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domingo, 21 de outubro de 2012

1

"Sebastian", capitulo VI , por Natalia de Oliveira

Parte I
Capitulo VI
"Eva"
 

       O porto de Nápoles era grande. Navios ancoravam e zarpavam todos os dias deixando-o cheio de contêineres e mercadorias de várias partes do mundo, ou seja, trabalho era o que não faltava á Sebastian. Juntamente com Pietro e Luigi, trabalhava duro, mas com a consciência limpa, com um trabalho duro, mas honesto.

       Era um dia do sol ameno e Sebastian descarregava um contêiner colocando seu conteúdo num caminhão estacionado ao lado, tudo isso sozinho. A mercadoria não era tão pesada, além do mais, os irmãos Tomazi (era assim que Pietro e Luigi eram chamados, pois andavam sempre juntos) estavam do outro lado do porto descarregando outro contêiner.

       Sebastian já havia descarregado a última caixa quando olhara para o lado e vira o mar, inconscientemente aproximando-se do muro de proteção. Colocara a caixa no chão ao seu lado e olhava para as aguas mais adiante na praia, onde ondas brancas vinham quebrando e via também uma ou outra gaivota voando. Seria um cenário lindo em outras circunstâncias.

       Fechou os olhos ouvindo o barulho das ondas lá embaixo batendo contra as rochas, sentindo a leve brisa em seu rosto, e isso tudo o remeteu há tempos atrás quando nadava no rio de sua cidade, na época em que sua maior preocupação era chegar a casa a tempo do jantar e talvez levar uma bronca do seu pai. “Ah, se ao menos eu pudesse dar um mergulho. . .” , pensou. Pareciam séculos desde a última vez, naquele dia em que. . .

       Havia dias em que a tristeza batia mais forte, outros dias nem tanto, mas ela estava sempre ali como uma tatuagem, para atormentá-lo, para lembrá-lo sempre de seu juramento. Uma ferida aberta que nunca cicatrizaria.

       Abriu os olhos e contemplou o por do sol mais bonito que já presenciara.  O céu em tons de laranja mesclado com azul e roxo e as gaivotas voando, dando adeus ao dia que terminava. Ele jamais se esqueceria desse momento, por outro motivo também.

       Saindo de seu devaneio Sebastian voltara a pegar a caixa de papelão que deixara no chão e carregara para dentro do caminhão, colocando-a junto das outras. Seu expediente havia acabado. Iria procurar Luigi e Pietro pelo porto para receberem o pagamento pelo dia de trabalho, depois voltariam ao beco, para pagar sua parte á Francesco, mas nesse meio tempo algo aconteceu.

       Ao sair do caminhão Sebastian dá uma última olhada na praia. Estava quase vazia, mas algo lhe chamou a atenção. Uma moça. Era morena, os cabelos muito compridos e lisos. Usava uma calça jeans e uma bata branca. Não podia ver seu rosto pois ela estava de frente para o mar, parada em pé, com água nos tornozelos. Não tinha certeza, mas ela parecia chorar pois não parava de esfregar as mãos no rosto e em certos momentos ela se curvava para frente em espasmos. Então Sebastian sentiu algo estranho, uma espécie de sensação ruim, como sentia sempre que algo errado estava para acontecer. Mas por quê? Ela poderia ser apenas uma garota triste, como muitas que vinham contar sua dor para o mar, e depois do desabafo, iam embora limpas de suas tristezas. Porém lá no fundo sentia que não era só isso, havia algo mais. E realmente havia. Para sua surpresa, a garota começou a andar para dentro da agua do jeito que estava, com roupa e tudo e num movimento muito rápido, ela mergulhou.

       - Ei, moça! – Sebastian gritou desesperado do deque.

       Saiu correndo pelo porto como louco. Aquela moça queria se matar, tinha que fazer alguma coisa. Atravessou a praia e jogou-se no mar também numa atitude desesperada. Sorte dele que sabia nadar muito bem.

       Com braçadas rápidas, nadou boa parte da praia sem ver qualquer sinal da moça morena. Parou e ficou flutuando, procurando-a com os olhos no nível das ondas até que a viu, debatendo-se a uns dez metros dele. O mais rapidamente que pôde nadou até ela, abraçou-a e nadou de volta á margem, com mais dificuldade, pois ela estava inconsciente agora.

       Assim que chegou num ponto raso, no qual podia ficar de pé, pegou-a nos braços carregando ela até a areia, demonstrando a força que havia adquirido nesse tempo de trabalho no porto. Deitou-a na areia e a observou: Era jovem, no máximo devia ter uns vinte anos, tinha no rosto traços delicados, porém havia também certa dureza, como se sentisse uma grande tristeza.

       - Moça, moça! – Sebastian tentava reanimá-la com batidinhas leves em seu rosto. – Ah, Jesus, e agora?

       Devagar ela abriu os olhos, revelando um par de olhos de um tom que ao por do sol parecia dourados.

       - Tudo bem moça? – Sebastian perguntou em italiano ruim bem mais aliviado por ela ter finalmente acordado.

       Ela ficou em silêncio um tempo olhando para ele com um olhar espantado e então, sem mais nem menos, ela desatou a chorar, a chorar incontrolavelmente. Só então Sebastian percebeu que várias pessoas começaram á rodeá-los, observando aquela cena, e os dois ali encharcados lado á lado, deixando-o constrangido. A moça falou algo em italiano que ele não entendeu, deixando ele preocupado.

       - Moça, eu não entendo. . . – disse em sua própria língua, aflito.

       Ela parou de chorar acalmando-se lentamente e olhou bem no fundo dos olhos verdes dele.

       - Eu disse que não era justo que Deus mandasse um anjo para me impedir. – disse no idioma dele.

