sábado, 22 de dezembro de 2012

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"Um conto de Natal" - Charles Dickens

Olá Leitores!!
    Como o mundo não acabou, eu volto com as postagens!! kkk
    Como está chegando o Natal, nada mais justo que um texto natalino, e nenhum texto nataliano teve maior impacto no último século do que o velho e bom "Um Conto de Natal" de Charles Dickens. Para quem não está ligando o nome á pessoa, é o conto dos três espiritos de natal e o avarento.
     Esse conto teve varias adaptações em livros e para o cinema, e como este é um blog literário, faço questão de postar o texto na integra. É o meu presente de Natal para vocês, meus leitores!
Boa Leitura!!!!





Uma Conto de Natal  Charles Dicken






PRIMEIRA ESTROFE



O espectro de Marley



Para começar, digamos que Marley tinha morrido.


Neste particular, não pode haver absolutamente a

menor dúvida; a ata dos seus funerais havia sido

assinada pelo vigário, pelo sacristão, pelo homem

da empresa funerária e pelas pessoas que haviam

conduzido o féretro.

Scrooge também a tinha assinado. Ora, Scrooge era

um nome bastante conhecido na Bolsa, e sua

assinatura era um documento valioso, onde quer

que ele a colocasse. O velho Marley estava tão

morto como um prego de porta.

Perdão! Não quero dizer com isto que saiba por

experiência pessoal o que possa haver de

particularmente morto num prego de porta. Por

mim, eu estaria mais inclinado a considerar um

prego de ataúde como a coisa mais morta que

possa haver no comércio. Mas, como devemos esta

comparação à sabedoria dos nossos antepassados,

tenhamos todo o cuidado em não profaná-la, ou, do

contrário, o país estará perdido. Assim pois, vocês

hão de permitir-me repetir, com insistência, que

Marley estava tão morto como um prego de porta.

Acaso Scrooge sabia que Marley estava morto?

Evidentemente, sim. Como poderia ser de outro

modo? Marley fora seu sócio durante não sei

quantos anos; Scrooge era seu único executor

testamentário, o único administrador dos seus

bens, seu único herdeiro, seu único amigo.

De resto, este triste acontecimento, mais que

suficiente para perturbar qualquer outro, não o

abatera a ponto de fazê-lo perder suas notáveis

qualidades de homem de negócios, pois havia

assinalado o dia dos seus funerais precisamente por

uma especulação das mais felizes.

A menção dos funerais de Marley leva-me

novamente ao ponto de partida. É absolutamente

certo que Marley estava morto. Este ponto tem de

ficar rigorosamente assentado, sem o que, a

história que vou contar não apresentaria nada de

extraordinário. Se nós não estivéssemos

perfeitamente convencidos de que o pai de Hamlet

se achava morto antes de levantar o pano do palco,

o fato de vê-lo passear sobre suas próprias

muralhas, por uma noite de tempestade, nos teria

surpreendido tanto quanto se tal fato se tivesse

dado com um fidalgo qualquer, que altas horas da

noite se levantasse e temerariamente fosse errar

em pleno descampado.

Scrooge não havia apagado jamais o nome de seu

antigo sócio. Depois de tantos anos, ainda se lia

sobre a porta de sua casa comercial o nome de

Scrooge & Marley, pois Scrooge & Marley continuava

como a razão social da firma. As pessoas que não

estavam bem a par das coisas chamavam Scrooge

ora por Scrooge, ora por Marley, mas Scrooge

atendia pelos dois nomes

indiferentemente.

Ah! Scrooge! Com que firmeza ele empunhava as

rédeas dos negócios! Como este negociante sabia

pegar e espremer, agarrar e tosquiar o cliente e,

sobretudo, não irritar ninguém. Duro e cortante

como uma pedra-de-fogo, da qual jamais aço algum

conseguiu arrancar uma única centelha generosa,

Scrooge mostrava-se taciturno, arredio e isolado

como uma ostra. Uma frieza interior enregelava-lhe

os traços decrépitos, ressumbrava em seu nariz

adunco, sulcava-lhe as faces, endurecia-lhe o andar,

avermelhava-lhe os olhos, azulava-lhe os lábios

finos e fazia sentir-se até mesmo em sua voz

estridente. Uma espécie de neblina cobria-lhe a

cabeça, os supercílios e o queixo pontiagudo. Esta

frieza inóspita Scrooge a levava consigo aonde quer

que fosse, de modo que seu escritório continuava

gélido durante o mais intenso calor e não

melhorava um grau nem mesmo pelo Natal.

Quanto à temperatura exterior, pouca influência

exercia sobre ele. Nenhum calor poderia aquecê-lo,

assim como o mais rigoroso inverno não conseguiria

transpassá-lo. Não havia rajada mais áspera que

ele, tempestade de neve mais implacável, chuva

fina mais torturante. O mau tempo não sabia por

onde pegá-lo. Chuva e granizo, neve e frio levavam

sobre ele apenas uma vantagem: todos se

mostravam, uma vez ou outra, pródigos de seus

benefícios; Scrooge, nunca!

Ninguém, jamais, conseguiu pará-lo na rua para lhe

dizer em tom amável: .Como vai, meu caro

Scrooge? Quando terei o prazer de sua visita?.

Mendigo algum animava-se a implorar-lhe a

caridade, nem nenhuma criança se atreveria a

perguntar-lhe as horas. Nem uma única vez, em

toda a sua existência, homem ou mulher havia-lhe

perguntado sobre um caminho. Os próprios cães de

cegos pareciam conhecê-lo, pois desde que o

avistavam procuravam desviar seu pobre amo para

junto de uma porta ou a um quintal qualquer, e ali,

agitando a cauda, pareciam dizer: .É preferível não

ter olhos a ter tão má catadura, meu pobre amo!.

Mas, que importava a Scrooge? Pois era justamente

o que ele queria. Sua maior felicidade era abrir

caminho através das estradas atravancadas da vida,

tendo sempre a distância toda e qualquer simpatia

humana.

**

Um dia, um dos melhores do ano, e véspera de

Natal, o velho Scrooge achava-se em seu escritório,

a trabalhar. O frio era acre e penetrante,

acompanhado de nevoeiro. Scrooge ouvia as

pessoas que iam e vinham na pequena viela,

esfregando as mãos e caminhando rapidamente

para se aquecerem. Os relógios da cidade acabavam

de soar três horas, mas já começava a escurecer, e

as luzes principiavam a brilhar no interior dos

escritórios vizinhos, pontilhando de manchas

avermelhadas a atmosfera cinzenta e quase

palpável do crepúsculo.

O nevoeiro infiltrava-se por todas as fendas,

invadindo o interior das casas pelo buraco das

fechaduras; fora, era tão denso, que, não obstante

a estreiteza da viela, as casas fronteiriças se

tinham tornado imprecisos fantasmas. Diante desta

onda cinzenta que descia progressivamente,

ameaçando envolver tudo em sua obscuridade,

poder-se-ia crer que a natureza inteira se havia

posto ali a fabricar a chuva e a neve.

