia ter evitado tudo isso, quem sabe? Estava sozinho na vida.

       Neste momento o caminhão parara e as portas foram abertas, Chandler ficou apavorado e antes que percebesse, varias pessoas entravam dentro do contêiner. A luz que entrava fazia aquelas pessoas parecerem sombras e isso não ajudava. Como estava lá no fundo do contêiner, dois deles andaram até ele e o pegaram, arrastando-o para fora. Era de dia, embora o tempo estivesse chuvoso, a luminosidade fez seus olhos arderem. Começava a se molhar com a chuva e vários homens o rodeavam curiosos. Deu uma boa olhada no lugar e viu com espanto que se tratava de um Porto: navios, contêineres, caixas e mais caixas, empilhadeiras e o mar á sua frente. Mas por que raios estava num porto?

       - Olhe só para ele. – um dos homes disse, era moreno, usava um terno bom, destacando-se dos outros que usavam calça jeans rasgadas, e camisas sujas. Destacava-se também pelo sotaque estrangeiro. – É mesmo uma bela mercadoria, meu patrão vai gostar muito.

       - Oque? – Chandler perguntou. – Oque quer dizer?

       Todos os marinheiros que o rodeavam riram dele, não entendera exatamente o porquê, nem a razão de estarem rindo. O que estava acontecendo?

       - Coitadinho, deixa-me explicar: - o homem aproximou-se, abaixou-se e sussurrou em seu ouvido. – vamos fazer uma pequena viagem, você e eu.

       - Como assim?

       - Vai saber quando chegar lá.

       O homem fez um sinal com a cabeça e dois daqueles marinheiros pegaram Chandler pelo braço e o arrastaram até uma caixa de madeira que estava aberta, era grande, e notara que caberia lá dentro.

       - Não! – começara a gritar quando percebeu que iam coloca-lo na caixa.

       Embora o garoto esperneasse, os dois homens eram bem mais fortes do que ele e o colocaram com facilidade na caixa, então viu aquele estrangeiro se aproximar segurando uma sacola.

       - Para o caso de sentir fome. – disse ao jogar uma sacola dentro da caixa, antes de colocarem a tampa e a lacrarem.

       Chandler gritava e se debatia na caixa, inutilmente, porque estavam fazendo isso com ele? Cada vez mais se sentia impotente frente aos acontecimentos não sabia oque estava por vir, tudo oque desejava era que acordasse e visse que isso tudo era um pesadelo.

       Sentiu que a caixa era levantada e que se movia e pôde perceber oque acontecia. Colocaram a caixa em outro contêiner e o embarcaram em um navio que descobriria mais tarde, em direção á Europa.

       Por muito tempo ainda Chandler gritara e debatera-se dentro da caixa de madeira, tanto que ficara exausto e tudo o que conseguira foram seus cotovelos arranhados. Entendera que esse seria seu destino, ninguém iria ajudá-lo, não mais. Seja lá oque fosse acontecer daqui para frente, estaria sozinho e teria de se acostumar com isso. Realmente sua jornada de sofrimento estava apenas começando.

       Chandler não sabia quanto tempo exatamente se passara desde que fora trancado dentro da caixa, pareciam dias. Ele estava com fome, e aquela sacola que aquele estrangeiro jogara continha apenas dois pães velhos. Estava dolorido, estava com sede, e estava sem esperança. E quando achou que eles haviam esquecido ele naquele contêiner, ouvira um som que se assemelhava ao de portas sendo aberta, então a caixa que ele estava foi bruscamente levantada e percebeu que era carregado para fora do contêiner. Era dia, viu pelas frestas os raios do sol. A caixa fora colocada no chão e com golpes bruscos e rápidos a caixa fora aberta.

       O garoto de inicio cobriu os olhos com as mãos por causa da claridade e braços fortes o arrancaram da caixa. Ele ainda estava amarrado e com fome, mal conseguia manter-se em pé, só conseguia ouvir vozes em uma língua diferente. Assim que seus olhos acostumaram com a claridade pôde ver que estava em uma espécie de galpão onde havia vários contêineres e vários homens que o olhavam, inclusive aquele estrangeiro do porto, mas não era esse que lhe chamava a atenção.

       Havia um grupo de homens mais á frente, próximos a uma limusine. Usavam ternos, casacos, fazia muito frio. Notou certas saliências que sabia serem armas. Em sua maioria pareciam capangas, como Ike e os outros lacaios de Robert, todos menos um. Este usava: um casaco, óculos escuros, era moreno como os outros e ao vê-lo lembrou-se imediatamente de seu algoz, pois tinha o ar arrogante e uma presença que os demais pareciam respeitar, e um jeito até intimidador, como gente dessa espécie tem. Não gostou dele logo de cara e para seu desespero estava sendo conduzido até ele. O homem tirou os óculos e revelara um par de olhos de um tom que nunca havia visto antes, um castanho avermelhado muito exótico e profundo. Ele aproximou-se com um sorriso estranho.

       - Bem vindo á Itália. – disse o homem.

       - Itália? – Chandler sussurrou para si mesmo. Não podia estar tão longe assim de casa.

