quarta-feira, 19 de setembro de 2012

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"O Verme do cíume" 1º capitulo, por Natalia de Oliveira

  " O verme do cíume"
 
capitulo I


    "Mil novecentos e cinquenta e quatro foi o ano em que tudo aconteceu. Era outono, fim de outubro, me lembro que as arvores tinham suas folhas amareladas e avermelhas e varias jaziam no gramado da praça perto de minha casa, no sul de Londres. Mudei-me para lá vindo de Cambridge a fim de me livrar de problemas pessoais que não acho relevante citar por não fazerem parte de minha história. Consegui encontrar um bairro tranquilo para morar, eu era advogado de causas civis e tudo o que eu queria era um lugar tranquilo onde pudesse descansar nas horas de folga e me dedicar á minha real paixão, a escrita. No bairro Winston todos eram muito discretos.

     Minha casa era na realidade o segundo andar da casa de uma senhora, Sra. Talbot. Ela era uma senhora em seus sessenta anos de idade, com seu cabelo branco preso em um coque bem ultrapassado, seu vestido azul escuro de gola alta e um xale de tricô feito por ela mesma. Quando seus filhos se casaram e seu marido morrera, não havendo razão para manter uma casa tão grande para uma velha senhora sozinha, ela reformou a casa, separando totalmente o primeiro andar do segundo andar e o colocara para alugar. No vestíbulo, havia a porta que levava á parte dela da casa, com uma aldrava de cobre um pouco enferrujada e logo á frente, uma escadaria que tinha quinze degraus, e que terminava em outra porta, minha parte da casa. Havia uma sala que eu havia transformado em escritório, uma cozinha, um quarto de dormir e um banheiro e para mim, era mais do que suficiente. Não tinha planos de formar família nenhuma para precisar de mais do que isso.

     Meu convívio com a Sra. Talbot era muito bom, quando digo isso, quero dizer que ela não bisbilhotava minha vida, o motivo disso era que ela havia caído da escada anos atrás e quebrara a perna em vários lugares, ou seja, ela nunca subiria a escada outra vez pelo motivo que fosse. O único contato que tínhamos era duas vezes por mês, quando eu batia á sua porta para pagar o aluguel. Com um sorriso satisfeito ela atendia a porta, mancando com sua bengala de madeira, recebia o dinheiro, fazia algum gracejo sobre o tempo ou qualquer outro assunto ridículo e se trancava outra vez, só para repetir o ritual dali quinze dias.

     Ela também não tinha o que reclamar de mim enquanto inquilino, todos os dias eu pegava o ônibus até o centro de Londres onde ficava o escritório de advocacia para o qual eu trabalhava. Saia cedo e voltava tarde, mas sempre em silêncio e evitava ao máximo fazer qualquer barulho que incomodasse a velha senhora no andar de baixo e foi assim que vivi os primeiros meses em minha nova casa em Londres.

     Serei franco com vocês, advocacia não era a profissão que eu havia escolhido para mim, era na realidade imposição de meu falecido pai, também advogado, que queria que o único filho seguisse seus passos. Não o culpo. Mas meu sonho era me tornar um escritor. A calma do bairro Winston fora fator determinante para a escolha de minha moradia, pois eu queria escrever com calma meu contos e reflexões sobre o mundo.

     Os londrinos eram tão interessantes, tão calados, sempre fazendo tudo certo, como se tentassem compensar alguma coisa, como se cada um tivesse um mistério por trás da mascara de bons modos e isso aguçava minha infantil curiosidade sobre suas vidas e o que escondiam.

     Sentava-me num banco na praça perto de casa, as vezes, e observava as pessoas do bairro, as famílias deixando suas casas para uma tarde de lazer ou um piquenique sob o sol de domingo. Levava comigo um caderno de anotações e uma caneta e punha-me á divagar sobre quem eram aquelas pessoas e oque poderiam ter de interessante e fosse digno de nota. Mas em sua maioria, eram vazios, previsíveis, normais demais. Eu estava em busca de algo novo e diferente, algo do qual eu não desistisse nas primeiras paginas, algo pelo qual eu me apaixonasse.

     Mas não foi num domingo de sol familiar que me apaixonei.

     Era sexta feira, fim de tarde. Por algum motivo, não me lembro qual, não fui ao trabalho naquele dia, e ao fim da tarde resolvi ir á praça com meu caderno e minha caneta em busca de algo novo, esperando ter sorte, mesmo com pouca gente para observar.

     Mas quem eu era?” me peguei pensando. Um homem de quase trinta anos, olhos azuis, cabelos negros, alto e de bom porte, digamos assim. Mas não era esse exterior que tirava meu sono, era o meu interior. Oque eu estava fazendo, observando as pessoas como se fossem adúlteros e eu um detetive de quinta categoria, invadindo sua privacidade á distancia. Senti-me um voyeur, um tarado por assim dizer. As vezes senti-me assim, e buscava me refrear, mas sempre acabava voltando para o banco da praça com o caderno e minhas divagações. Aquele foi meu ultimo dia de voyeurismo na praça.