A porta de Scrooge estava aberta de modo a

permitir-lhe observar seu empregado, que se achava

copiando cartas no compartimento contíguo, lúgubre

cubículo que mais parecia uma cisterna. O fogo de

Scrooge era bem insignificante, mas o de seu

empregado era tão miserável que parecia não

passar de uma única brasa. E tornava-se impossível

alimentá-lo, pois que Scrooge conservava junto de

si a lata de carvão, e quando o pobre rapaz entrava,

com a pá na mão, Scrooge declarava que era

obrigado a dispensar os serviços de um homem tão

gastador. Diante disso, o pobre homem, enrolandose

em seu cachecol branco, procurava aquecer-se na

chama da lamparina, o que não conseguia, por não

ser dotado de uma imaginação suficientemente

viva.

- Bom Natal, meu tio, e que Deus o ajude!

exclamou uma voz jovial.

Era a voz do sobrinho de Scrooge, cuja entrada no

escritório fora tão imprevista, que este cordial

cumprimento foi o único aviso com que o rapaz se

fizera anunciar.

- Tolice! Tudo isso são bobagens!

O sobrinho de Scrooge, que havia caminhado

apressadamente no meio da bruma gélida, tinha o

rosto incendiado pela corrida. Seu rosto simpático

estava vermelho, os olhos brilhavam, e, quando

falava, seu hálito quente transformava-se numa

nuvem de vapor.

- Natal, uma bobagem, meu tio? Parece que o

senhor não refletiu bem!

- Ora! disse Scrooge. Feliz Natal! Que direito tem

você, diga lá, de estar alegre? Que razão tem você

de estar alegre, pobre como é?

- E o senhor, respondeu alegre e zombeteiramente o

sobrinho, que direito tem de estar triste? Que razão

tem o senhor de estar acabrunhado, rico como é?

Não encontrando no momento melhor resposta,

Scrooge repetiu novamente:

- Tolice! Tudo isso são bobagens!

- Vamos, meu tio! Não se amofine! disse o jovem.

- Como não me amofinar, replicou o tio, quando

vivemos num mundo cheio de gente ordinária? Feliz

Natal! . . . Que vá para o diabo o seu feliz Natal!

Que representa para você o Natal, a não ser uma

época em que você é obrigado a abrir o cordão da

bolsa já magra? Uma época em que você se faz

mais velho um ano e nem uma hora mais rico? Em

que você, fazendo um balanço, verifica que ativo e

passivo equilibram, sem deixar nenhum resultado?

Se fosse eu quem mandasse, continuou Scrooge

indignado, cada idiota que percorre as ruas com um

.feliz Natal. na ponta da língua seria condenado a

ferver em sua marmita, em companhia de seu .bolo

de Natal., e a ser enterrado com um galho de

azevinho espetado no coração. Pronto!

- Meu tio! exclamou o jovem.

- Meu sobrinho, tornou o tio num tom severo, pode

festejar o Natal a seu modo, mas deixa-me festejá-

lo como me aprouver.

- Como lhe aprouver? Mas o senhor não o festeja

absolutamente!

- Perfeitamente! disse Scrooge; então, dê-me a

liberdade de não o festejar. Quanto a você, que lhe

faça bom proveito! O proveito que você tem tido até

hoje...

- Há muita coisa de que eu não soube tirar o

proveito que poderia ter tirado, é certo, e o Natal é

uma delas, replicou o sobrinho. Mas, pelo menos,

estou certo de ter sempre considerado o Natal -

fora a veneração que inspiram sua origem e seu

caráter sagrados - como uma das mais felizes

épocas do ano, como um tempo de bondade e

perdão, de caridade e alegria; o único tempo, que

eu saiba, no decorrer de todo um ano, em que

todos, homens e mulheres, parecem irmanados no

mesmo comum acordo para abrir seus corações

fechados e reconhecer, naqueles que estão abaixo

deles, verdadeiros companheiros no caminho da

vida e não criaturas diferentes, votadas a outros

destinos. Assim, pois, meu tio, embora o Natal não

me tenha posto nos bolsos uma única moeda de

ouro ou de prata, estou convencido de que ele me

fez e me fará muito bem, e é por isso que eu

repito: Deus abençoe o Natal!

O empregado não pôde deixar de aplaudir, de seu

cubículo, o sobrinho de Scrooge, mas, logo a seguir,

caindo em si e notando sua inoportuna intromissão,

pôs-se a remexer as brasas vigorosamente,

acabando por apagá-las.

- Eu que o ouça mais uma vez, disse Scrooge, e

você irá festejar o Natal no olho da rua. Quanto a

você, meu amigo, continuou ele voltando-se para o

sobrinho, você é de fato eloqüente; estou mesmo

admirado de que ainda não tenha conseguido um

lugar no Parlamento.

- Não se aborreça, tio, e venha almoçar conosco

amanhã.

Scrooge respondeu mandando-o para o diabo, e o

fez de cara a cara.

- Mas, por quê? exclamou o sobrinho. Por quê?

- Por que foi que você casou? perguntou Scrooge.

- Porque eu amava.

- Porque amava! resmungou Scrooge. Como se isso

não fosse outra tolice maior ainda que festejar o

Natal! Passe bem!

- Mas, meu tio! O senhor nunca vinha à minha casa

antes do meu casamento. Por que arranja esse

pretexto para não vir hoje?

- Boa noite! disse Scrooge.

- Eu não espero nada do senhor; eu nada lhe peço.

Por que não seremos bons amigos?

- Boa noite! disse Scrooge.

- Lamento de todo o coração vê-lo assim tão

obstinado. Não temos, que eu saiba, nenhum

motivo de ressentimento. Foi em homenagem ao

Natal que vim até aqui, e no espírito de Natal quero

ficar até o fim.

- Boa noite! disse Scrooge.

- E feliz Ano Novo!

- Boa noite! replicou Scrooge.

O sobrinho, entretanto, saiu do escritório sem uma

palavra de desagrado. Na porta, deteve-se para

apresentar as boas-festas ao empregado, que,

mesmo tiritando como estava, se mostrou mais

amistoso que seu patrão, pois que respondeu ao

jovem com felicitações cheias de cordialidade.

- Outro predestinado! resmungou Scrooge ao ouvilo.

Imaginem meu empregado a falar de .Feliz

Natal. com apenas quinze xelins por semana, tendo

mulher e filhos!

O tal .predestinado., tendo acompanhado o

sobrinho de Scrooge até à porta, fez entrar dois

cavalheiros de fisionomia simpática e aparência

distinta, os quais penetraram no escritório, tendo à

mão, além do chapéu, vários papéis e documentos.

Na presença de Scrooge, inclinaram-se.

- .Scrooge & Marley., parece-nos? disse um deles,

consultando os apontamentos. É ao senhor Scrooge

ou ao senhor Marley que temos a honra de falar?

- O senhor Marley faleceu há cerca de sete anos.

Morreu nesta mesma noite, fará seguramente sete

anos.

- Não temos a menor dúvida de que a generosidade

do sócio sobrevivente seja igual à dele, disse um

dos cavalheiros, apresentando os papéis que o

autorizavam a pedir.