       - Ah, então eu estava certo, você queria se matar. O que você tem na cabeça?! – estava bravo.

       - Desespero. – respondeu com a voz baixa por entre lágrimas. – Devia ter me deixado lá.

       Ao ouvir isso Sebastian enterneceu-se e sentiu uma pontada no coração. Podia ver claramente em seus olhos que havia uma tristeza tão grande quanto o mar no qual ela queria perder-se á pouco. Sempre achara os suicidas pessoas fracas e covardes, mas olhando aquela moça, tudo o que via era alguém desesperada, sozinha e perdida como ele. Não podia ficar indiferente.

       - Qual é seu nome? – Sebastian perguntou mais brando.

       - Eva. – ela respondeu soluçando.

       - Bem, Eva, meu nome é Chan. . . – hesitou – Sebastian. – ele disse seu novo nome com o qual ainda se acostumava. - O que me diz de sairmos daqui? Já chega de mergulhos por hoje.

       Levantou-se e estendeu a mão para ajudar Eva a levantar. Um gesto simples, mas que para ela foi de um significado importantíssimo:

       Quando acordou e deparou-se com aquele garoto belo de olhos verdes tão penetrantes que acabara de salvar sua vida, Eva realmente pensou que se tratava de um anjo que fora mandado em seu socorro e agora vendo ele assim, com a mão estendida para ajudá-la a se levantar, sentiu que não se enganara. De um modo estranho sentia-se completamente enfeitiçada, como se ele emanasse um magnetismo que a atraia e tudo o que podia fazer era se deixar levar. Segurou sua mão e levantou-se, seguindo-o.

 

       Perto dali, saindo da praia, havia um galpão abandonado que durante muito tempo serviu de depósito para mercadorias roubadas dos carregamentos que chegavam ao porto, mas desde que a polícia invadiu e apreendeu boa parte das coisas os criminosos ficaram com receio de reutilizá-lo. Melhor para Sebastian, Luigi e Pietro que usavam o lugar como refugio. E foi até lá que Sebastian levou Eva pois a noite já chegava.

       A porta estava trancada, claro, e eles usavam uma janela para entrar. Não era muito alta, porém os garotos tiveram que improvisar, colocando uma caixa de madeira para ajudar como degrau do lado de fora e do lado de dentro. Eva foi primeiro, seguida de Sebastian.

       O lugar até que era grande, com pilhas e pilhas de caixas por todos os lados, mas havia um lugar no meio do galpão em que o espaço era mais aberto e eles ali ficavam, onde não havia goteira e onde as caixas os protegiam de olhares furtivos, caso um curioso fosse espiar.

       Assim que Sebastian fechou a janela pela qual entrou e desceu da caixa de madeira, foi surpreendido por um grito de espanto de Eva.

       - Tem alguém ali. – ela sussurrou.

       - É claro que tem! – Pietro disse vindo das sombras com uma vela na mão. – Quem é ela? – dirigiu-se curioso a Sebastian.

       - O nome dela é Eva. - disse ele calmo. – Esse é Pietro, meu amigo.

       - Sou tão seu amigo, que convenci o Guilhermo a pagar o seu dia de trabalho para mim, ou então você iria perder. Onde esteve? – mesmo com a fraca luz, podia ver um ar contrariado.

       - É uma longa historia. – disse disfarçando ao indicar sorrateiramente a garota ao lado.

       - Ah! Entendi. – Pietro sorria zombeteiro, lançando um olhar malicioso em direção ao amigo. – Vamos, Luigi está esperando e já aviso, está de mau humor, acho que está de TPM.

       Atravessaram um labirinto de coisas até chegarem ao espaço em que eles dormiam. Como cama, cada um havia feito uma pilha de tecido de algodão, uma mercadoria a muito esquecida naquele galpão, de forma que formavam um circulo com uma fogueira no centro que esquentava e iluminava o lugar. Luigi, que estava sentado em sua cama observava enquanto os três se aproximavam.

       - Onde esteve? – disse ríspido.

       - Já é a segunda pessoa que me pergunta isso em menos de cinco minutos, e antes que me pergunte quem é ela, o nome é Eva. – Sebastian disse na defensiva.

       - Na verdade, o que eu ia te perguntar era porque trouxe uma estranha pra cá sem nos consultar primeiro? – disse com visível aspereza. – Aqui não é ponto turístico.

       - Foi preciso. – Sebastian argumentou.

       - Foi uma atitude imprudente e sabe disso. – Luigi alfinetou.

       - Que seja, eu não ia deixá-la sozinha do modo como estava. – alterou-se.

       Então rapidamente contou tudo o que havia acontecido desde que parara para ver o por do sol.

       - Desculpe-me Eva, - disse Luigi sem jeito. – mas não podemos confiar em todo mundo nesses dias. Ainda mais quando nosso amigo aqui ainda não entendeu o conceito de esconderijo. – estendeu a mão para cumprimentá-la. – Não se preocupe, terá um lugar seguro para ficar essa noite, não temos muito, mas o que temos dividimos.

       - Muito obrigada. – apertou a mão de Luigi com um sorriso forçado.

       - Não liga para ele, é paranoico. – Pietro sussurrou no ouvido dela, dessa vez arrancando um sorriso sincero de Eva.

       Sentaram-se em volta do fogo. Eva fez questão de sentar-se ao lado de Sebastian, não sabia por que, mas em meio aquela confusão em que sua cabeça estava sentia-se bem ao lado dele, protegida.

       Os rapazes conversaram durante um bom tempo, no qual Eva ficara em silêncio absorta em pensamentos, da mesma forma em que Sebastian a observava e tudo o que podia imaginar era o motivo de tamanho desatino. Não conseguia entender porque alguém tiraria a própria vida.

