Maldita
bonequinha de porcelana
"- Jules! Jules! – a voz de Megan ecoava
pelos corredores da imensa casa, seguida de um acesso de tosse, como sempre.
- Já vou, tia! – Jules respondeu gritando
da cozinha no andar de baixo, estava muito atarefada preparando a refeição para
sua tia.
Jules era uma garota jovem de vinte e três
anos, no auge da juventude, mas que estava perdendo toda essa fase desde que
sua tia ficara doente á cinco anos e parara sua vida para cuidar dela.
Megan era uma mulher vivida, com seus
sessenta e poucos anos, de poucos amigos e muitos problemas, fã do cigarro
desde os treze anos, o que lhe causara sua atual situação de insuficiência
respiratória, e quando o problema se tornou serio o bastante para ficar presa á
um cilindro de oxigênio, teve que chamar ajuda.
Falemos claramente, Jules só cuidava da
tia velha por que não havia outro parente vivo que o fizesse, e por esse motivo
sentia-se presa á ela, assim como o cilindro. Seus pais haviam morrido num
acidente na mesma época em que Megan ficara seriamente doente, então tudo isso
acabara se tornando uma troca de favores, “Você
cuida de mim, e eu deixo você morar aqui..”. Era mais ou menos assim.
- Jules! – a voz estridente da velha ecoou
mais uma vez.
É, no começo pareceu boa ideia, ela teria
um lugar pare ficar e ainda teria um dinheirinho por cuidar da tia velha, mas
com o tempo foi percebendo que não seria assim tão fácil, na verdade, não fazia
a mínima ideia de onde estava se metendo.
A velha era louca! Quando surtava, ficava
pior do que criança: não queria tomar os remédios, ficava chamando Jules por
motivo nenhum no meio da noite, a comida estava insossa, o radio alto demais, o
luz forte demais, tinha travesseiro de menos, e por ai vai. Era um inferno.
Isso não era tudo, não, havia ainda sua
sinistra e empoeirada coleção de bonecas de porcelana da era vitoriana, que ela
não permitia que ninguém tocasse com as mãos sujas, em especial, uma bonequinha
que ela insistia em manter no criado mudo, sua preferida. Tinha os cabelos
avermelhados e grandes olhos cinza, usava um vestidinho lilás com babados
brancos de renda, uma coisa pavorosa. Naquela época, os artesãos faziam as
bonecas parecidas com sua donas, meninas ricas que pagava praticamente uma
fortuna por uma boneca, e a antiga dona devia ter sido uma criaturinha
esquisitinha, Jesus.
A boneca em si era bem comum, o que
chamava a atenção dela era sua expressão. Ao contrario das varias bonecas do
recinto que tinham um sorrisinho afetado, a boneca do vestidinho lilás tinha
uma expressão seria, não, vazia seria uma palavra melhor, com seus olhinhos
olhando para o vazio, seu nariz arrebitado e seus lábios rosados sem expressão
alguma. Megan era obcecada por ela.
- Jules! – Megan chamou outra vez.
- Já estou indo! – Jules respondeu alto e
então falou baixo – Sua velha inútil e impaciente, já vou levar sua sopa,
espero que se afogue nela.
A garota arrumou a sopa na bandeja que
usualmente levava ao quarto de Megan todos os dias e quando pegou a bandeja nas
mãos um pensamento lhe ocorreu: Odiava Megan, simplesmente isso, odiava Megan,
odiava que ela estivesse atravancando sua vida, odiava sua coleção de bonecas,
sua voz, seu cheiro, odiava ela.
Subiu a escada que levava ao segundo andar
da casa, o andar dos quartos, carregando a bandeja com o almoço, e conforme
aproximava-se do quarto, sentia o cheiro dos remédios invadindo o ambiente,
aquele cheiro enjoativo de hospital.
A porta estava aberta e Jules entrou
direto só para se deparar com aquela imagem tão familiar: uma cama de hospital,
o cilindro de oxigênio ao lado da cama a mesinha de cabeceira com os vários
remédios e claro, a bonequinha de porcelana também estava lá.