E não se enganava, pois que os dois sócios eram

bem dignos um do outro.

Diante da inquietante palavra .generosidade.,

Scrooge franziu o sobrolho, sacudiu a cabeça e

devolveu os papéis.

- Nesta festiva época do ano, senhor Scrooge,

prosseguiu o cavalheiro, tomando uma pena, parece

ainda mais oportuno do que em nenhuma outra

ocasião, arrecadar algum dinheiro para aliviar os

pobres e os deserdados da sorte, que sofrem

cruelmente os rigores do inverno. A muitos milhares

de infelizes falta mesmo o estritamente necessário,

e muitas outras centenas de milhares não

conhecem o mais insignificante conforto

- Não há prisões? perguntou Scrooge.

- Prisões não faltam, disse o cavalheiro largando a

pena.

- E os asilos? Não fazem nada? Perguntou Scrooge.

- Sim, de fato, embora eu preferisse dizer o

contrário.

- Então, as casas de correção estão em plena

atividade?

- Sim, estão em plena atividade, senhor.

- Oh! Eu já estava receando, pelo que o senhor me

disse há pouco, que alguma coisa tivesse

interrompido uma atividade tão salutar, disse

Scrooge. Estou

satisfeitíssimo por saber que tal não aconteceu.

- Persuadidos de que estas organizações não

podem proporcionar ao povo o consolo cristão da

alma e do corpo, de que ele tem tanta necessidade,

tornou o cavalheiro, alguns dentre nós resolveram

empreender uma coleta, cujo produto seria

distribuído aos pobres, em forma de alimento,

combustível e roupa. Escolhemos esta época do ano

porque, mais que nenhuma outra, é aquela em que

mais cruelmente se faz sentir a penúria e em que o

conforto se torna mais doce. Quanto posso pôr em

seu nome?

- Nada.

- Desejaria guardar o anonimato?

- Desejo que me deixem em paz; já que os

senhores querem saber, é isso que eu desejo. Eu

não faço banquetes para mim próprio pelo Natal,

vou agora dar banquete aos vagabundos! Já faço

muito em dar minha contribuição às organizações

de que falamos ainda há pouco, e elas não ficam

barato! Aqueles que tiverem necessidade que

recorram a elas.

- Muitos não o podem fazer, outros preferem a

morte.

- Se preferem a morte, disse Scrooge, está ótimo!

Que morram! Isso virá diminuir o excesso de

população. De resto, queiram desculpar-me, porém

não estou bem a par dessa questão.

- Mas o senhor poderá tomar parte nela.

- Isso não me interessa, replicou Scrooge. Um

homem já faz muito, quando se ocupa dos seus

próprios negócios, sem interferir nos negócios

alheios. Os meus já me tomam todo o tempo. Boa

noite, senhores.

Vendo claramente que era inútil insistir, os

cavalheiros retiraram-se. Scrooge, satisfeito consigo

mesmo, pôs-se novamente a trabalhar, com

radiante bom-humor.

**

Durante este tempo, o nevoeiro e a escuridão

fizeram-se tão espessos, que muitas pessoas

percorriam as ruas com tochas acesas na mão,

oferecendo-se aos cocheiros para irem adiante dos

cavalos iluminando o caminho. A antiga torre de

uma igreja, cujo velho sino bimbalhante parecia

espiar Scrooge continuamente através de sua

janelinha gótica, tornara-se invisível e pôs-se a

tocar as horas e os quartos de hora entre nuvens,

com vibrações prolongadas e trêmulas, como se

estivesse a bater os dentes lá no alto, no ar

gelado.

O frio tornava-se intenso. Na rua principal, sobre a

qual desembocava a viela, alguns operários, que

reparavam o encanamento do gás, haviam acendido

uma fogueira, em torno da qual se haviam

aglomerado homens e mulheres, todos andrajosos,

que aqueciam as mãos e olhavam o fogo com ar

maravilhado. O bebedouro público, vendo-se

abandonado, resolveu congelar-se. Os luminosos

dos magazines, onde as bagas e as folhas de

azevinho estavam sob o calor das lâmpadas nas

vitrinas, imprimiam rubros reflexos nos rostos

pálidos dos transeuntes.

As vitrinas dos restaurantes e dos bares ofereciam

aos olhos uma apresentação esplêndida, um

espetáculo deslumbrante, com o qual parecia

impossível que os vulgares princípios da compra e

da venda pudessem ter a menor relação. O prefeito,

repimpado no majestoso edifício da Câmara, dava

ordens a seus cinqüenta cozinheiros e despenseiros

para que o Natal fosse comemorado como se deve

comemorar na casa de um prefeito. E mesmo o

pobre alfaiate, que fora condenado na segunda-feira

anterior a cinco xelins de multa por embriaguez e

arruaça noturna, fazia seus preparativos dentro de

sua miserável mansarda, batendo a massa do bolo

do dia seguinte, enquanto sua esposa saía

apressadamente, com o bebê ao colo, para comprar

um pedaço de carne de vaca.

O nevoeiro adensava-se cada vez mais, e o frio se

tornava cada vez mais áspero e penetrante. Um

rapazinho de nariz arrebitado, roído pelo vento,

glacial e voraz, como um osso por um cão,

aproximou-se da porta para saudar Scrooge com

uma cantiga de Natal. Mas, desde as primeiras

palavras de Deus vos salve, bom amigo, vos dê

coração alegre, Scrooge apanhou uma régua com um

gesto tão enérgico, que o cantor fugiu espavorido,

perdendo-se no nevoeiro e no frio.

Finalmente, chegou a hora de fechar o escritório.

Scrooge admitiu o fato, mas deixou seu tamborete

bastante penalizado. O empregado, que em seu

cubículo só aguardava este sinal, apressou-se em

apagar o candeeiro e pôr o chapéu.

- Você há de certamente querer ficar livre todo o dia

de manhã? disse-lhe Scrooge.

- Se isso não o aborrecer, senhor.

- Naturalmente que isso me atrapalha, replicou

Scrooge; e o que é mais, isso não é justo. Se eu

descontasse meia coroa de seu ordenado, aposto

que se sentiria prejudicado.

O empregado teve um sorriso pálido.

- E entretanto, tornou Scrooge, você acha que não

me prejudica, a mim, quando estou lhe pagando um

dia para não fazer nada.

O empregado observou humildemente que isso

acontecia apenas uma vez por ano.

- Bela desculpa para meter as unhas no bolso do

seu patrão a cada 25 de dezembro! disse Scrooge,

abotoando o sobretudo até ao queixo. Espero que

seja mais pontual no dia seguinte pela manhã.

O empregado prometeu-o, e Scrooge saiu

resmungando.

O escritório foi fechado num abrir e fechar de olhos,

e o empregado também saiu, todo enrolado em seu

cachecol branco, cujas extremidades pendiam para

além da jaqueta, pois que ele desconhecia o luxo

de um sobretudo. Em honra do Natal, desceu

Cornhill fazendo escorregadelas, em companhia de

um bando de rapazes; depois, rumou a toda

velocidade para Camden, a fim de entrar em casa e

começar a brincar de cabra-cega.