       Olhou em volta, tanta gente diferente, um lugar desconhecido e desconfortável, queria fugir, queria voltar e não tinha como, estava em outro continente. Sentiu-se muito mal, tudo mudara rápido demais para que pudesse assimilar. Enquanto ainda tentava digerir essa notícia, aquele homem começara a rodeá-lo analisando-o com um olhar atento, então se deteve á sua frente e tomara seu rosto numa das mãos.

       - Belo menino. - disse ele – É mesmo muito belo.

       - Quero voltar pra minha casa agora!- protestou afastando-se.

       - Ah, é americano, já tinha me esquecido. – aproximava-se.

       - Quero voltar! – insistia.

       - Mas já? Por quê? Não gosta da Itália? – disse cínico. – Mas antes de continuarmos, permita-me. . .

       Tirou da cintura, do lado das costas, escondido pelo casaco, um punhal. Era de prata, com pedras vermelha incrustradas na base, uma peça linda. Chandler quis afastar-se, mas os brutamontes que o trouxeram o seguravam. O levaram até a Itália para ser morto? Começara a tremer.

       - Está com medo? – riu.

       Aproximou-se mais e então, quando o garoto já se preparava para o ataque o homem inesperadamente pegara suas mãos que estavam amarradas e com rapidez cortara as cordas que o prendiam, repetindo o ato nos pés, deixando Chandler surpreso.

       - Entre no carro. – disse colocando o punhal onde estava antes.

       - Como sabe que eu não vou fugir? – enfrentou.

       - Não vai. – indicou com o dedo os homens atrás dele.

       Engoliu em seco, não tinha escolha. Entrou no banco de trás e aquele homem também. O carro deu a partida e puseram-se a andar pelas ruas de Nápoles. Sentaram-se um de frente para o outro. Chandler não gostava do modo como ele o olhava, como se fosse um presente que havia ganhado, tentava desviar o olhar daqueles olhos avermelhados, mas eram tão penetrantes.

       - Será que agora você pode me explicar o que está acontecendo?

       - Calma, nem ao menos nos conhecemos ainda. - disse educado. – Permita-me, sou Don Giovanni Ballester. – era distinto, refinado e sedutor. – E você?

       - Chandler Desmont. – respondeu rápido.

       - Não há motivo para grosseria, meu caro Desmont. Fez boa viagem?

       - Se você acha passar fome dentro de um caixão desconfortável “boa viagem”, então é, eu fiz uma boa viagem.

       Don Giovanni riu com gosto.

       - Desculpe o transtorno, mas entenda, os policias do porto estão começando a ficar rigorosos em relação á certos tipos de mercadoria importada. . .

       - Eu não sou uma mercadoria. – o interrompeu.

       - Ah, é sim. – Don Giovanni o encarou. – Eu o comprei.

       Chandler ficou paralisado. Robert Murphy o vendera como se fosse um animal, ficou zonzo, isso não estava acontecendo.

       - Isso não é verdade. . . – sussurrou, não queria acreditar.

       - É sim. Agora é meu, caro Desmont, como outros antes de você.

       - Há outros? – perguntou ainda sob o efeito do choque.

       - Tenho vinte garotos que eu comprei, assim como você, meninos e meninas. – dizia calmo vendo a expressão horrorizada de Chandler. – Surpreso? – deu de ombros – Vai se acostumar com a ideia, todos se acostumam, mais cedo ou mais tarde. – a calma dele era incrível. – Até eu.

       - Até você?

       - Sim, eu também fui vendido quando tinha sua idade. – riu – Como vê, o que não mata deixa forte, e é bom não morrer, querido. Pelo menos, não até me dar algum lucro.

       Não acreditava a que ponto chegara. O que seria de sua vida agora? Ficou desesperado, olhou para os lados, estava preso, mais preso do que estava quando estava preso dentro da caixa. Don Giovanni era mais do que perigoso, era poderoso. Fora vendido a um homem que já tinha vinte como ele, começara a chorar desesperadamente com o futuro que se anunciava.

       - Não chore. – tirou do casaco um lenço branco e aproximou-se limpando o rosto do garoto. – Nunca deixe que pensem que pode ser derrubado, demonstre sempre fortaleza, e tudo ficará bem.

       Don Giovanni o olhava com ternura agora e esse foi o primeiro de vários conselhos que ele lhe deu. Naquele momento não pode deixar de aceitar que aquele homem era estranhamente acolhedor, tentando consolá-lo com aquelas palavras. Ele estava certo, já que não havia saída, tentaria ser forte para aguentar o que a vida lhe reservasse. Foi ali, naquele carro, ao ouvir as palavras de se “dono”, que jurou para si mesmo, pelo sangue derramado de seu pai, que um dia iria olhar para o cadáver ensanguentado de Robert Murphy e iria sorrir.

       Depois de terem passado num restaurante (Chandler estava quase desmaiando de fome) a limusine seguiu para o centro da cidade, lugar de casarões enormes, lindos, mas para Chandler não significavam nada, estava meio que entorpecido ainda pela nova realidade. O carro parou em frente a um desses casarões. Era branco, estilo bem antigo, um belo jardim na entrada, uma casa magnífica, cara, pelo visto. Ao saírem do carro, Chandler ficara admirado com a imponência da construção e teve uma ideia da situação financeira de Don Giovanni. Os seguranças abriram os portões e entraram pelo jardim. Já era de noite e era uma visão um tanto sombria estar ali á luz do luar.

