domingo, 16 de setembro de 2012

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"Maldita bonequinha de porcelana", de Natalia de Oliveira


Maldita bonequinha de porcelana
 

     "- Jules! Jules! – a voz de Megan ecoava pelos corredores da imensa casa, seguida de um acesso de tosse, como sempre.

     - Já vou, tia! – Jules respondeu gritando da cozinha no andar de baixo, estava muito atarefada preparando a refeição para sua tia.

     Jules era uma garota jovem de vinte e três anos, no auge da juventude, mas que estava perdendo toda essa fase desde que sua tia ficara doente á cinco anos e parara sua vida para cuidar dela.

     Megan era uma mulher vivida, com seus sessenta e poucos anos, de poucos amigos e muitos problemas, fã do cigarro desde os treze anos, o que lhe causara sua atual situação de insuficiência respiratória, e quando o problema se tornou serio o bastante para ficar presa á um cilindro de oxigênio, teve que chamar ajuda.

     Falemos claramente, Jules só cuidava da tia velha por que não havia outro parente vivo que o fizesse, e por esse motivo sentia-se presa á ela, assim como o cilindro. Seus pais haviam morrido num acidente na mesma época em que Megan ficara seriamente doente, então tudo isso acabara se tornando uma troca de favores, “Você cuida de mim, e eu deixo você morar aqui..”. Era mais ou menos assim.

     - Jules! – a voz estridente da velha ecoou mais uma vez.

     É, no começo pareceu boa ideia, ela teria um lugar pare ficar e ainda teria um dinheirinho por cuidar da tia velha, mas com o tempo foi percebendo que não seria assim tão fácil, na verdade, não fazia a mínima ideia de onde estava se metendo.

     A velha era louca! Quando surtava, ficava pior do que criança: não queria tomar os remédios, ficava chamando Jules por motivo nenhum no meio da noite, a comida estava insossa, o radio alto demais, o luz forte demais, tinha travesseiro de menos, e por ai vai. Era um inferno.

     Isso não era tudo, não, havia ainda sua sinistra e empoeirada coleção de bonecas de porcelana da era vitoriana, que ela não permitia que ninguém tocasse com as mãos sujas, em especial, uma bonequinha que ela insistia em manter no criado mudo, sua preferida. Tinha os cabelos avermelhados e grandes olhos cinza, usava um vestidinho lilás com babados brancos de renda, uma coisa pavorosa. Naquela época, os artesãos faziam as bonecas parecidas com sua donas, meninas ricas que pagava praticamente uma fortuna por uma boneca, e a antiga dona devia ter sido uma criaturinha esquisitinha, Jesus.

     A boneca em si era bem comum, o que chamava a atenção dela era sua expressão. Ao contrario das varias bonecas do recinto que tinham um sorrisinho afetado, a boneca do vestidinho lilás tinha uma expressão seria, não, vazia seria uma palavra melhor, com seus olhinhos olhando para o vazio, seu nariz arrebitado e seus lábios rosados sem expressão alguma. Megan era obcecada por ela.

     - Jules! – Megan chamou outra vez.

     - Já estou indo! – Jules respondeu alto e então falou baixo – Sua velha inútil e impaciente, já vou levar sua sopa, espero que se afogue nela.

     A garota arrumou a sopa na bandeja que usualmente levava ao quarto de Megan todos os dias e quando pegou a bandeja nas mãos um pensamento lhe ocorreu: Odiava Megan, simplesmente isso, odiava Megan, odiava que ela estivesse atravancando sua vida, odiava sua coleção de bonecas, sua voz, seu cheiro, odiava ela.

     Subiu a escada que levava ao segundo andar da casa, o andar dos quartos, carregando a bandeja com o almoço, e conforme aproximava-se do quarto, sentia o cheiro dos remédios invadindo o ambiente, aquele cheiro enjoativo de hospital.

     A porta estava aberta e Jules entrou direto só para se deparar com aquela imagem tão familiar: uma cama de hospital, o cilindro de oxigênio ao lado da cama a mesinha de cabeceira com os vários remédios e claro, a bonequinha de porcelana também estava lá.