**

Scrooge fez uma magra refeição na sombria

espelunca em que costumava comer. Quando

acabou de percorrer os jornais e de tornar a

observar sua caderneta do banco, entrou em casa

para deitar-se.

O apartamento em que residia era o mesmo em que

vivera seu falecido sócio. Composto de vários

compartimentos lúgubres e mal-iluminados, fazia

parte de um prédio estranho, situado no fundo de

um pátio, onde estava tão mal colocado, que se

poderia pensar que ele viera parar ali em sua

juventude, brincando de esconde-esconde com

outras casas, e depois não encontrou mais seu

caminho. Além de tudo isso, era velho e infundia o

medo que inspiram as casas abandonadas, pois que

ninguém, a não ser Scrooge, ali residia, estando

ocupados os outros compartimentos com escritórios

comerciais.

O pátio era de tal modo escuro, que Scrooge, não

obstante conhecer de cor todos os seus

pormenores, foi obrigado a atravessá-lo às

apalpadelas. O nevoeiro e o granizo envolviam de

tal modo o arcaico e sombrio alpendre, que parecia

estivesse o gênio do inverno sentado no seu portal,

engolfado em lúgubres meditações.

Agora, se existe um fato comprovado, é que a

aldrava de ferro da porta não apresentava

absolutamente nada de particular, a não ser que era

bastante grossa. Outro fato indiscutível é que

Scrooge estava acostumado a vê-la de manhã e de

tarde, desde que morava naquela casa. Cumpre

notar igualmente que Scrooge era tão destituído de

imaginação como qualquer habitante de Londres,

inclusive os membros da municipalidade e os

aldermen. É necessário notar, também, que Scrooge

não havia pensado um só instante em Marley desde

a alusão que havia feito, naquela mesma tarde, à

morte de seu antigo sócio, verificada sete anos

antes. Isto posto, expliquem-me, se puderem, como

pôde acontecer que Scrooge, ao meter a chave na

fechadura, viu subitamente diante dele, e sem

prévia transformação, não uma argola de aldrava,

mas o rosto de Marley!

Sim, o rosto de Marley. Aquele rosto não estava,

como o resto do pátio, mergulhado nas trevas

impenetráveis, mas aureolado de um estranho

clarão fosforescente. Sua expressão não era nem

ameaçadora nem bravia, e olhava para Scrooge

como Marley costumava olhá-lo, com os óculos

sobre a testa de espectro. Os cabelos se lhe

agitavam de modo estranho, levantados, parecia,

por um sopro ou uma corrente de ar quente; e seus

olhos, embora bem abertos, estavam perfeitamente

imóveis.

A aparição, com aquela tez lívida e aquele olhar

fixo, era horrível de se ver; entretanto, o horror que

ela inspirava não procedia propriamente da

expressão dos seus traços, mas de uma influência

exterior, que se exercia de fora e como que a

despeito dela mesma.

Mas quando, vencida a primeira perturbação,

Scrooge examinou fixamente o estranho fenômeno,

já não viu, de repente, nada mais que o simples

anel da aldrava.

Dizer que ele não se amedrontou e não sentiu

interiormente uma impressão extraordinária jamais

experimentada até então, seria falso. Não

obstante, deitou a mão sobre a chave, que havia

deixado cair, fê-la voltar-se com decisão na

fechadura, penetrou no vestíbulo e acendeu a vela.

Para dizer verdade, Scrooge teve um momento de

hesitação antes de fechar a porta, e começou por

examiná-la prudentemente pela parte de trás, como

se receasse ver surgir no vestíbulo a ponta da

cabeleira de Marley. Mas não havia nada naquele

lado, exceto os parafusos e as porcas que fixavam a

aldrava. Depois de tal vistoria, Scrooge murmurou:

.Ora! Tolices!. e tornou a fechar a porta

bruscamente.

Aquele ruído propagou-se por toda a casa como o

rolar de um trovão. Todos os cômodos do pavimento

superior, todas as pipas do negociante de vinho, na

adega, embaixo, repetiram aqueles ruídos com

sonoridades várias. Mas Scrooge não era homem

que se deixasse amedrontar com ecos. Trancou a

porta, atravessou o vestíbulo e subiu a escada

calmamente, protegendo a vela.

Costuma-se falar algumas vezes das escadas

antigas, pelas quais poderia passar facilmente um

carro puxado por seis cavalos. Pois bem: eu posso

afirmar que na escada de Scrooge se teria podido

fazer passar um carro grande, e até mesmo pô-lo

atravessado, com os varais para a parede e a

traseira para o lado da balaustrada: haveria todo o

espaço necessário, e mais ainda.

Foi talvez por esta razão que Scrooge pareceu ver

um carro fúnebre subir diante dele, na escuridão.

Meia dúzia de lampiões teriam sido insuficientes

para aclarar os enormes baixos da escada:

imaginem agora o que poderia fazer aquela simples

velinha de Scrooge.

Completamente despreocupado, Scrooge continuava

a subir. A escuridão não custa dinheiro, e era por

isso que Scrooge gostava da escuridão. Do mesmo

modo, antes de fechar a pesada porta do seu

apartamento, percorreu todas as dependências,

para certificar-se de que nada havia de anormal. Ele

havia guardado da aparição uma impressão forte o

suficiente para justificar esta medida.

A sala, o quarto de dormir, o quarto de despejo,

tudo conservava seu aspecto habitual. Não havia

ninguém debaixo da mesa, ninguém debaixo do

sofá. Um resquício de lume no fogão, uma xícara e

uma colher preparadas sobre a grade da lareira,

uma canequinha de remédio (Scrooge sofria de

enxaqueca). Ninguém debaixo da cama, ninguém no

armário embutido, ninguém no robe de chambre,

que pendia encostado à parede, numa atitude

suspeita. No quarto de despejo, não havia senão,

como habitualmente, um velho guarda-fogo,

sapatos usados, duas cestas, um penteador

cambaio e uma pá de carvão.

Completamente tranqüilizado, Scrooge fechou a

porta, dando a primeira volta à chave, depois a

segunda volta, o que não costumava fazer. Posto

assim ao abrigo de surpresas, tirou a gravata,

enfiou o roupão, calçou as chinelas, pôs o boné de

noite e sentou-se diante do fogo para beber sua

xícara de remédio.

O fogo era bastante fraco e de todo insuficiente

para uma noite tão fria. Scrooge foi obrigado a

sentar-se bem encostado e a inclinar-se sobre ele

para conseguir obter deste insignificante punhado

de combustível uma leve sensação de calor.

A lareira era antiga. Construída, outrora, por algum

antigo comerciante holandês, era inteiramente

revestida de azulejos de faiança, representando

cenas da Bíblia. Havia Cains e Abéis, filhas de

Faraós e rainhas de Sabá, angélicos mensageiros

que desciam do céu sobre nuvens de arminho;

Abraãos e Baltasares, apóstolos que se

aventuravam no tenebroso oceano em pequeninos

batéis . . . Assim, lá estavam centenas de

personagens para ocupar e distrair o pensamento

de Scrooge.