     Observava três crianças que brincavam de pular corda no pavimento perto de mim: uma menina de longas tranças negras com um vestidinho azul escuro numa das pontas da corda; na outra ponta, um menino de cabelos castanhos claros e sardento, usava calça curta preta, uma camisa branca e suspensórios; e a que mais me chamou a atenção, um menininha loira de cabelos cacheados cheios, usando um vestidinho branco, linda.

     Por um momento senti-me horrorizado com um pensamento que me abateu de repente, sobre o que poderia acontecer se em meu lugar estivesse um tarado? Quieto, espreitando crianças inocentes que brincavam despreocupadas na praça. Eu conseguia imaginá-lo ali, sentado exatamente onde eu estava, observando-as com um meio sorriso hediondo. Tudo o que ele teria que fazer seria apenas chama-las. Provavelmente escolheria a loira.

     Comecei a me perguntar como Deus permitia que tão vil criatura caminhasse sobre a terra, alguém que fosse capaz de fazer tamanha maldade contra um serzinho tão pequeno e indefeso? Compreendi então que isso não podia ser obra de Deus, mas sim, do demônio, esse sim, que era o causador de todo mal, e das guerras, e da fome. Não Deus, por que ele nos dera o maior dos dons, o de escolher que caminho seguir. O livre arbitro nos fora concedido por Ele, e se a guerra existe, não é sua culpa, mas nossa. Nossas escolhas erradas acabam por fazer de nós soldados.

     Então, para tirar-me de meu devaneio, um casal sentou-se num banco ao lado do meu. Minha vida não teria se modificado tanto se eu não tivesse ido á praça aquele dia, dia esse que vou amar e amaldiçoar enquanto eu viver.

     Era um casal silencioso. O homem era um tipo bem comum, cabelo castanho, alto, usava um terno aparentemente caro e muito bem ajustado escuro e um chapéu. Lia o jornal em suas mãos atentamente. Como eu disse, era um tipo bem comum, não teria chamado minha atenção por mais de dois segundos se não fosse a mulher ao seu lado.

     A mulher, ah, a mulher. Em pensar que eu já desejei nunca ter posto meu olhos nela. Era ruiva, sardenta, usava um vestido verde embaixo do casaco preto. Usava um pequeno chapéu, verde também, e pode ver seu olhos, e eram olhos tristes.

     Não sei explicar o que aconteceu comigo quando eu a vi. Ela emanava infelicidade. Não olhava para o provável marido, lia um livro, ou fingia que lia, pois durante todo o tempo em que a observei, ela não mudou de pagina, nenhuma vez. Seus olhos de repente desviavam do livro-enfeite e se perdiam num vazio. Ela respirava fundo e se forçava e ler de novo a mesma pagina. Era visível que havia um distanciamento entre os dois. Quem não os tivesse visto chegarem juntos, poderia jurar que eram estranhos, não se falavam.

     Não consegui desviar o olhar daquela mulher. Sua pele branca, seu olhar triste, era como uma vela se apagando. E sua tentativa desesperada de fingir seja lá o que fosse me atraíra a atenção e não seria fácil deixar para lá. Meu coração bateu descompassado, por quê? Por um momento me pareceu que eu a conhecia, mas de onde? Gostei dela, queria ajuda-la de alguma, era obvio que sofria. E num momento que pareceu fora da realidade, seus olhos encontraram os meus. Sei que deveria ter desviado olhar, como qualquer um faria numa situação dessas, mas não pude, seu olhar me enfeitiçou. Seus olhos verdes faiscantes me arrebataram e daquele momento em diante eu soube que jamais seria livre outra vez. Olhava em meus olhos e parecia que iria chorar, então virou o rosto para o livro, quebrando aquele momento. Por que senti tudo isso por ela, uma mulher que eu nunca havia visto na vida? Achoo que essa sim, fora uma obra de Deus.

     Continuei á olhar para ela na esperança de que ela voltasse á olhar para mim para continuarmos com esse flerte ao acaso, mas ela não se moveu até que depois de alguns minutos, o homem dobrasse o jornal e falasse algo em seu ouvido. Ela fechou o livro, colocou dentro de sua bolsa e levantou-se junto com o homem. Deixando-me sozinho com meu desejo, eles se afastaram, caminhando para a rua e de lá seguiram alguns passos, desaparecendo conforme iam se afastando.

     No caminho para minha casa, fiquei pensando nela, á noite quando tentava dormir ela estava em meus pensamentos e quando finalmente consegui dormir, foi com ela que sonhei. Em meu sonho, ela estava acorrentada e implorava para que eu a salvasse. Aquele homem ria, ria porque a tinha totalmente, só para ele. Sonhos são estranhos, mas não tão estranhos quanto as pessoas que sonham.

     Fiquei atordoado. Nunca em minha vida tinha sentido tamanha empatia por uma pessoa totalmente estranha. Aquele olhar melancólico fora para mim como um pedido de ajuda, mas como eu saberia? Talvez nunca mais a visse novamente. E é ai que eu digo que nada acontece por acaso, tudo tem um motivo de ser e o destino, travesso, não tardaria por colocar-me outra vez em seu caminho. Desde aquele dia comecei a sentir um vazio, algo me faltava. Mais tarde eu descobriria que ela havia levado uma parte de mim quando se fora e que eu só estaria inteiro de novo quando a tivesse."

    

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