Megan estava sentada na cama, com seu
cabelo grisalho arrepiado, suas olheiras profundas em torno dos olhos e sua
costumeira palidez. O tubo de oxigênio
preso em seu nariz.
- Finalmente, mais um pouco e isso não
seria mais um almoço, seria um jantar. – disse com sua boca enrugada e
banguela.
Jules ajeitou a bandeja no suporte ao lado
da cama e o empurrou em direção á cama de forma que se encaixasse. Enquanto
Megan se alimentava, Jules sentou-se na poltrona ao lado da cama, esperando que
ela terminasse e também, caso ela se engasgasse estaria ali para socorrê-la.
Enquanto Jules esperava sua mente vagou.
Pensou que Megan era uma pessoa ruim, que tratava mal a única pessoa que ela
tinha, isso não era normal. Pensava se ela não tinha medo de terminar seus dias
sozinha. Não, claro que não, Jules estaria lá, limpando sua baba até o ultimo
momento.
“. .
. até o ultimo momento. . .”, essa frase ecoava em sua mente, e de repente
teve consciência de que talvez isso demorasse muito, muito mesmo. Começou a
imaginar quanto tempo mais Megan viveria daquele jeito, quem sabe por anos,
sugando sua juventude como uma vampira. Haveria alguma diferença? Alguém
poderia dizer com certeza qual das duas estava agonizando em um mar de
sofrimento?
- Nunca vi comida mais insossa. – Megan
afastou o prato violentamente fazendo um pouco da sopa derramar no lençol que,
adivinhe só, Jules teria que lavar.
Como sempre, Jules se segurou, fechou os
olhos e respirou fundo.
- O medico disse que pelo seu problema de
pressão alta, você teria que diminuir o sal.
- Se eu quisesse comer comida de hospital
eu estaria em um e não precisaria de você, sua inútil. – disse mais ríspida.
Outra vez Jules se segurou, essa era sua
vida: ouvir essas barbaridades calada só pelo fato de morar de favor naquela
casa. Era cada humilhação que ás vezes sentia vontade de. . .
Respirou fundo e olhou em seu relógio de
pulso, eram uma e meia da tarde, hora dos remédios de Megan. Jules levantou-se
da poltrona, retirou a bandeja e o suporte, encostando-os na parede. Foi em
direção á gaveta dos remédios mais fortes, pegou-os e levou até a cômoda, do
outro lado do quarto para preparar a medicação. Naquele momento, ela tinha que
tomar três comprimidos e uma injeção de um remédio que á muito havia desistido
de pronunciar o nome. Primeiro deu á Megan os comprimidos que ela tomou com uma
careta, mas tomou, então Jules voltou á cômoda para preparar a injeção.
“Eu
odeio essa velha!” Jules gritava dentro de si. Por quanto tempo mais
aguentaria isso? Olhou para a seringa lacrada no pacotinho e de repente um
pensamento a assaltou. Lembrou-se de certa vez ter assistido um documentário, “Os crimes quase perfeitos”, sobre
crimes que teriam passado batido pelas autoridades se apenas um detalhe não
tivesse dado errado e lembrou-se de um em particular, um homem que matara a
esposa com uma injeção de ar, sim, uma injeção de ar. Na época se perguntou
como que uma injeção de ar podia matar, e o especialista do documentário disse
que realmente teria sido um crime perfeito, se o assassino não tivesse
confessado, pois é limpo, fácil, não deixa rastro químico e no máximo, a
necropsia diria que fora um ataque do coração. A arma é facilmente descartada,
realmente, um crime perfeito.
E se Jules fizesse isso? Como o perito
disse, era limpo, seu lixo estava cheia de seringas com o mesmo DNA, uma a
mais, uma a menos, não faria diferença. Megan era uma velha doente, presa a um
cilindro de oxigênio que poderia muito bem morrer de “causas naturais” á qualquer momento.
Tudo isso Jules pensou numa fração de
segundo. Meu Deus, como pôde, era a vida de alguém, alguém miserável, mas era
alguém.
- Vamos logo, com isso. Nossa que garota
lerda! Não faz nada direito, nada que presta.