Entretanto, como a antiga vara do profeta, o rosto

de Marley, morto havia sete anos, vinha sobrepor-se

a tudo isto. Se a superfície destes azulejos fosse

totalmente branca e dotada da propriedade de

representar um fragmento que fosse o pensamento

de Scrooge, sobre todos eles estaria estampada

uma cópia da cabeça de Marley.

- Idiotices! . . . disse Scrooge, levantando-se e

pondo-se a passear de um lado para outro.

Depois de ter percorrido o aposento muitas vezes

seguidas, voltou a sentar-se. Como inclinasse a

cabeça para trás, seus olhos pousaram,

casualmente, sobre uma campainha já fora de uso,

que pendia da parede e que se comunicava, não se

sabe por quê, com uma das mansardas da casa.

Scrooge ficou tomado do mais vivo espanto, e ao

mesmo tempo de um indescritível e inexplicável

pavor, quando viu mover-se o cordão da campainha,

que começou a balançar-se primeiro

vagarosamente, quase imperceptível, e, em

seguida, violentamente, ao mesmo tempo em que

todas as campainhas da casa entraram a soar

ruidosamente.

Este tumulto durou aproximadamente meio minuto,

quando muito um minuto, mas que pareceu

interminável a Scrooge. E as campainhas, do

mesmo modo como começaram, também

silenciaram ao mesmo tempo.

A este alarido infernal, sucedeu um barulho

metálico, oriundo das profundezas da casa, como se

alguém, no interior da adega, arrastasse pesadas

correntes. Então, Scrooge lembrou-se de ter ouvido

dizer que, nas casas mal-assombradas, os duendes

arrastam sempre grossas cadeias atrás de si.

A porta da adega abriu-se violentamente, e o

estrépito fez-se ouvir mais vivo no rés-do-chão,

depois na escada, e, aproximando-se cada vez

mais, dirigiu-se em linha reta para a porta do

apartamento.

- Idiotices! . . . disse Scrooge. Não acredito nisso,

não!

Mas imediatamente mudou de cor, quando, sem

deter-se um só instante, o misterioso visitante

atravessou a porta maciça e apresentou-se diante

dele.

A sua entrada, o fogo bruxuleante lançou uma

derradeira labareda, que pareceu gritar: .Eu o

reconheço: é o espectro de Marley!. E apagou-se.

Era a mesma fisionomia, absolutamente a mesma.

Marley, tendo na cabeça a mesma peruca, vestindo

o mesmo colete, as calças justas e as botinas que

usava habitualmente. O couro das botas, o topete e

o rabicho da peruca arrepiavam-se, e as abas de

sua casaca balançavam. Cingia-lhe o corpo a longa

corrente que trazia, e que serpenteava atrás dele

como uma cauda. Scrooge, que a examinava

atentamente, viu que era formada de cofres-fortes,

de chaves, de cadeados, de registros e de pesadas

bolsas de aço.

Como o corpo do espectro era transparente, Scrooge

pôde observar, através do seu colete, os dois

botões pregados no corpo do casaco pela parte de

trás.

Scrooge ouvira dizer, por mais de uma vez, que

Marley não tinha entranhas, mas até então ele

jamais pudera acreditar.

Não! Mesmo agora Scrooge não podia acreditar em

semelhante coisa. Não lhe importava ver diante de

si aquele fantasma, que seu olhar atravessava

como se

fora de vidro; não lhe importava sentir o olhar

glacial dos seus olhos mortos, nem reparar no

próprio tecido de que era feito o lenço que lhe

envolvia a cabeça e o queixo - minúcia que não lhe

havia chamado a atenção nos primeiros momentos.

Não, Scrooge continuava incrédulo e lutava contra

os próprios sentidos.

- Pois bem! disse Scrooge, frio e mordaz como de

costume. Que quer de mim?

- Muita coisa.

Já não podia haver a menor dúvida: era exatamente

a voz de Marley.

- Quem é você? perguntou Scrooge.

- Pergunta, antes, quem eu era ...

- Então, quem era você? tornou a perguntar Scrooge

elevando a voz. Para ser um espectro acho-o muito

real.

- Em vida, fui Jacob Marley, teu sócio.

- Pode... sim... pode sentar-se? perguntou Scrooge,

olhando-o com ar de dúvida.

- Posso.

- Então, sente-se.

Scrooge havia feito esta pergunta porque duvidava

que um ser assim tão transparente pudesse acaso

tomar um assento, o que obrigaria seu visitante, no

caso de impossibilidade, a uma explicação bastante

embaraçosa.

O fantasma, porém, sentou-se do outro lado da

lareira, com a maior naturalidade deste mundo.

- Não acreditas em mim? perguntou ele.

- É claro que não, respondeu Scrooge.

- Que provas desejas da realidade da minha

presença, fora do testemunho dos teus sentidos?

- Nem sei.

- Por que duvidas dos teus sentidos?

- Pela simples razão, respondeu Scrooge, de que

não precisa muita coisa para perturbá-los. Não

precisa mais que uma ligeira indisposição de

estômago. Quem pode provar que, afinal de contas,

tudo isto não passe de uma bisteca mal digerida,

uma colher de mostarda, um naco de queijo ou uma

batata mal cozida. Quem quer que seja, você cheira

mais a cerveja que a defunto.

Scrooge não costumava de modo algum fazer

gracejos, e especialmente neste momento não lhe

apeteciam pilhérias. Para dizer a verdade, se se

mostrava espirituoso, era mais para enganar a si

próprio e dissipar o seu pavor, pois a voz do

espectro o apavorava até o mais íntimo recesso do

seu ser.

Contemplar em silêncio estes olhos fixos vítreos era

para Scrooge uma provação acima de suas forças. O

que lhe parecia igualmente horrível era a atmosfera

infernal que envolvia o fantasma. Scrooge não podia

senti-la por si próprio, mas reconhecia claramente a

sua presença porque, muito embora o espectro se

conservasse imóvel, sua cabeleira, as borlas de

suas botas e as abas do seu casaco não paravam

de agitar-se, como se fossem movidas pelo cálido

sopro de uma fornalha.

- Está vendo este palito? disse Scrooge, voltando

vivamente à carga, pela mesma razão exposta e

para desviar de sobre si, ainda que fosse por

apenas um segundo, o olhar vítreo da aparição.

- Vejo, respondeu o fantasma.

- Mas você não está olhando para ele, observou

Scrooge.

- Mas estou vendo, disse o fantasma.

- Pois bem! continuou Scrooge, basta que eu o

engula para ser perseguido, até o fim dos meus

dias, por uma legião de espíritos imaginários, todos

nascidos do meu estômago. Tolices! Posso afirmarlhe.

Tudo tolices!

A estas palavras, o fantasma soltou um tremendo

urro e agitou com tal violência as suas cadeias,

fazendo um barulho tão sinistro e pavoroso, que

Scrooge foi obrigado a agarrar-se à poltrona para

não desmaiar. Mas seu espanto recrudesceu ainda

mais quando o fantasma, retirando o lenço que lhe

envolvia a cabeça, como se o sufocasse o calor,

deixou cair sobre o peito o maxilar inferior.