     Megan estava sentada na cama, com seu cabelo grisalho arrepiado, suas olheiras profundas em torno dos olhos e sua costumeira palidez.  O tubo de oxigênio preso em seu nariz.

     - Finalmente, mais um pouco e isso não seria mais um almoço, seria um jantar. – disse com sua boca enrugada e banguela.

     Jules ajeitou a bandeja no suporte ao lado da cama e o empurrou em direção á cama de forma que se encaixasse. Enquanto Megan se alimentava, Jules sentou-se na poltrona ao lado da cama, esperando que ela terminasse e também, caso ela se engasgasse estaria ali para socorrê-la.

     Enquanto Jules esperava sua mente vagou. Pensou que Megan era uma pessoa ruim, que tratava mal a única pessoa que ela tinha, isso não era normal. Pensava se ela não tinha medo de terminar seus dias sozinha. Não, claro que não, Jules estaria lá, limpando sua baba até o ultimo momento.

     “. . . até o ultimo momento. . .”, essa frase ecoava em sua mente, e de repente teve consciência de que talvez isso demorasse muito, muito mesmo. Começou a imaginar quanto tempo mais Megan viveria daquele jeito, quem sabe por anos, sugando sua juventude como uma vampira. Haveria alguma diferença? Alguém poderia dizer com certeza qual das duas estava agonizando em um mar de sofrimento?

     - Nunca vi comida mais insossa. – Megan afastou o prato violentamente fazendo um pouco da sopa derramar no lençol que, adivinhe só, Jules teria que lavar.

     Como sempre, Jules se segurou, fechou os olhos e respirou fundo.

     - O medico disse que pelo seu problema de pressão alta, você teria que diminuir o sal.

     - Se eu quisesse comer comida de hospital eu estaria em um e não precisaria de você, sua inútil. – disse mais ríspida.

     Outra vez Jules se segurou, essa era sua vida: ouvir essas barbaridades calada só pelo fato de morar de favor naquela casa. Era cada humilhação que ás vezes sentia vontade de. . .

     Respirou fundo e olhou em seu relógio de pulso, eram uma e meia da tarde, hora dos remédios de Megan. Jules levantou-se da poltrona, retirou a bandeja e o suporte, encostando-os na parede. Foi em direção á gaveta dos remédios mais fortes, pegou-os e levou até a cômoda, do outro lado do quarto para preparar a medicação. Naquele momento, ela tinha que tomar três comprimidos e uma injeção de um remédio que á muito havia desistido de pronunciar o nome. Primeiro deu á Megan os comprimidos que ela tomou com uma careta, mas tomou, então Jules voltou á cômoda para preparar a injeção.

     “Eu odeio essa velha!” Jules gritava dentro de si. Por quanto tempo mais aguentaria isso? Olhou para a seringa lacrada no pacotinho e de repente um pensamento a assaltou. Lembrou-se de certa vez ter assistido um documentário, “Os crimes quase perfeitos”, sobre crimes que teriam passado batido pelas autoridades se apenas um detalhe não tivesse dado errado e lembrou-se de um em particular, um homem que matara a esposa com uma injeção de ar, sim, uma injeção de ar. Na época se perguntou como que uma injeção de ar podia matar, e o especialista do documentário disse que realmente teria sido um crime perfeito, se o assassino não tivesse confessado, pois é limpo, fácil, não deixa rastro químico e no máximo, a necropsia diria que fora um ataque do coração. A arma é facilmente descartada, realmente, um crime perfeito.

     E se Jules fizesse isso? Como o perito disse, era limpo, seu lixo estava cheia de seringas com o mesmo DNA, uma a mais, uma a menos, não faria diferença. Megan era uma velha doente, presa a um cilindro de oxigênio que poderia muito bem morrer de “causas naturais” á qualquer momento.

     Tudo isso Jules pensou numa fração de segundo. Meu Deus, como pôde, era a vida de alguém, alguém miserável, mas era alguém.

     - Vamos logo, com isso. Nossa que garota lerda! Não faz nada direito, nada que presta.