       Entraram pela porta principal. O Hall era grande e bem decorado e a sala mais ainda, bem iluminada por um imponente lustre bem no centro. Tinha sofás brancos muito finos, vasos com flores na mesinha de centro e nas estantes. Tinha vários quadros nas paredes. Tinha que admitir: Don Giovanni tinha bom gosto.

       - Frequentemente dou festas aqui, como vê, é uma sala bonita. – disse ele – mas falamos disso depois.

       Os seguranças ficaram na sala enquanto Don Giovanni e Chandler seguiam até uma escada que levava até o segundo andar, juntamente com outro homem que não conhecia. Enquanto subiam, Chandler via na parede várias fotos emolduradas, de homens, mulheres, que pareciam ser amigos de seu dono, em festas em que estiveram, e de crianças, suas crianças compradas. Ao pensar nisso, que logo haveria uma foto sua naquela parede, Chandler sentiu seu estomago embrulhar. O que aconteceria com ele? Não queria nem pensar.

       Chegou ao andar de cima, um corredor com várias portas, o andar dos quartos. Foram caminhando por ele, a ansiedade matando o garoto. Entraram na quarta porta á esquerda. Era um quarto enorme com uma cama de casal com lençóis de tecido fino, móveis de boa qualidade, o armário no canto, o criado mudo ao lado da cama de casal, a escrivaninha, tudo parecia mais antigo que o dono, mas muito bem conservado. Don Giovanni já chegou tirando o casaco pesado, o paletó, jogando-os na cama, afrouxou a gravata. O outro homem permaneceu perto da porta que fechou ao entrar.

       - Este é meu quarto, o que acha? – sentou-se na cama.

       - Porque me trouxe aqui?

       - Para conversar. Sente-se. – deu umas palmadinhas na cama, convidando-o o sentar-se ao seu lado. – Venha. – disse sedutor.

       Como não queria mais problemas aceitou o chamado, ainda meio relutante sentou-se na cama ao lado de Don Giovanni.

       - Sei que não é burro, já deve ter percebido que sou muito rico. Tem ideia do que eu faço para viver? – disse começando á mexer nos cabelos de Chandler.

       - É um criminoso? – disse meio que dando de ombros.

       - Não, eu forneço o que os criminosos precisam. Armas, drogas, tanto faz. Sou influente, posso comprar qualquer coisa, desde as mais raras obras de arte que você viu lá embaixo, até seres humanos, como você. – dizia frio, o que feriu profundamente Chandler.

       - Quanto pagou por mim? - disse com a voz fraca.

       - Não costumo falar disso com minhas crianças. . .

       - Eu não sou a receita federal. – disse ríspido – Embora eu tenha certeza que você não declara esse tipo de bem.

       Don Giovanni espantou-se por um momento com o atrevimento de Chandler, porém com um sorriso disse:

       - Trinta mil dólares americanos.

       Chandler ficara chocado com a resposta. Trinta mil era seu preço afinal.

       - Você foi o meu garoto mais caro. Mas vendo esses olhos verdes que você tem, acho que o investimento valeu a pena. – disse satisfeito pelo bom negócio feito.

       O garoto continuava calado, atordoado com as palavras de Don Giovanni. Robert Murphy havia matado seu pai e ainda ganhara trinta mil vendendo-o. Isso era demais para ele, tudo parecia um terrível pesadelo, queria acordar.

       - Oque foi? – perguntou Don Giovanni, notando o abalo que causara no garoto.

       - Isso não é justo. – sussurrou para si mesmo, mas alto o suficiente para que Don Giovanni ouvisse.

       - O que não é justo?

       - Tudo oque esta acontecendo comigo. – começou a chorar.

       - Ah, você devia viver num mundo tão idealizado, tão superprotegido, quase num sonho. Mas agora é hora de acordar para a realidade, queridinho, aquele mundo bonito das historias que seu pai contava não existe. Ele é feio, é cruel, para se viver nele é difícil, ninguém mais vai ajudar você. É hora de aprender a se virar sozinho e de ser um pouco cruel, como eu. – disse sério. – E a primeira lição é: “não confie em ninguém além se si mesmo.”.

       Ficara em silêncio analisando essas palavras. O mundo era horrível, lembrou-se que tudo isso estava acontecendo por culpa de Robert, aquele filho da mãe.

       De repente Don Giovanni levantara-se e pusera-se a andar pelo quarto.

       - Agora tem o seu presente de boas vindas. É um que dei a cada um dos garotos que comprei. – sorria – Já esteve na Canadá? Claro que não, algumas, partes são tão frias que não se pode andar sem treno, puxado por cães treinados, que tem sua própria hierarquia. De qualquer forma, quando o dono compra um cão novo, ele dá-lhe uma surra daquelas, para que ele saiba quem é o líder, para que não se esqueça de nunca quem manda.

       Chandler começou a tremer, levantou-se devagar da cama, olhava para Don Giovanni com uma expressão assustada.

       - Vicenzo, - dirigiu-se ao homem parado ao lado da porta que havia ficado quieto até agora. – mostra-lhe quem manda. - disse ao homem antes de sair pela porta, deixando os dois sozinhos.