Scrooge lançou-se de joelhos, escondendo o rosto

entre as mãos.

- Misericórdia! exclamou ele. Ó pavorosa aparição,

por que me vem atormentar?

- Miserável criatura, tão apegada aos bens da terra!

Acreditas em mim, agora?

- Sim, balbuciou Scrooge, creio! Sou obrigado a crer!

Mas por que vagam os espíritos sobre a terra, e por

que me vêm eles perturbar?

- Deus exige de cada homem, respondeu o

espectro, que o espírito que o anima se

consubstancie com as almas de seus semelhantes

no decurso de sua longa viagem pela vida. Assim,

pois, aquele que viver só para si durante a

existência, é condenado a viver errante pelo espaço

após a morte - ó miserável destino! - para assistir,

já agora impotente, a todas as coisas em que,

durante a vida, poderia ter tomado parte para sua

felicidade e a de seu próximo.

Novamente o espectro deu um grito, ao mesmo

tempo que agitava as cadeias e retorcia as mãos

transparentes.

- Você está acorrentado! disse Scrooge com voz

trêmula. Diga-me por quê.

- Estou acorrentado com as cadeias que forjei para

mim mesmo durante a vida. Forjei-a elo por elo,

palmo a palmo. Trago-a agora por minha livre

vontade, e é de livre vontade que a tenho usado.

Estás estranhando o modelo?

Scrooge tremia cada vez mais.

- Desejas saber, prosseguiu o fantasma, o peso e o

comprimento da cadeia que trazes em torno da tua

cintura? Há sete anos, precisamente numa noite de

Natal, ela era tão comprida e tão pesada quanto

esta. Desde então tens trabalhado muito nela.

Neste momento, é uma corrente de considerável

dimensão.

Scrooge deitou um olhar febril para o soalho, como

se já se visse enlaçado por cinqüenta ou sessenta

metros de corrente de ferro. Mas nada viu.

- Jacob, disse ele com voz suplicante, meu velho

Jacob Marley! Diga-me ainda alguma coisa! Dê-me

um pouco de conforto, um pouco de esperança!

- Já não posso confortar ninguém, respondeu o

fantasma. O consolo e a esperança vêm de outra

fonte, Ebenezer Scrooge. São trazidos por outros

mensageiros e para outros homens, não para ti.

Além do mais, não posso conversar D quanto eu

desejara. O que me é permitido dizer-te ainda é

pouca coisa, pois não tenho permissão para

descansar, nem para deter-me, nem para demorarme

onde quer que seja. Noutros tempos, meu

espírito não saía jamais do nosso escritório, estásme

compreendendo? Nunca, durante minha vida,

meu espírito se resolveu a afastar-se dos estreitos

limites do nosso covil de negociatas. Eis por que

tenho diante de mim tantas e tão penosas viagens.

Scrooge tinha o hábito de meter as mãos nos

bolsos, quando refletia; e foi assim que, enquanto

meditava sobre as últimas palavras do fantasma,

dirigiu-lhe a palavra, mas sem erguer os olhos e

sempre ajoelhado.

- É preciso que você tenha sido bem lento, Jacob!

observou ele com voz onde transparecia o homem

de negócios ao mesmo tempo humilde e

obsequioso.

- Bem lento! repetiu o espectro.

- Você morreu há sete anos, disse Scrooge

pensativo, e todo esse tempo perambulando?

- Todo o tempo, disse o espectro; sem repouso e

sem trégua, com a eterna tortura do remorso.

- Viaja com rapidez? perguntou Scrooge.

- Nas asas do vento.

- Você deve ter percorrido muitos países durante

estes sete anos, disse Scrooge.

A estas palavras, o espectro deu ainda um grito e

sacudiu as suas correntes com um tal fragor, que

cortou ruidosamente o profundo e gélido silêncio da

noite.

- Oh, um desgraçado prisioneiro, acorrentado e

carregado de ferros! exclamou o fantasma, por ter

olvidado que todo homem deve associar-se à

grande obra da humanidade, prescrita pelo

Onipotente, e perpetuar o progresso. Por não saber

que uma alma verdadeiramente cristã, que trabalha

generosamente dentro de sua esfera, por muito

pequena que seja, sempre achará que sua vida

mortal é demasiado breve para realizar todo o bem

que ela vê por fazer-se em redor de si. Por não

saber que uma eternidade de lágrimas não pode

reparar uma vida mal vivida! . . . Pois bem, era

assim que eu vivia, era assim que eu vivia!

- Entretanto, Jacob, balbuciou Scrooge, que

começava a tomar para si mesmo as palavras do

espectro, você foi sempre um excelente homem de

negócios.

- Os negócios! gemeu o fantasma retorcendo as

mãos. A humanidade, o bem comum, a indulgência,

a caridade, a misericórdia, a benevolência, esses

deviam ter sido os meus negócios!

O espectro ergueu suas cadeias com a extremidade

do braço, como se visse nelas a causa do seu inútil

desespero, deixando-a em seguida cair

pesadamente ao chão.

- Quando chega esta época do ano, prosseguiu ele,

meus sofrimentos redobram. Por que fui eu tão

insensato para ter passado no meio da multidão

dos meus semelhantes, sempre com os olhos

voltados para o chão, sem jamais erguê-los para

aquela bendita estrela, que um dia conduziu os

magos para uma pobre choupana? Não haveria

outras pobres choupanas, aonde a luz me pudesse

ter guiado a mim também?

Scrooge tremia como varas verdes, ouvindo o

espectro falar daquele modo.

- Ouve-me, gritou o fantasma. Meus minutos são

contados.

- Estou ouvindo! disse Scrooge, mas tenha pena de

mim. Eu lhe peço Jacob, não faça muitos rodeios!

. Seria difícil dizer por que é que estou aparecendo

diante de ti sob forma visível. Aliás, por mais de

uma vez já me sentei a teu lado, invisivelmente.

Esta revelação foi assustadora. Scrooge,

estremecendo, enxugou a testa banhada de suor.

- Mas não é esse o meu maior suplício, continuou o

espectro. Vim esta noite para avisar-te de que

ainda te resta uma esperança, uma oportunidade de

escapar a um destino semelhante ao meu. É uma

esperança, uma oportunidade que eu venho trazerte,

Ebenezer.

- Oh, mil vezes obrigado! exclamou Scrooge. Você

foi sempre um bom amigo para mim.

- Vais ser visitado por mais três espíritos, continuou

o fantasma.

O semblante de Scrooge tornou-se tão lívido como o

do próprio espectro.

- É essa, então, a esperança ou a oportunidade de

que você me falou, Jacob? perguntou ele com a voz

débil.

- Exatamente.

- Eu... Eu preferia que isso não acontecesse.

- Se não receberes a visita deles, podes perder a

esperança de escapar a um destino igual ao meu.

Aguarda a visita do primeiro espírito amanhã ao

bater da uma hora.

- Não seria melhor que viessem todos juntos, para

acabar mais depressa com isso? sugeriu Scrooge.

