Parte I
Capitulo III
"Renascimento"
Seu presente de boas vindas foram duas
costelas quebradas, hematomas e escoriações pelo corpo todo. Apanhara como um
condenado. Don Giovanni tinha razão, durante toda a sua vida jamais se
esqueceria dessa surra. Não dormira naquela noite, desmaiara no chão daquele
quarto por causa da dor e acordara na manhã seguinte quebrado, como nunca se
sentira em sua vida. A cama estava intocada, ninguém dormira ali, Don Giovanni devia
ter passado a noite fora.
Vicenzo recebera ordens para chamar o
garoto que vinha descendo as escadas com muita dificuldade e dor. Seu dono o
esperava sentado no sofá da sala, usava óculos para esconder os olhos vermelhos
e a olheiras provocadas por causa da bebedeira da noite anterior, em uma festa.
- Vamos logo. – levantou-se, pondo-se a
andar até a porta. Não estava tão gentil como na noite anterior, provavelmente
devia estar de ressaca.
Os dois deixaram o casarão a
atravessaram o jardim que á luz da manhã revelava toda a sua beleza numa
explosão de cores nas mais variadas flores. Como antes, sentaram-se um de
frente para o outro na limusine.
- Aonde vamos? – perguntou Chandler assim
que o motorista deu a partida. – Espero que até aquele restaurante, eu estou
morrendo de fome. – disse provocando.
- Vamos ao seu trabalho. – respondeu
seco.
- Está de mau humor? – cinicamente fingia
uma expressão preocupada.
- Sim, eu estou, e é melhor não me
encher o saco. Minha dor de cabeça já está forte o suficiente.
Chandler riu por dentro, já que a dor o
impedia de rir fisicamente.
- Que bom. – disse para que Don Giovanni
ouvisse e notou que ele o fuzilava com os olhos.
- Só estou me dando ao trabalho de levar
você porque depois de deixá-lo, vou direto para a minha casa em Roma. – estava
irritado.
- Pensei que sua casa fosse essa.
- Não, é só uma delas, um lugar que fico
quando venho á Nápoles. O ponto forte dos meus negócios fica em Roma. – ele riu
de repente – eu nem sei por que estou discutindo negócios com você.
- Talvez porque eu seja um de seus
negócios. – disse áspero.
Don Giovanni olhava fixamente para
Chandler, ele era diferente dos outros, insolente, belo, olhava-o nos olhos,
parecia indomável. Nem o “presentinho”
de ontem o colocara em seu lugar. Ele parecia assustado quando chegara, mas
agora era como se a surra houvesse despertado algo nele.
O garoto também se sentia assim, quando
acordou, viu tudo claramente. Estava no mundo de Dom Giovanni agora, e se
quisesse sobreviver nele teria que ser forte e não demonstrar medo dele, coisa
que o próprio Don Giovanni lhe aconselhava a fazer. Um pouco de provocação, não
muito, só pra mostrar que não ia ser dobrado tão fácil assim.
- Você vai para as ruas, meu querido. A
sua missão é trazer dinheiro, o modo você escolhe, o importante é trazer. Você
dá o dinheiro que conseguir ao seu superior, que por sua vez o dá a Vicenzo,
que conhece muito bem. – riu – É simples, ou quer que eu explique de novo?
- Eu sou um escravo? – perguntou mais
para si mesmo, mas a resposta veio de seu dono.
- Mais ou menos isso. – deu de ombros.
- Serei seu pra sempre? – perguntou
desconsolado.
- A coisa funciona assim: você é meu até
morrer, oque não é muito raro nas ruas, ou até que pague a divida que tem
comigo.
- Eu não te devo nada! – protestou
indignado.
- Eu comprei você, e foi bem caro,
lembra? Foi um investimento do qual eu espero lucro.
- Quando eu tiver pagado tudo, então, me
deixará ir?