       Depois de um tempo, quando perceberam que já estava ficando tarde, os garotos arrumaram para ela uma cama como a deles e se recolheram.

       - Boa noite para os que ficam, - disse Luigi. – estou cansado demais e temos que levantar cedo amanhã. – disse afastando-se e indo em direção a sua cama, seguido de Pietro, deixando os dois sozinhos.

       Um silêncio sepulcral pairou entre os dois que observavam a fogueira crepitando.

       - Você não está muito a fim de conversar, não é? – Sebastian disse quebrando o silêncio.

       - Eu não estou num dia muito bom. – ironizou.

       - Notei. – disse no mesmo tom. – Quer conversar sobre isso? – Sebastian disse de um jeito que a fez rir.

       - Tenho tantos problemas que nem sei por onde começar. – olhou bem nos olhos dele. – Deve estar pensando que eu sou louca ou algo assim, não é?

       - Na verdade, eu estava pensando no que teria acontecido de tão ruim para achar que dar um “mergulho” fosse a resposta. – disse direto fazendo Eva desviar o olhar.

       - É uma historia triste demais, e a muito tempo deixei de acreditar em finais felizes.  – disse ficando com uma expressão muito triste. Sebastian sabia que ela devia estar sofrendo muito.

       - Todos nós aqui temos historias tristes, - disse serio. – mas nos fazemos nosso final. Não desista por causa de um tombo apenas, mesmo que seja difícil sempre há um motivo para continuar vivendo. Mesmo que o motivo não seja dos mais nobres. – pensava em Robert Murphy e sua promessa de matá-lo um dia.

       - Fala por experiência própria? – perguntou intrigada. – Assim tão jovem?

       Sebastian riu forçadamente.

       - Eu disse que todos nós temos historias tristes.

       - Qual é a sua? – interessou-se.

       - Vamos fazer assim, como nenhum de nós esta a fim de dar a sua biografia, algum dia desses nos sentaremos e conversaremos longamente sobre isso. Tudo bem?

       - Tudo bem. – ele respondeu.

       Os dois estavam sentados lado a lado e num gesto de cansaço, Eva encostara a cabeça no ombro de Sebastian que enternecido colocara seu braço em volta dela. Olhando assim ela parecia tão indefesa, perdida, sozinha, alguém como ele, que precisava de um pouco de carinho. Queria poder confortá-la, queria poder fazer as coisas que a assustavam irem embora, mas como, se tinha ainda dificuldade de lutar contra os próprios demônios.

       - Tudo vai dar certo, querida. – disse Sebastian.

       Eva o abraçou mais forte nesse momento.

       - Eu nunca me senti tão protegida como estou me sentindo agora. Será que eu estava certa quando te chamei de anjo?

       - Não sou anjo.

       Abraçados, eles se olharam por um momento.

       - Então, não será pecado se eu fizer isso.

       Com delicadeza, Eva passou os dedos pelos cabelos negros de Sebastian, descendo até a nuca, então puxou ele para si beijando-o profundamente. Foi algo tão inesperado, que ele ficara sem reação por um momento, confuso, apenas deixando-se ser beijado por Eva. Ele era totalmente inexperiente, fora o beijo na beira do rio. Não sabia como reagir, nem onde tocar, nada. Ela se afastou um pouco e olhou nos olhos dele, sorrindo ao notar que ele estava totalmente perdido. De novo ela aproximou-se e beijou seus lábios, propositalmente entreabertos, incitando-o a fazer o mesmo e quando ele o fez, ela delicadamente introduziu sua língua na boca dele fazendo-o gemer baixinho, ao mesmo tempo em que explorava suas costas. Sebastian sentia um calor subir por sua espinha e uma sensação em seu interior que nunca havia sentido antes, e quando estava começando a corresponder o beijo, Eva de repente se afastou.

       - É melhor parar antes que eu estrague tudo. – disse sem jeito. Sebastian apenas assentiu com a cabeça em silêncio. – Boa noite.

       Eva disse antes de se afastar e ir em direção a sua cama recém-construída e deitou-se deixando Sebastian sozinho. Ficou um bom tempo pensando nisso. Entendia Eva, ela estava muito carente, só isso. E um beijo não tinha nada de mais, embora ela tivesse deixado ele de um jeito que nunca imaginara estar. Foi realmente melhor terem parado antes que. . .  bem, foi melhor assim. Tudo certo. Então porque ainda estava tremendo?

       Foi para a sua cama e tentou dormir para tirar isso da cabeça e quando acordou de manhã, Eva não estava mais lá. Pietro disse á ele que ela havia ido embora assim que o sol nasceu.

       - Eu não entendi muito bem o que ela disse, mas deixou um recado para você, ela disse que ia fazer seu “final feliz”. – disse com um olhar confuso.

       Sebastian sorriu, pois sabia que Eva ficaria bem onde quer que esteja, e que talvez algum dia se encontrariam de novo.

 

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

2

"Sebastian" capitulo V , por Natalia de Oliveira

Parte I
Capitulo V
"O caso é fechado"
 

       Davis lia atentamente mais uma vez, o dossiê do caso Desmont no escritório do necrotério antes de começar a examinar o cadáver exumado. Como o prestativo delegado avisou-lhe, achou na entrada do necrotério do outro lado do balcão o porta-chaves com as demais chaves do recinto.

       O escritório era simples, claro, mas o que o diferenciava de sua própria sala em Washington era aquele cheiro frio, aquele cheiro de morte. Mesmo desativado por meses, o cheiro forte permanecia e incomodava. Não era éter misturado com desinfetante, cheiro dos hospitais que conhecia. Era formol e sangue. Um odor característico, inebriante, sinistro, digamos assim.