- O segundo aparecerá na noite seguinte, à mesma

hora, e o terceiro na outra noite, ao bater a última

badalada da meia-noite. Não esperes tornar a verme,

e não te esqueças, no teu próprio interesse, de

conservar a lembrança de tudo que se passou entre

nós.

Dito isto, o espectro apanhou seu lenço sobre a

mesa e o amarrou, como antes, em torno da

cabeça. Scrooge só o notou, quando ouviu o seco

estalido que produziram os dois maxilares ao se

encontrarem. Arriscando um olho, viu seu visitante

sobrenatural em pé diante dele, erecto, as cadeias

enroladas no braço. A aparição afastou-se, de

costas, e, à medida que se distanciava, a janela

abria-se progressivamente até que, quando o

espectro a alcançou, ela estava completamente

aberta.

O espectro fez sinal a Scrooge que se aproximasse.

Quando estiveram apenas a dois passos um do

outro, o espectro ergueu o braço. Scrooge detevese.

Deteve-se, menos para obedecer ao fantasma

do que por um sentimento de surpresa e de medo,

pois que, simultaneamente ao gesto do fantasma,

começava a ouvir estranhos e confusos ruídos por

toda a casa, vozes plangentes que se misturavam

umas às outras, onde se confundiam remorsos e

desesperos.

Após ter escutado um instante, o espectro passou

pela janela, juntou-se ao fúnebre cortejo e

desapareceu na gélida escuridão. Scrooge, tomado

de incoercível curiosidade, chegou à janela e,

então, presenciou um estranho espetáculo.

**

O ar estava povoado de almas perdidas, que

perambulavam e rodopiavam interminavelmente,

soltando gemidos, e cada uma delas trazia uma

corrente, como o espectro de Marley. Alguns destes

fantasmas, talvez os membros de algum mau

governo, estavam amarrados juntos. Nenhum

estava livre.

Scrooge notou entre eles alguns de seus antigos

conhecidos, entre os quais um velho fantasma de

colete branco, com quem tivera freqüentes relações.

Em seu tornozelo, estava amarrado um cofre-forte

descomunal, e Scrooge notou que a visão de uma

mendiga acocorada ao pé de uma sacada, com seu

bebê ao colo, lhe arrancava tristes lamentações de

pena por não poder socorrê-la.

Percebia-se, claramente, que o maior tormento

destes infelizes era o ardente desejo de praticar o

bem sobre a terra, justamente agora que essa

possibilidade lhes havia escapado para sempre.

Scrooge não poderia dizer se todos aqueles

fantasmas se dissiparam no intenso nevoeiro, ou se

foi o nevoeiro que os envolveu. O certo é que todos

desapareceram ao mesmo tempo dentro da noite, e

o espaço ficou silencioso e ermo, como no momento

em que ele voltara para casa.

Fechada novamente a janela, Scrooge examinou

cuidadosamente a porta por onde o fantasma havia

entrado. Estava fechada com dupla volta, e os

ferrolhos estavam intactos.

Scrooge ia dizer: .Tolices., mas não foi além da

primeira sílaba. Apoderara-se dele uma incoercível

necessidade de repouso, fosse, talvez, devido às

fadigas e às emoções do dia, fosse pela sua fuga

ao mundo dos espíritos e pela sinistra conversa que

tivera com o espectro, ou talvez mesmo pelo

adiantado da hora.

SEGUNDA ESTROFE



O primeiro dos três espíritos



Quando Scrooge despertou, a escuridão era tão

profunda que, de seu leito, mal podia distinguir a

janela transparente e as escuras paredes do quarto.

No momento em que se esforçava para romper a

intensa treva que envolvia seus olhos, ouviu bater

numa igreja das vizinhanças os quatro quartos.

Scrooge aguçou os ouvidos para escutar as horas

que iam bater.

Com grande surpresa, o pesado carrilhão deu as

seis... as sete . . . as oito. . . e assim,

ritmadamente, até as doze.

Meia-noite!

Eram mais de duas horas quando Scrooge se atirara

sobre o leito. Não era possível! O relógio devia

estar louco. Alguma coisa devia ter-lhe embaraçado

o maquinismo! Meia-noite!

Scrooge premiu a mola do seu relógio de repetição

para verificar a exatidão daquele relógio idiota. A

minúscula engrenagem bateu rapidamente as doze

vibrações e parou.

- Vejamos, disse Scrooge. É impossível que eu

tenha dormido o dia inteiro e uma parte da noite.

Acaso terá acontecido alguma coisa ao sol e seja

agora meio-dia em vez de meia-noite?

Bastante alarmado com esta idéia, ergueu-se do

leito e dirigiu-se para a janela, a tatear, como um

cego. A primeira coisa que fez foi passar a manga

do roupão pela vidraça, que a neblina embaçava, e

mesmo assim quase nada conseguiu distinguir fora.

A coisa única que pôde verificar é que o nevoeiro

continuava espesso, como dantes, e que o frio era

demasiado intenso; notou, ainda, que já não se

ouviam as idas e vindas das pessoas atarefadas, o

que certamente se ouviria, se já estivesse

clareando o dia.

Este fato foi para ele um grande alívio, pois o que

seria dele com as suas .letras a pagar a três dias

da data ao sr. Ebenezer Scrooge ou à sua ordem.,

se ele não dispusesse de dias para contar o tempo?

Scrooge tornou a deitar-se, o pensamento vagando

sobre o que poderia ter acontecido, mas por mais

que quebrasse a cabeça para a decifração de tão

complicado enigma, nada conseguiu desvendar.

Quanto mais ruminava o caso, mais perplexo ficava,

e quanto mais se esforçava por não pensar no caso,

mais o caso assoberbava o seu pensamento.

A lembrança do espectro de Marley causava-lhe um

profundo tormento. Cada vez que chegava a

convencer-se de que, afinal de contas, todo o

ocorrido não fora mais que um sonho mau, crac! lá

estava seu espírito novamente às voltas com o

problema, no próprio ponto de partida, formulando

novamente a mesma pergunta: .Era ou não era um

sonho?.

Scrooge permaneceu nesta agonia até o momento

em que o carrilhão bateu os três quartos. Foi então

que se lembrou, subitamente, de que o espectro lhe

havia prenunciado a visita de um espírito quando

batesse uma hora da manhã. Nestas condições,

resolveu ficar acordado até chegar a uma hora da

manhã. Diga-se de passagem que esse foi o melhor

caminho a seguir, especialmente levando-se em

conta que mais fácil lhe fora chegar até o mundo da

lua do que tornar a adormecer.

Este quarto de hora foi tão interminável, que lhe

pareceu, mais de uma vez, ter dormido e deixado

passar a hora.

Finalmente, o carrilhão fez-se ouvir aos seus

inquietos ouvidos:

- Ding, dong!

- Um quarto . . . contou Scrooge, escutando

atentamente.

- Ding, dong!

- Meia hora.

- Ding, dong!

- Três quartos.

- Ding, dong!

- A hora! exclamou Scrooge triunfante. A hora, e

nada!