     Decidiu-se. Abriu o pacotinho da seringa e puxou o ar. Sentiu uma espécie de embrulho no estomago, mas agora que tinha começado não iria parar. Se aproximou de Megan, aquela criatura deplorável com o cabelo grisalho arrepiado e sua cara feia de sempre. Megan se virou de lado, de costas para Jules para que ela aplicasse a injeção.

     - Vê se aplica isso direito, você esta aplicando uma injeção, não esta atirando dardos num elefante.

     - Pode deixar, não vai nem sentir.

     Tudo o que Jules pensava naquele momento era que aquela era sua única chance, que se não desse certo agora, nunca mais teria a coragem de fazer. Não era a razão que a motivava, era o impulso.

     Quando teve certeza de que pela posição ela não estava vendo a seringa, Jules aplicou a injeção vazia. Já estava feito, não tinha como voltar atrás e então tudo aconteceu.

     Megan se virou e olhou para Jules com uma expressão aterrorizada, e mesmo que ela não tivesse dito nada, Jules sabia que ela sabia o que tinha acontecido, então ela começou a se debater na cama, como se estivesse tento um ataque epilético, deixando Jules desesperada, isso não estava em seus planos. A garota virou-se de costas, não queria ver aquela cena horrível, tampou os ouvidos com as mãos e esperou um tempo, até que tomou coragem e virou-se para ver o que tinha acontecido.

     A velha estava estendida na cama, os lençóis estavam no chão de tanto que ela se debateu, os olhos abertos esbugalhados olhavam em direção á bonequinha de vestidinho lilás. Jules se aproximou e colocou dois dedos no pescoço da velha para certificar de que ela estava mesmo morta. Estava, finalmente.

 

     Não foi difícil fingir tristeza no funeral de Megan alguns dias depois. Realmente fora o crime perfeito. Ninguém desconfiara da sobrinha dedicada que perdeu anos de sua vida para cuidar da tia. Pela primeira vez em anos, pode dormir sem que fosse chamada a cada quinze minutos. Claro, como única parente viva, Jules herdou a casa e uma boa quantia em dinheiro. Não que estivesse interessada nisso de começo, mas encarou a herança como um bônus.

     A casa era muito antiquada, precisava de um visual novo, e o mais rápido que pode, Jules começou algumas mudanças, ou seja, iria retirar da casa tudo o que lembrava Megan. Primeiro, esvaziou o quarto de Megan, já fazia um mês desde o trágico passamento da tia e ainda não tivera coragem de entrar naquele quarto. Toda vez que passava por ele sentia uma coisa estranha, talvez um rastro de culpa, mas abanava a cabeça e espantava esses pensamentos. Naquele dia, foi até lá munida de algumas caixas de papelão e começou á fazer uma limpa. Lotou algumas com roupas e sapatos, outra com as roupas de cama e uma, essa ela fazia questão de encher, iria colocar a preciosa coleção de bonequinhas de porcelana e sem o menor cuidado, amontoou uma vinte dentro de uma caixa media. Olhou para o lado e deteve-se pois viu a bonequinha de vestidinho lilás, no criado mudo, tal qual havia visto pela ultima vez, mas com uma camada de poeira á mais.

     Aproximou-se da boneca, havia algo estranho com ela, Jules não sabia explicar o que era. Antes, quando a via, era uma boneca feia e sem expressão. Olhou bem e percebeu algo diferente nela, algo bem sutil que não teria percebido se sua maior característica fosse exatamente não ter expressão, mas agora Jules via um suave cerrar de olhos e um sorrisinho, estranhamente muito parecido com a cara de empáfia de Megan.

     Esse pensamento lhe causou um calafrio, pois lembrava-se perfeitamente que Megan morrera olhando para aquela boneca horrorosa.

     - Se me faltava motivo para me livrar de você, - disse ela pegando a boneca na mão – não falta mais.