 

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

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"O Verme do cíume" 1º capitulo, por Natalia de Oliveira

  " O verme do cíume"
 
capitulo I


    "Mil novecentos e cinquenta e quatro foi o ano em que tudo aconteceu. Era outono, fim de outubro, me lembro que as arvores tinham suas folhas amareladas e avermelhas e varias jaziam no gramado da praça perto de minha casa, no sul de Londres. Mudei-me para lá vindo de Cambridge a fim de me livrar de problemas pessoais que não acho relevante citar por não fazerem parte de minha história. Consegui encontrar um bairro tranquilo para morar, eu era advogado de causas civis e tudo o que eu queria era um lugar tranquilo onde pudesse descansar nas horas de folga e me dedicar á minha real paixão, a escrita. No bairro Winston todos eram muito discretos.

     Minha casa era na realidade o segundo andar da casa de uma senhora, Sra. Talbot. Ela era uma senhora em seus sessenta anos de idade, com seu cabelo branco preso em um coque bem ultrapassado, seu vestido azul escuro de gola alta e um xale de tricô feito por ela mesma. Quando seus filhos se casaram e seu marido morrera, não havendo razão para manter uma casa tão grande para uma velha senhora sozinha, ela reformou a casa, separando totalmente o primeiro andar do segundo andar e o colocara para alugar. No vestíbulo, havia a porta que levava á parte dela da casa, com uma aldrava de cobre um pouco enferrujada e logo á frente, uma escadaria que tinha quinze degraus, e que terminava em outra porta, minha parte da casa. Havia uma sala que eu havia transformado em escritório, uma cozinha, um quarto de dormir e um banheiro e para mim, era mais do que suficiente. Não tinha planos de formar família nenhuma para precisar de mais do que isso.

     Meu convívio com a Sra. Talbot era muito bom, quando digo isso, quero dizer que ela não bisbilhotava minha vida, o motivo disso era que ela havia caído da escada anos atrás e quebrara a perna em vários lugares, ou seja, ela nunca subiria a escada outra vez pelo motivo que fosse. O único contato que tínhamos era duas vezes por mês, quando eu batia á sua porta para pagar o aluguel. Com um sorriso satisfeito ela atendia a porta, mancando com sua bengala de madeira, recebia o dinheiro, fazia algum gracejo sobre o tempo ou qualquer outro assunto ridículo e se trancava outra vez, só para repetir o ritual dali quinze dias.

     Ela também não tinha o que reclamar de mim enquanto inquilino, todos os dias eu pegava o ônibus até o centro de Londres onde ficava o escritório de advocacia para o qual eu trabalhava. Saia cedo e voltava tarde, mas sempre em silêncio e evitava ao máximo fazer qualquer barulho que incomodasse a velha senhora no andar de baixo e foi assim que vivi os primeiros meses em minha nova casa em Londres.

     Serei franco com vocês, advocacia não era a profissão que eu havia escolhido para mim, era na realidade imposição de meu falecido pai, também advogado, que queria que o único filho seguisse seus passos. Não o culpo. Mas meu sonho era me tornar um escritor. A calma do bairro Winston fora fator determinante para a escolha de minha moradia, pois eu queria escrever com calma meu contos e reflexões sobre o mundo.

     Os londrinos eram tão interessantes, tão calados, sempre fazendo tudo certo, como se tentassem compensar alguma coisa, como se cada um tivesse um mistério por trás da mascara de bons modos e isso aguçava minha infantil curiosidade sobre suas vidas e o que escondiam.

     Sentava-me num banco na praça perto de casa, as vezes, e observava as pessoas do bairro, as famílias deixando suas casas para uma tarde de lazer ou um piquenique sob o sol de domingo. Levava comigo um caderno de anotações e uma caneta e punha-me á divagar sobre quem eram aquelas pessoas e oque poderiam ter de interessante e fosse digno de nota. Mas em sua maioria, eram vazios, previsíveis, normais demais. Eu estava em busca de algo novo e diferente, algo do qual eu não desistisse nas primeiras paginas, algo pelo qual eu me apaixonasse.

     Mas não foi num domingo de sol familiar que me apaixonei.

     Era sexta feira, fim de tarde. Por algum motivo, não me lembro qual, não fui ao trabalho naquele dia, e ao fim da tarde resolvi ir á praça com meu caderno e minha caneta em busca de algo novo, esperando ter sorte, mesmo com pouca gente para observar.

     Mas quem eu era?” me peguei pensando. Um homem de quase trinta anos, olhos azuis, cabelos negros, alto e de bom porte, digamos assim. Mas não era esse exterior que tirava meu sono, era o meu interior. Oque eu estava fazendo, observando as pessoas como se fossem adúlteros e eu um detetive de quinta categoria, invadindo sua privacidade á distancia. Senti-me um voyeur, um tarado por assim dizer. As vezes senti-me assim, e buscava me refrear, mas sempre acabava voltando para o banco da praça com o caderno e minhas divagações. Aquele foi meu ultimo dia de voyeurismo na praça.

     Observava três crianças que brincavam de pular corda no pavimento perto de mim: uma menina de longas tranças negras com um vestidinho azul escuro numa das pontas da corda; na outra ponta, um menino de cabelos castanhos claros e sardento, usava calça curta preta, uma camisa branca e suspensórios; e a que mais me chamou a atenção, um menininha loira de cabelos cacheados cheios, usando um vestidinho branco, linda.