- “Se",
- ele frisou – se estiver vivo até lá. Mas pode subir de posição também, se
quiser, com o tempo. – afirmou pensativo – Notei que é esperto, não abaixa a
cabeça, tem potencial. Assim como eu. E ai, - riu – não vai querer partir.
- Eu jamais serei como você.
- Duvida?
Essas palavras fizeram Chandler pensar. “Era possível gostar dessa vida de escravo?”.
Impossível! Era a pior coisa do mundo.
Embora talvez demorasse a pagar. Porém Don Giovanni era a prova viva do que
estava falando, fora um escravo, assim como era um agora. Um arrepio subiu por
sua espinha, uma imagem horripilante passou por sua cabeça: ele, vestido como
Don Giovanni, falando como ele agindo como ele. Temeu que no futuro pudesse
ficar assim.
Não demorou até que o carro parasse num
Beco de Nápoles, que era na verdade a divisa entre um açougue e uma loja de
artigos religiosos, em algum lugar da periferia da cidade.
- Descemos aqui. – o motorista desceu do
carro e abriu a porta para seu patrão descesse.
O garoto, com muita dificuldade, desceu
da limusine e deparou-se com um lugar feio. Havia um grupo de jovens mais á
frente, quase no final do beco, eram seis, todos de aparência muito estranha,
havia um tipo de sombra neles que não lhe agradava. E todos olhavam para ele,
analisando o novo colega. Eram a s crianças de Don Giovanni.
Caminharam pelo beco, indo em direção ao
grupo. O homem conduzia Chandler como se estivesse mostrando uma obra de arte
que acabara de arrebatar em um leilão.
- Faz um bom tempo que não te vejo
senhor. – um dos garotos se adiantou.
Ele era loiro, olhos castanhos, usava
uma roupa simples, mas boa, calça jeans e uma jaqueta jeans. Era arrogante,
Chandler podia ver em seu jeito de andar e olhar. Fumava algo, oque, nem queria
saber, seja lá o que fosse o cheiro era horrível. Do grupo sem duvida era o
mais bonito, aparentava ter uns dezoito anos de idade e pelo jeito era o
superior do grupo. Ele aproximou-se de Don Giovanni e para sua surpresa, eles
se cumprimentaram com um longo beijo. O que espantou Chandler, nunca tinha
visto dois homens se beijando.
- Estive fora. – Don Giovanni disse
afastando-se.
- E trouxe um presente. – disse o loiro
voltando sua atenção para Chandler com um sorriso malicioso. – Quem é essa gracinha?
- Meu mais novo investimento. – sorria –
Chandler.
- Chandler? Que nome é esse?
-
É americano. – justificou.
- E é tímido. – o loiro completou.
O garoto se aproximou de Chandler e deu
uma tragada no cigarro, analisando-o de cima a baixo. Então estendeu a mão.
- Sou Francesco, prazer.
- Não posso dizer o mesmo. – respondeu
sem demora.
- Ele já está entregue, cuidem bem dele
garotos.
Dom Giovanni girou nos calcanhares e
saiu voltando apressado para a limusine, deixando o garoto sozinho com o grupo.
Viu-se completamente abandonado. Francesco não tirava os olhos dele. Sentiu que
o estava analisando, vendo se era bonito o suficiente, forte o suficiente para
ser um deles. Isso além de incômodo era constrangedor, Francesco o rodeava,
fumando aquela coisa horrível, já estava começando a fica enjoado com aquele
cheiro.
- Foi uma pena oque fizeram com você. –
disse referindo-se aos hematomas em seu rosto. – Mas vai passar. Todos nós
passamos por isso quando chegamos.
- Isso deveria me consolar? – disse
ríspido.
- Soou como um consolo? – Francesco
respondeu sarcástico.
- Seu inglês é bom.
- Aqui é a Europa, o mundo todo vem até
nós. O inglês se tornou a língua universal. Você por outro lado, vai ter que
aprender italiano, mas não se preocupe, nós te ensinamos.