Decidiu-se. Abriu o pacotinho da seringa e
puxou o ar. Sentiu uma espécie de embrulho no estomago, mas agora que tinha
começado não iria parar. Se aproximou de Megan, aquela criatura deplorável com
o cabelo grisalho arrepiado e sua cara feia de sempre. Megan se virou de lado,
de costas para Jules para que ela aplicasse a injeção.
- Vê se aplica isso direito, você esta
aplicando uma injeção, não esta atirando dardos num elefante.
- Pode deixar, não vai nem sentir.
Tudo o que Jules pensava naquele momento
era que aquela era sua única chance, que se não desse certo agora, nunca mais
teria a coragem de fazer. Não era a razão que a motivava, era o impulso.
Quando teve certeza de que pela posição
ela não estava vendo a seringa, Jules aplicou a injeção vazia. Já estava feito,
não tinha como voltar atrás e então tudo aconteceu.
Megan se virou e olhou para Jules com uma
expressão aterrorizada, e mesmo que ela não tivesse dito nada, Jules sabia que
ela sabia o que tinha acontecido, então ela começou a se debater na cama, como
se estivesse tento um ataque epilético, deixando Jules desesperada, isso não
estava em seus planos. A garota virou-se de costas, não queria ver aquela cena
horrível, tampou os ouvidos com as mãos e esperou um tempo, até que tomou
coragem e virou-se para ver o que tinha acontecido.
A velha estava estendida na cama, os
lençóis estavam no chão de tanto que ela se debateu, os olhos abertos
esbugalhados olhavam em direção á bonequinha de vestidinho lilás. Jules se
aproximou e colocou dois dedos no pescoço da velha para certificar de que ela
estava mesmo morta. Estava, finalmente.
Não foi difícil fingir tristeza no funeral
de Megan alguns dias depois. Realmente fora o crime perfeito. Ninguém
desconfiara da sobrinha dedicada que perdeu anos de sua vida para cuidar da
tia. Pela primeira vez em anos, pode dormir sem que fosse chamada a cada quinze
minutos. Claro, como única parente viva, Jules herdou a casa e uma boa quantia
em dinheiro. Não que estivesse interessada nisso de começo, mas encarou a
herança como um bônus.
A casa era muito antiquada, precisava de
um visual novo, e o mais rápido que pode, Jules começou algumas mudanças, ou
seja, iria retirar da casa tudo o que lembrava Megan. Primeiro, esvaziou o
quarto de Megan, já fazia um mês desde o trágico passamento da tia e ainda não
tivera coragem de entrar naquele quarto. Toda vez que passava por ele sentia
uma coisa estranha, talvez um rastro de culpa, mas abanava a cabeça e espantava
esses pensamentos. Naquele dia, foi até lá munida de algumas caixas de papelão
e começou á fazer uma limpa. Lotou algumas com roupas e sapatos, outra com as
roupas de cama e uma, essa ela fazia questão de encher, iria colocar a preciosa
coleção de bonequinhas de porcelana e sem o menor cuidado, amontoou uma vinte
dentro de uma caixa media. Olhou para o lado e deteve-se pois viu a bonequinha
de vestidinho lilás, no criado mudo, tal qual havia visto pela ultima vez, mas
com uma camada de poeira á mais.
Aproximou-se da boneca, havia algo
estranho com ela, Jules não sabia explicar o que era. Antes, quando a via, era
uma boneca feia e sem expressão. Olhou bem e percebeu algo diferente nela, algo
bem sutil que não teria percebido se sua maior característica fosse exatamente
não ter expressão, mas agora Jules via um suave cerrar de olhos e um
sorrisinho, estranhamente muito parecido com a cara de empáfia de Megan.
Esse pensamento lhe causou um calafrio,
pois lembrava-se perfeitamente que Megan morrera olhando para aquela boneca
horrorosa.
- Se me faltava motivo para me livrar de
você, - disse ela pegando a boneca na mão – não falta mais.