     Jogara a boneca sem cuidado algum na caixa com as outras bonecas e lacrou com fita adesiva. Não queria aquela coisa ali, pois ela lhe faria lembrar do acontecido e não queria isso. No fim da tarde, Jules carregou as caixas uma por uma para fora, para que o caminhão do lixo levasse e a cada caixa que colocava no gramado sentia-se mais leve. Sentia que agora sim, seria o começo de uma nova etapa em sua vida, livre, sem nenhuma corrente ligando-a ao passado, só conseguia pensar nas possibilidades que se abriam á sua frente. Faria Faculdade? Viajaria? Investiria em um negocio próprio? Talvez fizesse tudo isso, mas cada uma á seu tempo. Envolta em paz, Jules dormiu naquela noite sem que nenhum fiozinho de culpa passasse por sua cabeça.

    

     Jules acordou na manhã seguinte, empolgada com todas as mudanças que aconteceriam daquele dia em diante. Preparou seu café da manhã com a maior calma, saboreava sua torrada sem a menor pressa. Os aromas, os sabores eram todos diferentes agora.

     Depois do dejejum, a garota subiu ao quarto de Megan, ele era bem maior do que o seu, pretendia mudar-se para ele, mas primeiro iria trocar todos os moveis e essas coisas, iria comprar moveis planejados, e iria tirar as medidas do quarto. Abriu a porta e ao olhar em seu interior soltou uma exclamação de susto, pois, colocada sentadinha no criado mudo como se nunca tivesse saído dali, a bonequinha de porcelana do vestido lilás olhava para ela. Sem entender nada, Jules aproximou-se da boneca e a pegou nas mãos novamente.

     - Mas como? Eu joguei você fora! – ela disse sozinha.

     Tinha certeza de ter colocado ela na caixa e de ter lacrado a caixa com fita adesiva. Tinha que se livrar dela. Desceu a escada correndo segurando a boneca, saiu pela porta, atravessou o gramado e a jogou dentro da lata de lixo.

     - Você não vai escapar do lixo.

     Fechou a tampa com um estrondo, virou nos calcanhares e voltou para dentro, tentando ignorar que aquilo era muito esquisito.

     Depois do almoço, tranquilizou-se um pouco, mas sua tranquilidade durou pouco. Quando foi tomar banho ás seis horas, entrou em seu quarto e viu a bonequinha sentadinha em sua cama. Jules soltou um grito quando a viu.

     - Se isso é uma brincadeira é de muito mau gosto! – ela gritou para as paredes em seu quarto. – Se tem alguém aqui, eu vou chamar a policia. – mas ela sabia que não havia ninguém na casa.

     Um tanto descompensada, ela atirou a boneca da janela e saiu pela casa trancando portas e janelas. Mas o que estava acontecendo? Será que alguém descobrira o que ela fizera e agora a estava assustando com aquela boneca horrorosa? Esse pensamento a acompanhou noite adentro na qual não conseguiu dormir.

     Na manhã seguinte, descia a escada para a cozinha, estava ainda no alto da escada quando pisou em algo duro e irregular, sentiu uma dor aguda no tornozelo, desequilibrou-se e rolou a escada, indo parar na sala estatelada no chão. Enquanto se recuperava ali no chão, tentando se levantar viu que seu tornozelo estava machucado, com dois pequenos furos que sangravam, fora isso não se machucara muito. O abalo maior ficou por conta de quando olhou para cima para ver no que tinha tropeçado e soltou um grito de horror. Bem no degrau em que se desequilibrara estava a boneca, com seu vestido lilás e sua carinha de porcelana, mas havia algo horrível, ela sorria, mostrando vários dentes e um filete de sangue escorria por seus lábios rosados. Monstruosa.

     Durante o tempo que se seguiu, Jules tentou livrar-se da boneca diabólica de varias formas, cada uma mais fracassada do que a outra. Tentou quebra-la com um martelo, no outro dia ela estava inteirinha na sua cabeceira; tentou queima-la, igualmente inútil; jogou-a num rio, não; deu a boneca para um Pittbull brincar, deu-a de presente para uma criança da vizinhança, mas todos os dias a boneca estava lá, em algum lugar da casa, esperando para ser encontrada.

     Jules sabia que de alguma forma Megan estava naquela boneca e agora ela atormentaria para o resto da vida."

    

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