- Você é daqui?
- Sou, mas como você, outros vieram de
fora. – deu a volta e foi até onde seus amigos estavam – Deixe-me apresentá-lo
á família: esse é Juan; veio da França, Marc, também da França; Vicente é
daqui; - sorriu – e os gêmeos Luigi e Pietro, que são daqui mesmo. Garotos,
esse é. . . – hesitou, aproximou-se de Chandler e disse ao pé do ouvido – Sabe,
esse seu nome é muito exótico, para não falar estranho, todos nós somos
discretos aqui, então vamos improvisar. – parou um pouco para pensar e disse em
voz alta. – Esse é Sebastian, nosso mais novo amigo. - disse voltando-se para o
garoto – Esqueça agora o seu passado. O que aconteceu antes não importa. Agora
você renasceu.
Chandler havia renascido sim, agora era
Sebastian, e aquele era o primeiro dia do resto de sua vida. Não sabia ao certo
explicar como se sentia, era como se estivesse num pesadelo, e por mais que
tentasse, sabia que não acordaria. Ali naquele beco, teve noção do que havia
acontecido com ele: era um garoto de rua, sujeito a todos os tipos de perigo
que esta oferecia, humilhado, arrancado de sua terra, as palavras de Don
Giovanni faziam sentido agora. O mundo era feio, diferente daquele que
conhecia, não havia mais ninguém no mundo que ele amasse. O destino que se
afirmava no horizonte nunca lhe parecera tão negro, e nessa perspectiva, Chandler
Desmont não iria sobreviver.
Mas iria sobreviver, iria arranjar
coragem e manter-se vivo, não importasse quais as provações que a vida ainda
lhe reservasse, tudo com um único e firme propósito: iria ficar vivo para que
um dia, voltasse á América para acertar as contas com Robert Murphy, jurou para
si mesmo que o destruiria, nem que isso fosse a última coisa que fizesse, nem
que morresse tentando, iria vingar-se e a seu pai. Mas para isso teria que
mudar, assim como seu nome fora mudado, teria que deixar de ser aquele garoto
besta e ingênuo para se tornar Sebastian.
As portas do escritório de Robert Murphy
se abriram bruscamente, assustando-o por um momento, no entanto o que entrou
por aquela porta não era nada assustador. Jake Piston, o delegado da cidade de
Aaron River. Não mandava em nada, era tão significante quanto um peso de papel,
mas parecia enfurecido. Era um homem de meia idade, já calvo, sua barriguinha
saliente denunciava seus excessos. Usava uma calça marrom, uma camisa branca
por baixo do paletó marrom. Tinha a gravata afrouxada e parecia que ia ter um
ataque cardíaco ali mesmo.
- O que faz aqui? – Robert Murphy
desdenhava colocando de lado os papeis que analisava.
- Se quiser brincar de incendiário, faça
isso longe da minha jurisdição. – Jake dizia furioso.
- Do que esta falando, homem? – usava o
tom mais desinteressado que encontrou.
- A oficina do Desmont!
- Ah, aquilo foi um acidente, um infeliz
acidente, pergunte a qualquer um, aquele lugar era muito velho. A fiação elétrica
era um horror, e os produtos químicos que ele usava. . .
- Será que é isso o que a perícia vai
dizer? – Piston insinuava.
- Vai,
se você for esperto e tiver uma palavrinha com eles, como sempre. – parecia
muito calmo.
- Dessa vez não. – o nervosismo saltava
aos olhos.
- Como assim?
- Se isso foi um acidente como diz, onde
está o outro corpo? – dizia enigmático.
- De quem? – disse cínico.
- Deus do céu! – exclamou exasperado – Do
garoto, do filho dele!
Houve um silêncio mortal na sala.
- Se bem me lembro, Delegado Piston, é
seu dever saber, e eu não vejo razão para você estar me perguntando essas
coisas.