       Havia armários dos dois lados da sala, do tipo arquivos. Á frente uma porta e atrás a única janela, com uma vista incrivelmente sinistra dos túmulos lá fora, dos cidadãos mortos de Aaron River. Como era de noite, a luz do teto estava acesa e a luminária na mesa também e mesmo assim havia penumbra.

       O dossiê tinha uma capa amarelo-palha padrão com uma etiqueta na frente dizendo “Caso Desmont”, e era isso o que havia em seu interior: Uma foto da oficina queimada; uma foto de Kevin Desmont e de seu filho Chandler juntos, numa tarde de sol em frente á oficina; uma cópia do boletim de ocorrência informando a tragédia e um pequeno relatório que dizia assim:

 

       12 de Abril de 1983

        No dia 11 de Abril, aproximadamente ás 20:30 p.m., teve inicio um incêndio no n° 52 da Rua Savior Street, um sobrado que era uma estabelecimento comercial (Oficina de Autos Desmont) no primeiro andar e residência habitada no segundo andar. A causa do incêndio: desconhecida, possivelmente criminosa”

       “Vitimas: 2. Uma falecida e uma desparecida.

        Falecida: Kevin Scott Desmont, 36 anos, causa da morte: Carbonização.

        Desaparecida: Chandler Scott Desmont, 13 anos, paradeiro: desconhecido vivo ou morto.”

 

       Esse relatório era uma piada, ridículo, um insulto á sua inteligência! Do jeito que estava, só podia ter sido escrito pelo imprestável do Delegado Piston. Jogou o papel na mesa pensativo. Porque a criança estava desaparecida? Aonde poderia estar? Como o fogo começara? Remoía essas ideias tentando achar alguma resposta para esse caso tão obscuro, tão estranho. Na verdade, estava lá para tentar encontrar essa criança, viva ou morta. Pegara então a foto em que pai e filho se abraçavam em frente à oficina. Os dois eram de fato muito parecidos, os olhos principalmente. Tinha que achar a criança, poderia estar perdida na floresta, ferida, faminta, assustada, precisando de ajuda. Iria encontra-la de qualquer modo.

       Arrumou os papéis de volta na pasta e deu um longo suspiro antes de levantar-se da poltrona. Caminhou pelo escritório e saiu deixando a porta aberta, o necrotério estava vazio. Passava pelo corredor que levava ás salas de necropsia 1 e 2, e nesse corredor havia também uma porta com uma placa pendurada dizendo “almoxarifado”. Chegou à sala 2 onde o corpo de Kevin estava e abriu a porta.

       Os coveiros, muito prestativos, tiraram o corpo de Kevin do caixão e o colocaram sobre a mesa cirúrgica. Ele havia sido enterrado nu, coitado.

       Tudo já estava arrumado para o procedimento. A bandeja com os instrumentos cirúrgicos previamente esterilizados se encontrava junto á mesa, a luz forte estava focada no corpo, estava tudo pronto. Davis encontrara um avental e já o estava usando. Dirigiu-se á pia que ficava no canto da sala, subira as mangas da camisa e começara a lavar as mãos com sabonete antisséptico. Fechara a torneira, enxugara as mãos numa toalha esterilizada também. No balcão da pia encontrava-se uma caixa de luvas descartáveis de borracha, colocara uma por uma, voltando-se para a mesa em seguida.

       De seu bolso, Davis pegara um pequeno gravador e o depositara na bandeja de instrumentos. Parou um pouco, para observar o corpo de Kevin, respirou fundo, fechou os olhos concentrando-se. O que esperava encontrar ali? A causa da morte parecia obvia, obvia demais para seu gosto. Virou-se, dirigindo-se agora para um pequeno armário atrás dele com portas de vidro que mostravam ampolas com substâncias diversas, caixas com gazes, mascaras e luvas. Abriu a porta e pegou a caixa com as mascaras cirúrgicas, rapidamente abriu a caixa e pegou uma, amarrando-a cuidadosamente em seu rosto antes de voltar á mesa. Pegara então o gravador, apertando o botão rec e o aproximara do rosto.

       - Agente Clark Davis, caso Desmont, necrotério de Aaron River, quinze de maio de mil novecentos e oitenta e três, sete e vinte e cinco da noite, iniciando a necropsia de Kevin Scott Desmont, homem branco, 36 anos. – afastou o gravador por um minuto, observando o corpo.

       Colocara outra vez o gravador na bandeja e voltou a observá-lo.

       - Em primeira observação, o corpo está totalmente queimado, mas não carbonizado, ele não está em posição de boxer. Vou poder examinar os órgãos internos. – começou a apalpar a perna direita, depois a perna esquerda e depois subiu para os braços, indo depois para as costelas. – Há sinal de fratura na costela. Começarei a necropsia fazendo uma incisão na caixa torácica, á procura de algum órgão rompido, mesmo a vitima tendo entrado em óbito há vários dias.

       Pegara o bisturi e olhava mais uma vez para o cadáver. Era uma visão horrível, lembrava-se do homem belo da foto e olha para o corpo irreconhecível, tostado. Apertava-lhe o coração imaginar qualquer pessoa tendo um fim como esse. Imaginava se Kevin ainda estaria vivo quando o fogo começou a tomar conta do coitado. Algo lhe dizia que não, e era baseado nisso que iria examiná-lo. Depois de cortar a carne torrada como um churrasco, pegara o costótomo, (que era algo parecido com uma tesoura, utilizado para cortar as costelas dos cadáveres) e com o instrumento abrira a caixa torácica de Kevin com certa dificuldade. Observava atentamente os órgãos, todos pareciam em ordem, sem fissura. Realmente, uma costela estava fraturada.