     Por um momento senti-me horrorizado com um pensamento que me abateu de repente, sobre o que poderia acontecer se em meu lugar estivesse um tarado? Quieto, espreitando crianças inocentes que brincavam despreocupadas na praça. Eu conseguia imaginá-lo ali, sentado exatamente onde eu estava, observando-as com um meio sorriso hediondo. Tudo o que ele teria que fazer seria apenas chama-las. Provavelmente escolheria a loira.

     Comecei a me perguntar como Deus permitia que tão vil criatura caminhasse sobre a terra, alguém que fosse capaz de fazer tamanha maldade contra um serzinho tão pequeno e indefeso? Compreendi então que isso não podia ser obra de Deus, mas sim, do demônio, esse sim, que era o causador de todo mal, e das guerras, e da fome. Não Deus, por que ele nos dera o maior dos dons, o de escolher que caminho seguir. O livre arbitro nos fora concedido por Ele, e se a guerra existe, não é sua culpa, mas nossa. Nossas escolhas erradas acabam por fazer de nós soldados.

     Então, para tirar-me de meu devaneio, um casal sentou-se num banco ao lado do meu. Minha vida não teria se modificado tanto se eu não tivesse ido á praça aquele dia, dia esse que vou amar e amaldiçoar enquanto eu viver.

     Era um casal silencioso. O homem era um tipo bem comum, cabelo castanho, alto, usava um terno aparentemente caro e muito bem ajustado escuro e um chapéu. Lia o jornal em suas mãos atentamente. Como eu disse, era um tipo bem comum, não teria chamado minha atenção por mais de dois segundos se não fosse a mulher ao seu lado.

     A mulher, ah, a mulher. Em pensar que eu já desejei nunca ter posto meu olhos nela. Era ruiva, sardenta, usava um vestido verde embaixo do casaco preto. Usava um pequeno chapéu, verde também, e pode ver seu olhos, e eram olhos tristes.

     Não sei explicar o que aconteceu comigo quando eu a vi. Ela emanava infelicidade. Não olhava para o provável marido, lia um livro, ou fingia que lia, pois durante todo o tempo em que a observei, ela não mudou de pagina, nenhuma vez. Seus olhos de repente desviavam do livro-enfeite e se perdiam num vazio. Ela respirava fundo e se forçava e ler de novo a mesma pagina. Era visível que havia um distanciamento entre os dois. Quem não os tivesse visto chegarem juntos, poderia jurar que eram estranhos, não se falavam.

     Não consegui desviar o olhar daquela mulher. Sua pele branca, seu olhar triste, era como uma vela se apagando. E sua tentativa desesperada de fingir seja lá o que fosse me atraíra a atenção e não seria fácil deixar para lá. Meu coração bateu descompassado, por quê? Por um momento me pareceu que eu a conhecia, mas de onde? Gostei dela, queria ajuda-la de alguma, era obvio que sofria. E num momento que pareceu fora da realidade, seus olhos encontraram os meus. Sei que deveria ter desviado olhar, como qualquer um faria numa situação dessas, mas não pude, seu olhar me enfeitiçou. Seus olhos verdes faiscantes me arrebataram e daquele momento em diante eu soube que jamais seria livre outra vez. Olhava em meus olhos e parecia que iria chorar, então virou o rosto para o livro, quebrando aquele momento. Por que senti tudo isso por ela, uma mulher que eu nunca havia visto na vida? Achoo que essa sim, fora uma obra de Deus.

     Continuei á olhar para ela na esperança de que ela voltasse á olhar para mim para continuarmos com esse flerte ao acaso, mas ela não se moveu até que depois de alguns minutos, o homem dobrasse o jornal e falasse algo em seu ouvido. Ela fechou o livro, colocou dentro de sua bolsa e levantou-se junto com o homem. Deixando-me sozinho com meu desejo, eles se afastaram, caminhando para a rua e de lá seguiram alguns passos, desaparecendo conforme iam se afastando.

     No caminho para minha casa, fiquei pensando nela, á noite quando tentava dormir ela estava em meus pensamentos e quando finalmente consegui dormir, foi com ela que sonhei. Em meu sonho, ela estava acorrentada e implorava para que eu a salvasse. Aquele homem ria, ria porque a tinha totalmente, só para ele. Sonhos são estranhos, mas não tão estranhos quanto as pessoas que sonham.

     Fiquei atordoado. Nunca em minha vida tinha sentido tamanha empatia por uma pessoa totalmente estranha. Aquele olhar melancólico fora para mim como um pedido de ajuda, mas como eu saberia? Talvez nunca mais a visse novamente. E é ai que eu digo que nada acontece por acaso, tudo tem um motivo de ser e o destino, travesso, não tardaria por colocar-me outra vez em seu caminho. Desde aquele dia comecei a sentir um vazio, algo me faltava. Mais tarde eu descobriria que ela havia levado uma parte de mim quando se fora e que eu só estaria inteiro de novo quando a tivesse."

    

domingo, 16 de setembro de 2012

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"Maldita bonequinha de porcelana", de Natalia de Oliveira


Maldita bonequinha de porcelana
 

     "- Jules! Jules! – a voz de Megan ecoava pelos corredores da imensa casa, seguida de um acesso de tosse, como sempre.

     - Já vou, tia! – Jules respondeu gritando da cozinha no andar de baixo, estava muito atarefada preparando a refeição para sua tia.