- Recebi uma ligação muito interessante
hoje, de Washington. Isso virou uma investigação federal. Vão mandar alguém
aqui para cutucar esse caso.
O homem estava visivelmente abalado e
pôs-se a andar de um lado para o outro do escritório.
- Seu incompetente, como deixou isso vazar?!
- Isso não importa o caso agora não é um
simples acidente, uma criança está desaparecida. Eles vão querer exumar o corpo
do Desmont, e não estranharei se encontrarem qualquer objeto metálico alojado
nele. – parou para encará-lo.
- O que está insinuando, seu verme?
- Nada, só estou te avisando que não
cobriu seus rastros direito, e por isso seu pescoço está perigando.
- O meu não é o único, levando-se em conta
que o delegado que alegou acidente foi você.
Fique esperto e dê um jeito de contornar isso antes que os Federais comessem a
bisbilhotar, caso contrário, uma cabeça vai rolar, e não será a minha. – Robert
disse objetivo.
Jake o olhava com verdadeiro desprezo e
horror.
- Diga-me pelo menos, que fim levou o
garoto Desmont?
- Quem é que sabe? – deu de ombros.
- Mais uma coisa, diga aos seus macacos
para fazerem seu trabalho direito, e me pouparem do trabalho de falsificar os boletins
de ocorrência.
- Diga você mesmo á eles. Eles vão á
delegacia esta tarde, levar a minha contribuição até o senhor.
O Delegado sentia-se humilhado cada vez
que Murphy o lembrava de que não passava de um fantoche. Mas a ambição pelo
dinheiro era maior que o amor próprio.
- Até mais, Delegado Piston. – disse
vendo que aquele inútil ainda continuava lá. – Mova-se!
Essa frase bastou para que o Delegado deixasse
o escritório como um furacão.
- Estou cercado de incompetentes. –
disse em voz alta para si mesmo.
Mal o Delegado Piston saiu do escritório,
April entrara mais furiosa do que jamais esteve. Os olhos azuis faiscando de
raiva e uma expressão aborrecida que não combinava com seu rosto fino e
delicado.
- Será que eu vou ter que começar a
trancar essa porta. – disse já irritado pela discussão com Piston. - Oque você
quer?
- Você é um monstro! – disse ela
esbravejando.
- Morda sua língua antes de falar comigo
nesse tom! – se alterou, levantando-se de sua poltrona.
- Pensa que eu não sei, que todo mundo
não sabe?
- O que uma fedelha como você poderia
saber? – desdenhava dando a volta na mesa para se aproximar da filha.
- É tão sujo oque fez com os Desmont,
que me dá nojo.
- Ah, é? – Robert aproximou-se de April
que por sua vez hesitou e deu um passo para trás. – Está com medo de mim? Aonde
foi parar toda aquela coragem com a qual entrou aqui?
- No mesmo lugar onde foi parar sua
vergonha.
Num gesto rápido, Robert desferiu um
tapa no rosto de sua filha. April ficara um tempo com o rosto virado, mais pelo
choque de ter sido agredida pelo seu pai do que pelo impacto e quando voltou a
fitá-lo, ele não demonstrava qualquer sinal de arrependimento, ou raiva, nada,
seu rosto era impassível, imóvel, como se tivesse sido esculpido em pedra, sem
qualquer emoção.
- Olhe bem garota, vou dizer apenas uma
vez: os Desmont sofreram um acidente terrível. O que quer que tenha escutado
por aí, ou aqui, principalmente aqui, guarde para você. Entendeu?
Boquiaberta com a frieza do pai, April o
observava voltar calmamente para sua poltrona, do outro lado da grande mesa,
como se nada tivesse acontecido. Derrotada por hora, April virou-se, caminhando
para a porta do escritório, saindo de lá, rumo ao seu quarto no qual se trancou
o resto do dia. Ficou triste sim, mas com uma certeza: ele iria ver quando o
FBI chegasse.
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