       - Encontrei apenas uma costela fraturada, os órgãos parecem normais. . .

       Como queria saber se Kevin estava morto antes do fogo começar, Davis se concentrou no aparelho respiratório dele, a faringe, a laringe, traqueia, pulmões, procurando por sinais de fuligem e para sua surpresa, estavam limpos.

       Observava os órgãos e constatava que não havia sinal de fumaça, ou material estranho, nem nada que levasse á conclusão de que Kevin houvesse inalado fumaça, via isso perplexo. Tudo indicava que Kevin estava morto antes do fogo ter começado, pois, não havia como uma pessoa morrer asfixiada sem que seu pulmão fosse afetado.

       - Kevin Desmont não morreu asfixiado pela fumaça. – disse subitamente. – Então. . .

       Olhava para ele implorando uma resposta, fixando seu olhar atento á cada parte do corpo, tentando achar alguma coisa. Afinal, se não morrera no incêndio, como morrera?

       - Anda meu amigo, me diz oque aconteceu. – Davis disse baixo demais para ser gravado.

       Só então reparou na cabeça completamente torrada de Kevin e só agora notara aquilo, que não havia percebido até então, mas que quase o fez cair para trás.

       - Há um orifício no crânio, na têmpora direita. . .

       Pegara uma pinça grande e inseriu no orifício, guiado pelo instinto, procurando qualquer coisa, e achou, a pinça agarrou algo duro e pequeno. Davis puxou o objeto com cuidado e tirou de dentro da cabeça de Kevin, uma bala prateada. Admirava seu achado, segurando-o ainda com a pinça.

       - Encontrei no crânio de Kevin Scott Desmont um projétil de pistola semiautomática. A vítima foi assassinada. -     com a mão que estava livre apertou o botão stop do gravador e continuou a observar a bala.

       - Eu sabia. – sorriu, falando consigo mesmo, satisfeito com seu trabalho.

       Agora com essa nova evidência, toda a investigação tomaria um novo rumo e Davis tinha certeza de que iria mexer com o perigo. Porque um simples comerciante havia sido assassinado? Certamente tinha alguém querendo encobrir seus rastros, mas quem?

 

       No dia seguinte á essa descoberta, que causaria uma reviravolta no casa Desmont, outra reviravolta acontecera logo pela manhã. O Agente Davis hospedara-se numa modesta pensão no centro da cidade, sentia que passaria um bom tempo em Aaron River. Não havia dormido, tamanha a excitação que aquele simples objeto de metal causara, fazendo duas palavras martelarem em sua cabeça durante a noite toda: quem e por quê.

       Outra coisa que o preocupava agora, será que o garoto havia presenciado o crime? Será que era por isso que estava desaparecido? Será que fora também assassinado e jogado em algum lugar da floresta, num buraco, ou no fundo do rio? Esse fato novo dava inicio a várias especulações, sem respostas fáceis.

       O quarto daquela pensão era mais do que simples, era o necessário: uma cama, um criado mudo, uma mesa com quatro cadeiras e um armário, só. Davis estava sentado á mesa com aquele dossiê que já havia se tornado inútil á sua frente e lembrava-se com saudade do seu apartamento em Washington.

       Olhou para o relógio de pulso e viu que eram oito e meia da manhã. Só então que reparou que, além de não ter dormido, também não havia tomado banho nem comido nada. Resolveu que iria tomar um banho e depois iria sair para comer alguma coisa em alguma lanchonete.

       Depois de ter tomado o banho, colocou uma roupa limpa, outro terno bem alinhado, claro. Não era porque estava onde Judas perdera as botas que deixaria de se vestir de acordo com sua posição. Calmamente desceu as escadas que levavam á recepção da pensão em que estava, que era bem acolhedora. Dirigiu-se ao balconista que era um senhor já de idade, com os poucos fios de cabelo branco que lhe restavam e um olhar simpático.

       - O senhor me recomenda algum lugar para tomar um bom café da manhã?

       - Sim, a lanchonete do Soyer, a umas duas quadras daqui. Não tem como errar. – disse com um sorriso simpático.

       - Pode me avisar se alguém vier procurando por mim?

       - Pode deixar.

       - Obrigado. – já ia saindo quando se voltou outra vez para o velho. – Pode me dizer também, se não for pedir demais, onde fica a oficina de Kevin Desmont?

       O velho ficou sério, todo aquele ar alegre que ele demonstrava se esvanecera, dando lugar á uma expressão séria.

       - É do outro lado da cidade, - respondera sombrio. – perto do bosque. Pegue a Avenida Comercial e virando a direita, entre na Savior Street. É a ultima casa da rua.

       - Obrigado outra vez. – agradeceu antes de sair de lá surpreso com a mudança de humor do velho homem.

       No estacionamento pegara o carro que havia alugado e saiu, observando as casas ao redor. Notara que, conforme passava, as pessoas o olhavam de um modo estranho. Será que a notícia de que exumara o corpo de Kevin Desmont para examiná-lo já se espalhara, ou simplesmente não gostavam de estranhos?

       Realmente tomara um ótimo café da manhã na lanchonete do Soyer, que o velho balconista lhe indicara e lá, sentado numa das mesas perto da janela de vidro, tomou uma decisão: iria até a oficina, queria ver o local em que tudo acontecera e iria sozinho. O certo seria ir acompanhado do Delegado Piston, mas se ficasse dependendo da boa vontade dele, jamais iria concluir essa investigação.

       Dirigia pela Avenida Comercial, cheia de estabelecimentos, lojas e lugares assim, observando a cidade. Aaron River era, sem dúvida, uma cidade pequena típica: senhoras de idade conversando nas varandas, crianças brincando nas calçadas, observadas pelas mães que faziam croché em bancos na praça. Nada parecido com o movimento de sua cidade, onde as coisas aconteciam rápido demais para poder acompanhar, ali ao contrário, tudo parecia fluir lentamente.