     Jules era uma garota jovem de vinte e três anos, no auge da juventude, mas que estava perdendo toda essa fase desde que sua tia ficara doente á cinco anos e parara sua vida para cuidar dela.

     Megan era uma mulher vivida, com seus sessenta e poucos anos, de poucos amigos e muitos problemas, fã do cigarro desde os treze anos, o que lhe causara sua atual situação de insuficiência respiratória, e quando o problema se tornou serio o bastante para ficar presa á um cilindro de oxigênio, teve que chamar ajuda.

     Falemos claramente, Jules só cuidava da tia velha por que não havia outro parente vivo que o fizesse, e por esse motivo sentia-se presa á ela, assim como o cilindro. Seus pais haviam morrido num acidente na mesma época em que Megan ficara seriamente doente, então tudo isso acabara se tornando uma troca de favores, “Você cuida de mim, e eu deixo você morar aqui..”. Era mais ou menos assim.

     - Jules! – a voz estridente da velha ecoou mais uma vez.

     É, no começo pareceu boa ideia, ela teria um lugar pare ficar e ainda teria um dinheirinho por cuidar da tia velha, mas com o tempo foi percebendo que não seria assim tão fácil, na verdade, não fazia a mínima ideia de onde estava se metendo.

     A velha era louca! Quando surtava, ficava pior do que criança: não queria tomar os remédios, ficava chamando Jules por motivo nenhum no meio da noite, a comida estava insossa, o radio alto demais, o luz forte demais, tinha travesseiro de menos, e por ai vai. Era um inferno.

     Isso não era tudo, não, havia ainda sua sinistra e empoeirada coleção de bonecas de porcelana da era vitoriana, que ela não permitia que ninguém tocasse com as mãos sujas, em especial, uma bonequinha que ela insistia em manter no criado mudo, sua preferida. Tinha os cabelos avermelhados e grandes olhos cinza, usava um vestidinho lilás com babados brancos de renda, uma coisa pavorosa. Naquela época, os artesãos faziam as bonecas parecidas com sua donas, meninas ricas que pagava praticamente uma fortuna por uma boneca, e a antiga dona devia ter sido uma criaturinha esquisitinha, Jesus.

     A boneca em si era bem comum, o que chamava a atenção dela era sua expressão. Ao contrario das varias bonecas do recinto que tinham um sorrisinho afetado, a boneca do vestidinho lilás tinha uma expressão seria, não, vazia seria uma palavra melhor, com seus olhinhos olhando para o vazio, seu nariz arrebitado e seus lábios rosados sem expressão alguma. Megan era obcecada por ela.

     - Jules! – Megan chamou outra vez.

     - Já estou indo! – Jules respondeu alto e então falou baixo – Sua velha inútil e impaciente, já vou levar sua sopa, espero que se afogue nela.

     A garota arrumou a sopa na bandeja que usualmente levava ao quarto de Megan todos os dias e quando pegou a bandeja nas mãos um pensamento lhe ocorreu: Odiava Megan, simplesmente isso, odiava Megan, odiava que ela estivesse atravancando sua vida, odiava sua coleção de bonecas, sua voz, seu cheiro, odiava ela.

     Subiu a escada que levava ao segundo andar da casa, o andar dos quartos, carregando a bandeja com o almoço, e conforme aproximava-se do quarto, sentia o cheiro dos remédios invadindo o ambiente, aquele cheiro enjoativo de hospital.

     A porta estava aberta e Jules entrou direto só para se deparar com aquela imagem tão familiar: uma cama de hospital, o cilindro de oxigênio ao lado da cama a mesinha de cabeceira com os vários remédios e claro, a bonequinha de porcelana também estava lá.

     Megan estava sentada na cama, com seu cabelo grisalho arrepiado, suas olheiras profundas em torno dos olhos e sua costumeira palidez.  O tubo de oxigênio preso em seu nariz.

     - Finalmente, mais um pouco e isso não seria mais um almoço, seria um jantar. – disse com sua boca enrugada e banguela.

     Jules ajeitou a bandeja no suporte ao lado da cama e o empurrou em direção á cama de forma que se encaixasse. Enquanto Megan se alimentava, Jules sentou-se na poltrona ao lado da cama, esperando que ela terminasse e também, caso ela se engasgasse estaria ali para socorrê-la.

     Enquanto Jules esperava sua mente vagou. Pensou que Megan era uma pessoa ruim, que tratava mal a única pessoa que ela tinha, isso não era normal. Pensava se ela não tinha medo de terminar seus dias sozinha. Não, claro que não, Jules estaria lá, limpando sua baba até o ultimo momento.

     “. . . até o ultimo momento. . .”, essa frase ecoava em sua mente, e de repente teve consciência de que talvez isso demorasse muito, muito mesmo. Começou a imaginar quanto tempo mais Megan viveria daquele jeito, quem sabe por anos, sugando sua juventude como uma vampira. Haveria alguma diferença? Alguém poderia dizer com certeza qual das duas estava agonizando em um mar de sofrimento?

     - Nunca vi comida mais insossa. – Megan afastou o prato violentamente fazendo um pouco da sopa derramar no lençol que, adivinhe só, Jules teria que lavar.

     Como sempre, Jules se segurou, fechou os olhos e respirou fundo.