Jogara a boneca sem cuidado algum na caixa
com as outras bonecas e lacrou com fita adesiva. Não queria aquela coisa ali,
pois ela lhe faria lembrar do acontecido e não queria isso. No fim da tarde,
Jules carregou as caixas uma por uma para fora, para que o caminhão do lixo
levasse e a cada caixa que colocava no gramado sentia-se mais leve. Sentia que
agora sim, seria o começo de uma nova etapa em sua vida, livre, sem nenhuma
corrente ligando-a ao passado, só conseguia pensar nas possibilidades que se abriam
á sua frente. Faria Faculdade? Viajaria? Investiria em um negocio próprio?
Talvez fizesse tudo isso, mas cada uma á seu tempo. Envolta em paz, Jules
dormiu naquela noite sem que nenhum fiozinho de culpa passasse por sua cabeça.
Jules acordou na manhã seguinte, empolgada
com todas as mudanças que aconteceriam daquele dia em diante. Preparou seu café
da manhã com a maior calma, saboreava sua torrada sem a menor pressa. Os
aromas, os sabores eram todos diferentes agora.
Depois do dejejum, a garota subiu ao
quarto de Megan, ele era bem maior do que o seu, pretendia mudar-se para ele,
mas primeiro iria trocar todos os moveis e essas coisas, iria comprar moveis
planejados, e iria tirar as medidas do quarto. Abriu a porta e ao olhar em seu
interior soltou uma exclamação de susto, pois, colocada sentadinha no criado
mudo como se nunca tivesse saído dali, a bonequinha de porcelana do vestido
lilás olhava para ela. Sem entender nada, Jules aproximou-se da boneca e a
pegou nas mãos novamente.
- Mas como? Eu joguei você fora! – ela
disse sozinha.
Tinha certeza de ter colocado ela na caixa
e de ter lacrado a caixa com fita adesiva. Tinha que se livrar dela. Desceu a
escada correndo segurando a boneca, saiu pela porta, atravessou o gramado e a
jogou dentro da lata de lixo.
- Você não vai escapar do lixo.
Fechou a tampa com um estrondo, virou nos
calcanhares e voltou para dentro, tentando ignorar que aquilo era muito
esquisito.
Depois do almoço, tranquilizou-se um
pouco, mas sua tranquilidade durou pouco. Quando foi tomar banho ás seis horas,
entrou em seu quarto e viu a bonequinha sentadinha em sua cama. Jules soltou um
grito quando a viu.
- Se isso é uma brincadeira é de muito mau
gosto! – ela gritou para as paredes em seu quarto. – Se tem alguém aqui, eu vou
chamar a policia. – mas ela sabia que não havia ninguém na casa.
Um tanto descompensada, ela atirou a
boneca da janela e saiu pela casa trancando portas e janelas. Mas o que estava
acontecendo? Será que alguém descobrira o que ela fizera e agora a estava
assustando com aquela boneca horrorosa? Esse pensamento a acompanhou noite
adentro na qual não conseguiu dormir.
Na manhã seguinte, descia a escada para a
cozinha, estava ainda no alto da escada quando pisou em algo duro e irregular,
sentiu uma dor aguda no tornozelo, desequilibrou-se e rolou a escada, indo
parar na sala estatelada no chão. Enquanto se recuperava ali no chão, tentando
se levantar viu que seu tornozelo estava machucado, com dois pequenos furos que
sangravam, fora isso não se machucara muito. O abalo maior ficou por conta de
quando olhou para cima para ver no que tinha tropeçado e soltou um grito de
horror. Bem no degrau em que se desequilibrara estava a boneca, com seu vestido
lilás e sua carinha de porcelana, mas havia algo horrível, ela sorria,
mostrando vários dentes e um filete de sangue escorria por seus lábios rosados.
Monstruosa.
Durante o tempo que se seguiu, Jules
tentou livrar-se da boneca diabólica de varias formas, cada uma mais fracassada
do que a outra. Tentou quebra-la com um martelo, no outro dia ela estava
inteirinha na sua cabeceira; tentou queima-la, igualmente inútil; jogou-a num
rio, não; deu a boneca para um Pittbull brincar, deu-a de presente para uma
criança da vizinhança, mas todos os dias a boneca estava lá, em algum lugar da
casa, esperando para ser encontrada.
Jules sabia que de alguma forma Megan
estava naquela boneca e agora ela atormentaria para o resto da vida."
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