       Virou á direita e logo na entrada vira uma placa que dizia Savior Street. Seguiu por ela, ouvindo o barulho do rio que não devia estar muito longe e ao final da rua, pôde ver os escombros de uma construção incendiada, só podia ser ali, então, estacionou o carro, atravessou a rua, adentrando a área isolada com aquela fita amarela sem ao menos ser percebido. Não havia movimento naquela rua.

       Quase não restara nada da casa, tudo eram vigas e pilastras queimadas, o esqueleto morto do que um dia fora uma casa. Impressionante, o fogo acabara com quase tudo, menos o que era de metal, como os instrumentos de trabelho de Kevin. O cheiro de queimado ainda persistia no local, fazendo-o imaginar o momento em que o incêndio começara. Havia se espalhado rápido, vendo o estrago que causara.

       Davis andava pelo lugar, analisando cada parte, mas era difícil caminhar naquele terreno. Observava tudo, tentando achar algo que sustentasse sua mais nova teoria de que o incêndio era criminoso. Deparou-se com uma parte da oficina que ficara de pé: meia parede com um armário com as portas abertas. Davis abaixou-se e viu que dentro do armário havia latas de óleo lubrificante e outros produtos usados na oficina e notou, quem diria, que alguns eram inflamáveis e isso já era alguma coisa.

       Davis começou então a ponderar que talvez um desses produtos tivesse sido usado para começar o fogo. Olhou bem para todas as latas no armário e notou que estavam intactas e cheias. Mas a porta estava aberta, e alguns estavam tombados, a última pessoa a mexer ali estava com pressa.

       Começou a procurar pelo chão e viu que os fundos da casa davam para um bosque. “Só pode estar lá.”, pensou. Foi entrando no bosque, olhando para o chão atentamente, procurando por qualquer coisa que pudesse ter sido usada no incêndio, quando a uns dez metros bosque adentro viu algo brilhar. Correu até lá e viu que era uma lata de tiner. Havia sido furada com um objeto pontiagudo, num orifício comprido e fino como uma faca faria, e o melhor, estava completamente vazio. Não é necessário dizer que tiner é totalmente inflamável.

       Tinha agora a prova que faltava. Isso já deixara de ser considerado acidente há muito tempo, agora era oficialmente assassinato com de ocultação de cadáver, e nenhum juiz negaria isso. Como Piston deixara isso passar? Que ele era muito incompetente, isso era óbvio, mas havia algo errado. Parecia propositalmente negligente com relação a esse caso. Ele seria investigado também, isso era questão de tempo.

       Ouviu um barulho como o de folhas secas sendo pisadas por alguém leve. Levantou a cabeça e viu uma menina de cabelos loiros, usando uma calça jeans e uma camisa de beisebol com mangas amarelas. Ela era linda e olhava diretamente para ele com uma expressão séria.

       - Você é o cara do FBI? – April perguntou.

       - Sou o Agente Clark Davis. – respondeu levantando-se e deixando a prova no chão. – Quem é você?

       - Pode me chamar de April. – aproximou-se caminhando por entre as árvores. – Oque descobriu até agora?

       - Esse é um assunto de policia, uma garota da sua idade não devia estar. . .

       - “Bisbilhotando”? – riu forçadamente. – Só queria ver á quantas anda essa investigação com você, porque o delegado daqui é uma negação.

       - Conhecia as vitimas?

       - Conhecia. – disse com visível pesar.

       - Sabe de alguma inimizade que pudessem ter? Alguém que não gostava deles?

       - Fora todo mundo? – disse em tom de sarcasmo.

       - Como assim?

       - Eles eram de fora, intrusos, o povo daqui não gosta de estranhos. Já devia ter percebido isso. Pouca gente aqui vai sentir falta deles.

       Ele ficou um tempinho absorvendo essas palavras.

       - Você sabe de alguma coisa, não sabe? – Davis disse o obvio.

       - Só sei o que você já sabe. – April disse dando á entender que já tinha conhecimento que Kevin havia sido assassinado. – Nada mais.

       April dera as costas a Davis e afastava-se, voltando para o bosque.

       - April, espere. – Davis chamou-a, sentia que ela sabia de mais coisas, mas que não queria contar.

       - Não quero atrapalhar. – virou-se sorrindo. – Mas boa sorte. Seria bom ver um pouco de justiça sendo feita por aqui.

       E virando-se outra vez, entrara no bosque e sumira por entre as árvores sob o olhar atento de Davis. “Quem era ela?”, pensava. Aquela garota chegara do nada e lhe dera uma boa informação e desaparecera tão repentinamente quanto chegara. Davis percebera em seu olhar certa indignação a respeito da “justiça”. Queria vê-la de novo.

       Bem, com a bala encontrada no cadáver de Kevin, a lata de tiner no terreno e essa conversa misteriosa com April, o caso mudava de figura. Agora teria que descobrir quem era o responsável por esse crime. Teria que descobrir onde estava a arma do crime e ligá-la a alguém. Mas quem? O pior é que nada disso levava ao paradeiro de Chandler Desmont.

       Recolheu a lata de tiner furada com todo o cuidado e saiu da propriedade, atravessou a rua e colocou a lata em um saco plástico antes de colocá-lo no porta-malas do carro. Iria para a delegacia imediatamente.

 

        Já era quase meio-dia quando Davis chegou à delegacia. O dia estava ensolarado como todos os dias daquela primavera e embora o dia estivesse lindo do lado de fora, o clima fecharia dentro da delegacia. Davis entrou no recinto carregando sua pasta e o saco plástico no qual colocara a lata. Entrara na sala de Piston abarrotada de arquivos e fichas, encontrando o delegado sentado em sua poltrona, estava analisando alguns papeis com uma expressão particularmente preocupada.