     - O medico disse que pelo seu problema de pressão alta, você teria que diminuir o sal.

     - Se eu quisesse comer comida de hospital eu estaria em um e não precisaria de você, sua inútil. – disse mais ríspida.

     Outra vez Jules se segurou, essa era sua vida: ouvir essas barbaridades calada só pelo fato de morar de favor naquela casa. Era cada humilhação que ás vezes sentia vontade de. . .

     Respirou fundo e olhou em seu relógio de pulso, eram uma e meia da tarde, hora dos remédios de Megan. Jules levantou-se da poltrona, retirou a bandeja e o suporte, encostando-os na parede. Foi em direção á gaveta dos remédios mais fortes, pegou-os e levou até a cômoda, do outro lado do quarto para preparar a medicação. Naquele momento, ela tinha que tomar três comprimidos e uma injeção de um remédio que á muito havia desistido de pronunciar o nome. Primeiro deu á Megan os comprimidos que ela tomou com uma careta, mas tomou, então Jules voltou á cômoda para preparar a injeção.

     “Eu odeio essa velha!” Jules gritava dentro de si. Por quanto tempo mais aguentaria isso? Olhou para a seringa lacrada no pacotinho e de repente um pensamento a assaltou. Lembrou-se de certa vez ter assistido um documentário, “Os crimes quase perfeitos”, sobre crimes que teriam passado batido pelas autoridades se apenas um detalhe não tivesse dado errado e lembrou-se de um em particular, um homem que matara a esposa com uma injeção de ar, sim, uma injeção de ar. Na época se perguntou como que uma injeção de ar podia matar, e o especialista do documentário disse que realmente teria sido um crime perfeito, se o assassino não tivesse confessado, pois é limpo, fácil, não deixa rastro químico e no máximo, a necropsia diria que fora um ataque do coração. A arma é facilmente descartada, realmente, um crime perfeito.

     E se Jules fizesse isso? Como o perito disse, era limpo, seu lixo estava cheia de seringas com o mesmo DNA, uma a mais, uma a menos, não faria diferença. Megan era uma velha doente, presa a um cilindro de oxigênio que poderia muito bem morrer de “causas naturais” á qualquer momento.

     Tudo isso Jules pensou numa fração de segundo. Meu Deus, como pôde, era a vida de alguém, alguém miserável, mas era alguém.

     - Vamos logo, com isso. Nossa que garota lerda! Não faz nada direito, nada que presta.

     Decidiu-se. Abriu o pacotinho da seringa e puxou o ar. Sentiu uma espécie de embrulho no estomago, mas agora que tinha começado não iria parar. Se aproximou de Megan, aquela criatura deplorável com o cabelo grisalho arrepiado e sua cara feia de sempre. Megan se virou de lado, de costas para Jules para que ela aplicasse a injeção.

     - Vê se aplica isso direito, você esta aplicando uma injeção, não esta atirando dardos num elefante.

     - Pode deixar, não vai nem sentir.

     Tudo o que Jules pensava naquele momento era que aquela era sua única chance, que se não desse certo agora, nunca mais teria a coragem de fazer. Não era a razão que a motivava, era o impulso.

     Quando teve certeza de que pela posição ela não estava vendo a seringa, Jules aplicou a injeção vazia. Já estava feito, não tinha como voltar atrás e então tudo aconteceu.

     Megan se virou e olhou para Jules com uma expressão aterrorizada, e mesmo que ela não tivesse dito nada, Jules sabia que ela sabia o que tinha acontecido, então ela começou a se debater na cama, como se estivesse tento um ataque epilético, deixando Jules desesperada, isso não estava em seus planos. A garota virou-se de costas, não queria ver aquela cena horrível, tampou os ouvidos com as mãos e esperou um tempo, até que tomou coragem e virou-se para ver o que tinha acontecido.

     A velha estava estendida na cama, os lençóis estavam no chão de tanto que ela se debateu, os olhos abertos esbugalhados olhavam em direção á bonequinha de vestidinho lilás. Jules se aproximou e colocou dois dedos no pescoço da velha para certificar de que ela estava mesmo morta. Estava, finalmente.

 

     Não foi difícil fingir tristeza no funeral de Megan alguns dias depois. Realmente fora o crime perfeito. Ninguém desconfiara da sobrinha dedicada que perdeu anos de sua vida para cuidar da tia. Pela primeira vez em anos, pode dormir sem que fosse chamada a cada quinze minutos. Claro, como única parente viva, Jules herdou a casa e uma boa quantia em dinheiro. Não que estivesse interessada nisso de começo, mas encarou a herança como um bônus.

     A casa era muito antiquada, precisava de um visual novo, e o mais rápido que pode, Jules começou algumas mudanças, ou seja, iria retirar da casa tudo o que lembrava Megan. Primeiro, esvaziou o quarto de Megan, já fazia um mês desde o trágico passamento da tia e ainda não tivera coragem de entrar naquele quarto. Toda vez que passava por ele sentia uma coisa estranha, talvez um rastro de culpa, mas abanava a cabeça e espantava esses pensamentos. Naquele dia, foi até lá munida de algumas caixas de papelão e começou á fazer uma limpa. Lotou algumas com roupas e sapatos, outra com as roupas de cama e uma, essa ela fazia questão de encher, iria colocar a preciosa coleção de bonequinhas de porcelana e sem o menor cuidado, amontoou uma vinte dentro de uma caixa media. Olhou para o lado e deteve-se pois viu a bonequinha de vestidinho lilás, no criado mudo, tal qual havia visto pela ultima vez, mas com uma camada de poeira á mais.