       - Delegado Piston, - disse ao entrar – eu sabia que você não é muito ligado em detalhes, mas deixar isso passar é demais. – disse jogando a prova na mesa, assustando-o.

       - Mas o que é isso? – disse Piston sobressaltado.

       - É a diferença entre você e eu: eu faço o meu trabalho. Encontrei isso no terreno do Desmont, agora a pouco, e fora isso, encontrei uma bala na cabeça dele. A causa da morte te parece clara agora? – disse com aspereza.

       - Eu já sabia, - disse sério, fazendo Davis ficar com uma expressão intrigada.

       - Como? – perguntou pasmo. – Como já sabia? Fiz a necropsia ontem, o meu relatório ainda não está pronto.

       - Uma testemunha veio à delegacia um pouco antes de o senhor entrar como um tiro, fazendo esse escândalo todo. Veio com um depoimento bastante esclarecedor. – disse com a expressão mais séria que encontrou.

       - Uma testemunha? – ainda absorvia essa informação.

       - Sim

       - E por que ela só apareceu agora? – indignou-se.

       - Por que só agora você chegou à cidade, deixando ela segura para falar.

       Davis precisou sentar-se numa cadeira a frente da mesa do delegado

       - O que ela disse?

       - Segundo ela, ela estava com problemas no carro e foi até a oficina do Desmont. Ela viu no momento que chegou, ainda de dentro do carro Chandler Desmont atirar no pai, furar uma lata de Tiner, espalhar em volta da casa e atear fogo.

       Essa informação deixara Davis mais chocado ainda. A menção desse nome como assassino fez ele quase cair da cadeira.

       - O garoto? Não pode ser.

       - Por que não? Não o conhecia. – disse em tom superior. - Veja:

       Piston entregara á Davis os papéis que estava analisando quando ele chegara. Eram várias passagens de Chandler pela delegacia por perturbação da paz, depredação, e outras violações que lhe conferiam o status de delinquente.

       - Para tudo! Mas oque é isso? Além da imaginação? Como não fui informado disso antes? Está me dizendo que Chandler Desmont era na verdade um delinquente e assassino? – disse chocado.

       - Eu também não queria acreditar que aquele garoto cometeu esse crime terrível, até que eu achei isso aqui.

       O delegado jogou para ele outro boletim de ocorrência, com data de um mês atrás, reportava o furto de uma arma semiautomática de propriedade de Robert Murphy.

       - Creio que a bala que você encontrou no cadáver bate com o modelo dessa arma

       - É. – respondeu pensativo. – Bate.

       - A vítima não soube dizer quem havia roubado a arma. Na época, eu não dei importância ao caso, não achei que tivessem ligação, mas depois desse depoimento, juntando as peças fica claro, não acha? Está tudo ai, em suas mãos: as ocorrências em que ele estava metido; o boletim do roubo da arma; o depoimento da testemunha. – o delegado suspirou – O pequeno Chandler Desmont é um assassino.

       Davis tinha que admitir que pela primeira vez, o que Piston dizia fazia sentido. Mas uma coisa não encaixava.

       - Se ele fez mesmo isso, onde ele está?

       - Morto. – Ele recostou-se na poltrona - A testemunha disse que depois de incendiar a casa, ele correu até a margem do rio e com a arma que havia matado o pai, deu um tiro na própria cabeça, caindo na água. O rio o levou e a arma também.

       - Morto? – ainda não acreditava. Será que todo esse tempo achando que Chandler Desmont era uma vitima inocente estava errado? – Mas porque ele faria isso?

       - Como eu disse, você não o conhecia. Ele era um horror, briguento e sem mãe. – disse com calma - Talvez culpasse o pai pela morte dela, talvez o pai abusasse dele á noite, sei lá. O fato é, Agente Clark Davis, que a meu ver este caso já esta esclarecido. Ele será arquivado. – continuava o teatro sem ao menos ficar vermelho. – Volte para Washington tranquilo, não há mais nada a ser feito.

       Abalado ainda, Davis levantou-se da cadeira em que estava e dirigiu-se á porta de saída. Mas deteve-se e virou-se outra vez para o delegado.

       - Se tudo o que disse for verdade, deve ser um alívio para vocês.

       - O que? – disse sem entender.

       - Eles mesmos lhes pouparam o trabalho sujo de enxotá-los para fora.

       Girou nos calcanhares e saiu, deixando Piston sozinho no eco daquelas últimas palavras.

       - Eu sei que vou queimar no inferno por isso. – sussurrou finalmente desmanchando a feição seria dando lugar a uma consternada.

       - Todos nós vamos. – Robert Murphy saía de trás de um daqueles armários de arquivos que lotavam a sala, estivera ouvindo a conversa o tempo todo, escondido como a cobra que era. – O importante é que o caso está encerrado e estaremos livres desse estorvo do FBI pela manhã. – ele caminhava pela sala com o sorriso mais vitorioso que já exibira.

       - Não foi nada fácil mentir para ele se quer saber. Ele sabe que tem alguma coisa errada. Eu te disse que ele é esperto, ele não vai engolir.

       - Mas você foi convincente. Até eu quase acreditei que você fosse uma autoridade dedicada e responsável. – zombava. – ele vai engolir essa história sim, fique tranquilo.

       - Até quando isso vai durar? – desesperava-se. – Até quando vou ter que forjar documentos e mentir por você?

       - Até a hora que eu disser para parar. – Robert sibilou com um olhar felino e respirou fundo. – Menos um problema, mas como tenho milhares deles, não posso ficar aqui perdendo meu preciosíssimo tempo com você. – disse antes de sair da sala, deixando Piston sozinho.

       - Que Deus tenha piedade de nós. – disse aflito.

       Mas Robert não pensava assim, para ele, nada aconteceria, jamais seria pego. Não se importava com o fim que Chandler Desmont levara, nem se importava agora com o que iria acontecer em seu futuro. Só pensava que era rico, poderoso, e que tinha controle sobre tudo e todos. A vida era maravilhosa assim e não deveria mudar. Durante anos, foi a última vez que pensou nos Desmont.

 

       Davis demorou a voltar para a pensão depois de todas aquelas revelações. Almoçou em um restaurante e deu uma volta na cidade, sempre sob o olhar atento dos outros. Olhava para eles e sentia uma ponta de raiva. Eram tão atrasados, não gostavam de forasteiros e mudanças e certamente não se abalaram nem um pouco com esse crime. Podia até apostar que se procurasse, encontraria alguma bandeira nazista.

       Voltou para a pensão quase ás seis da tarde. Passou pelo balconista velho com o qual conversou de manhã e percebera que ele dormia sentado em sua cadeira do outro lado do balcão. Passou direto e subiu as escadas para seu quarto. Ao abrir a porta de seu quarto, a primeira coisa que fez foi procurar a foto de Kevin e Chandler, encontrando-a em cima da mesa, junto com os outros papéis.

       Chandler Desmont era o causador de tudo? Não podia ser. Tinha algo muito estranho naquele depoimento repentino. Olhava para a foto em que pai e filho apareciam juntos, se abraçando. Era uma dupla de amigos, Kevin não parecia ser do tipo que espancava o filho e aqueles olhos verdes não podiam ser tão dissimulados e esconder uma personalidade psicopata. Não se conformava.

       Porém não importava o quanto seu instinto lhe dissesse que Chandler era tão vitima quanto Kevin, as provas diziam o contrário. Tinha que aceitar e continuar em frente, de volta a Washington.

       Ouvira então alguém bater na porta de seu quarto. Intrigado, caminhou em direção á porta e a abriu, deparando-se com a garota loira que havia encontrado aquela manhã no bosque, April.

       - April, o que faz aqui? – Davis disse surpreso.

       - Eu te segui. Pode deixar, ninguém me viu. O velho lá em baixo está dormindo.

       - É, eu sei. – ele deu um meio sorriso, imaginando a cena: April passando de mansinho na ponta dos pés enquanto o balconista roncava alto.

       - Posso entrar? – disse um tanto aflita.

       Davis olhou para um lado, depois para o outro, viu que ninguém via e abriu passagem para ela, fechando rapidamente a porta em seguida. Se já olhavam torto para ele só por ele ser de fora, imagina se o vissem recebendo uma garotinha no seu quarto.

       - É bom eu não me arrepender de ter deixado você     entrar. – ele disse em tom de brincadeira enquanto fechava a porta.

       - Não acredite neles! – disse ela suplicante de repente, fazendo-o ficar sério. – Aquilo não é verdade!

       - Do que está falando?

       - Eu te segui lembra? Ouvi tudo oque aquele delegado meia-boca disse sobre Chandler ser o assassino e não é verdade!

       - Há documentos provando o que ele disse. - parecia tensa sua expressão. – Não posso ir contra isso.

       - Chandler tinha lá seus problemas, mas jamais mataria alguém, muito menos o próprio pai. Continue investigando e vai ver.

       - As provas. . . – Davis tentava fazer com que a garota entendesse sua posição.

       - Que se danem as provas, eu sei o que falo! Não sou nenhuma menininha idiota que não sabe o que acontece por aqui! – parecia furiosa.

       Davis olhava para aquela criança tão persistente com um aperto no coração. Queria poder ajudá-la, mas o caso fora fechado. Ela parecia ter certeza que havia algo errado nessa investigação que quase o convencia. Não, estava começando a se envolver de mais.

       - Olha, o caso está fechado e eu vou voltar para Washington amanhã.

       Via a garota a sua frente com os olhos azuis marejados de lagrimas caminhar até a mesa, puxar uma cadeira e sentar derrotada. Davis fez o mesmo, sentando-se em uma cadeira em frente á ela. Não gostava de vê-la chorar assim e sentia-se mal por decepciona-la.

       - Pelo o que eu estou vendo, você gostava muito deles.

       - Chandler era importante para mim. – April limpava o rosto com as mangas da blusa. – Nós éramos muito parecidos, meio estranhos, um compreendia o outro, se me entende. – ela suspirou pesadamente. – Nunca mais vou conhecer ninguém como ele.

       - Você pode achar que houve negligência da policia e pode até ter havido. Mas você vai poder olhar para trás depois e dizer que você não foi negligente. – disse tentando confortá-la. – Aonde quer que esteja, Chandler deve estar feliz por saber que você não desistiu dele.

       - Mesmo assim, não consegui trazê-lo de volta.

       April levantou-se, passou a mão nos cabelos e dirigiu-se á porta do quarto devagar, mas parou no meio do caminho e voltou-se para Davis de cabeça erguida. Ele viu quando sem falar mais nada ela abriu a porta e saiu deixando Davis com a desconfortável sensação de que a decepcionara.

       Arrumou tudo antes de dormir. Os papéis, a mala, todos os documentos, e antes de pegar no sono era naquela menina que pensava. Na manhã seguinte partira de Aaron River, levando consigo a lembrança de April saindo decepcionada pela porta e lá no fundo, a dúvida que aquela garota conseguira plantar: Seria Chandler Desmont realmente um assassino? Por mais que quisesse afastar esses pensamentos eles sempre voltariam, uma vez ou outra, nos anos que vieram.