     Aproximou-se da boneca, havia algo estranho com ela, Jules não sabia explicar o que era. Antes, quando a via, era uma boneca feia e sem expressão. Olhou bem e percebeu algo diferente nela, algo bem sutil que não teria percebido se sua maior característica fosse exatamente não ter expressão, mas agora Jules via um suave cerrar de olhos e um sorrisinho, estranhamente muito parecido com a cara de empáfia de Megan.

     Esse pensamento lhe causou um calafrio, pois lembrava-se perfeitamente que Megan morrera olhando para aquela boneca horrorosa.

     - Se me faltava motivo para me livrar de você, - disse ela pegando a boneca na mão – não falta mais.

     Jogara a boneca sem cuidado algum na caixa com as outras bonecas e lacrou com fita adesiva. Não queria aquela coisa ali, pois ela lhe faria lembrar do acontecido e não queria isso. No fim da tarde, Jules carregou as caixas uma por uma para fora, para que o caminhão do lixo levasse e a cada caixa que colocava no gramado sentia-se mais leve. Sentia que agora sim, seria o começo de uma nova etapa em sua vida, livre, sem nenhuma corrente ligando-a ao passado, só conseguia pensar nas possibilidades que se abriam á sua frente. Faria Faculdade? Viajaria? Investiria em um negocio próprio? Talvez fizesse tudo isso, mas cada uma á seu tempo. Envolta em paz, Jules dormiu naquela noite sem que nenhum fiozinho de culpa passasse por sua cabeça.

    

     Jules acordou na manhã seguinte, empolgada com todas as mudanças que aconteceriam daquele dia em diante. Preparou seu café da manhã com a maior calma, saboreava sua torrada sem a menor pressa. Os aromas, os sabores eram todos diferentes agora.

     Depois do dejejum, a garota subiu ao quarto de Megan, ele era bem maior do que o seu, pretendia mudar-se para ele, mas primeiro iria trocar todos os moveis e essas coisas, iria comprar moveis planejados, e iria tirar as medidas do quarto. Abriu a porta e ao olhar em seu interior soltou uma exclamação de susto, pois, colocada sentadinha no criado mudo como se nunca tivesse saído dali, a bonequinha de porcelana do vestido lilás olhava para ela. Sem entender nada, Jules aproximou-se da boneca e a pegou nas mãos novamente.

     - Mas como? Eu joguei você fora! – ela disse sozinha.

     Tinha certeza de ter colocado ela na caixa e de ter lacrado a caixa com fita adesiva. Tinha que se livrar dela. Desceu a escada correndo segurando a boneca, saiu pela porta, atravessou o gramado e a jogou dentro da lata de lixo.

     - Você não vai escapar do lixo.

     Fechou a tampa com um estrondo, virou nos calcanhares e voltou para dentro, tentando ignorar que aquilo era muito esquisito.

     Depois do almoço, tranquilizou-se um pouco, mas sua tranquilidade durou pouco. Quando foi tomar banho ás seis horas, entrou em seu quarto e viu a bonequinha sentadinha em sua cama. Jules soltou um grito quando a viu.

     - Se isso é uma brincadeira é de muito mau gosto! – ela gritou para as paredes em seu quarto. – Se tem alguém aqui, eu vou chamar a policia. – mas ela sabia que não havia ninguém na casa.

     Um tanto descompensada, ela atirou a boneca da janela e saiu pela casa trancando portas e janelas. Mas o que estava acontecendo? Será que alguém descobrira o que ela fizera e agora a estava assustando com aquela boneca horrorosa? Esse pensamento a acompanhou noite adentro na qual não conseguiu dormir.

     Na manhã seguinte, descia a escada para a cozinha, estava ainda no alto da escada quando pisou em algo duro e irregular, sentiu uma dor aguda no tornozelo, desequilibrou-se e rolou a escada, indo parar na sala estatelada no chão. Enquanto se recuperava ali no chão, tentando se levantar viu que seu tornozelo estava machucado, com dois pequenos furos que sangravam, fora isso não se machucara muito. O abalo maior ficou por conta de quando olhou para cima para ver no que tinha tropeçado e soltou um grito de horror. Bem no degrau em que se desequilibrara estava a boneca, com seu vestido lilás e sua carinha de porcelana, mas havia algo horrível, ela sorria, mostrando vários dentes e um filete de sangue escorria por seus lábios rosados. Monstruosa.

     Durante o tempo que se seguiu, Jules tentou livrar-se da boneca diabólica de varias formas, cada uma mais fracassada do que a outra. Tentou quebra-la com um martelo, no outro dia ela estava inteirinha na sua cabeceira; tentou queima-la, igualmente inútil; jogou-a num rio, não; deu a boneca para um Pittbull brincar, deu-a de presente para uma criança da vizinhança, mas todos os dias a boneca estava lá, em algum lugar da casa, esperando para ser encontrada.

     Jules sabia que de alguma forma Megan estava naquela boneca e agora ela atormentaria para o resto da vida."