Mas é que Scrooge falava antes de ouvir o bater da

uma hora da manhã no pesado badalar do carrilhão.

E o badalar da uma hora da manhã fez-se ouvir,

lúgubre, fúnebre, surdo e melancólico.

Imediatamente, uma vivíssima claridade invadiu o

aposento de Scrooge, ao mesmo tempo que as

cortinas do seu leito foram puxadas por uma mão

invisível.

Porém, não eram as cortinas dos pés nem as da

cabeceira do leito de Scrooge, mas as que estavam

diante de seus olhos, aquelas para as quais seus

olhares estavam voltados. Então Scrooge,

sentando-se bruscamente, achou-se frente a frente

com o sobrenatural visitante que havia afastado as

cortinas do leito.

Era uma estranha aparição.

A primeira vista, ter-se-ia a impressão de ver-se

uma criança, mas, a um exame mais minucioso,

verificava-se que seria antes um velho, um ancião

visto através de uma atmosfera sobrenatural, que

lhe dava uma aparência longínqua e o reduzia às

proporções de uma criança. Seus cabelos, brancos

como os de um homem de idade, caíam-lhe pelos

ombros; seu rosto, entretanto, não apresentava a

menor ruga, e sua tez era de uma deliciosa

frescura. Os braços, longos e musculosos, bem

como suas mãos robustas, denunciavam extrema

força. As pernas e os pés, finamente modelados,

estavam nus como os membros superiores.

O ancião vestia uma túnica de puríssima alvura,

apertada à cintura por uma faixa luminosa, que

brilhava com refulgente esplendor; à mão, trazia um

ramo de azevinho e, em fundo contraste com este

símbolo do inverno, sua túnica era toda bordada de

flores primaveris. Mas o que apresentava de mais

curioso era o facho de luz que se desprendia do

ápice de sua cabeça, e graças ao qual todos estes

pormenores podiam ser notados. Este fenômeno

explicava a presença do grande apagador em forma

de chapéu que trazia embaixo do braço, e com o

qual devia cobrir-se em seus momentos de tristeza.

Entretanto, observando-a com mais atenção,

Scrooge notou que a aparição apresentava uma

particularidade ainda mais extraordinária. Do

mesmo modo que sua cintura resplandecia ora num

ponto, ora noutro, e que um ponto ainda há pouco

luminoso agora estava escuro, todo o seu corpo

mudava constantemente de aspecto, mostrando-se

ora com um só braço, ora com uma só perna, ou

então com vinte pernas, mas sem cabeça, ou então

uma cabeça sem corpo. Das várias partes que

desapareciam, nem um único contorno ficava visível

naquela extrema escuridão em que se envolviam. E

no meio de todas estas estranhas metamorfose, a

aparição retomava, de súbito, sua primeira forma,

nítida e perfeita como antes.

- Sois vós o espírito, cuja visita me foi anunciada?

perguntou Scrooge.

- Sim.

Aquela voz era doce e agradável, mas

singularmente fraca, como se, em vez de estar tão

próxima, viesse de muito longe.

- Então, quem sois vós? perguntou Scrooge.

- Sou o fantasma dos Natais passados.

- Passados desde quando? interrogou Scrooge,

observando o seu talhe delgado.

- Somente os do teu passado.

Scrooge sentia um ardente desejo de vê-lo coberto

com o chapéu que trazia à mão; se alguém lhe

perguntasse qual a razão disto, jamais teria sabido

responder.

- Como? exclamou o fantasma. Queres tão depressa

extinguir, com as tuas mãos profanas, a fulgurante

luz que resplandece em mim? Não te basta seres

daqueles cujas paixões me teceram este chapéu e

que me forçam tantas e tantas vezes a enterrá-lo

até aos olhos?

Scrooge declarou respeitosamente não ter tido a

menor intenção de ofender o espírito e afirmou não

lembrar-se jamais de o ter forçado, em toda a sua

vida, a .usar. aquele chapéu. Em seguida, atreveuse

a perguntar-lhe o que o trazia ali.

- Tua felicidade, respondeu a aparição.

Scrooge declarou-se profundamente agradecido,

mas não deixou de pensar que uma noite de

repouso teria concorrido mais eficazmente para este

resultado.

O espírito pareceu ler seu pensamento, pois no

mesmo instante falou:

- Tua salvação, se preferes. Ouve-me!

Assim falando, estendeu a mão para Scrooge e

tomou-o levemente pelo braço.

- Levanta-te, e vem comigo.

**

Teria sido inútil a Scrooge responder que nem o

tempo, nem aquele momento eram propícios para

um passeio a pé; que sua cama estava tão

quentinha e que o termômetro estava muitos graus

abaixo de zero; que, além disso, estava vestido

apenas com o roupão, com o boné de noite e de

chinelos, e que, para rematar, estava muito gripado.

A pressão exercida pela mão do espírito, porém, tão

doce como se fora a de uma mulher, era de todo

irresistível. Assim, pois, Scrooge levantou-se, mas

vendo que o espírito se dirigia para a janela, tocoulhe

a túnica e falou com voz súplice:

- Oh, senhor! Sou apenas um mortal e posso cair!

- Deixa-me apenas segurar-te por aqui, disse o

espírito pondo a mão sobre o coração de Scrooge, e

serás capaz de enfrentar muitos outros perigos.

Ditas estas palavras, ambos passaram através da

parede e acharam-se logo numa estrada orlada de

campos. A cidade havia-se evanescido, não

restando dela um único traço; do mesmo modo,

haviam desaparecido a noite e o nevoeiro, fazendo

agora um tempo hibernal claro e frio, com a terra

coberta pela neve.

- Bondade divina! exclamou Scrooge juntando as

mãos. Foi aqui que fui criado! Aqui foi que passei a

minha infância!

O espírito envolveu-o num olhar benévolo. Embora

tivesse posto a mão apenas um instante sobre o

coração do velho, este julgou sentir ainda o calor

daquele contato. Flutuavam no ambiente mil

perfumes amigos, cada um dos quais evocava uma

multidão de pensamentos, de esperanças, de

alegrias e pesares passados, de muitos anos atrás .

. .

- Tens os lábios trêmulos, observou o fantasma, e o

que estou vendo em tuas faces?

Scrooge, com voz rouquenha, o que estava fora dos

seus hábitos, respondeu que era uma verruga, e

declarou que estava disposto a seguir o espírito

para

onde quer que fosse. !

- Reconheces o caminho? perguntou o espírito.

- Oh, se o reconheço! respondeu Scrooge com

emoção; poderia andar por ele de olhos fechados!

- É estranho que o tenhas esquecido durante tantos

anos, observou o espírito. Vamos adiante.

Ambos prosseguiram, e Scrooge ia reconhecendo à

cada casa, cada árvore, cada poste. Logo a seguir,

apareceu um pequeno povoado, com sua igrejinha,

sua ponte e o rio sinuoso. Avistaram, então, na

entrada, vários rapazes montados em hirsutos

pôneis, e que se comunicavam alegremente com

outros jovens montados em carriolas camponesas.

Toda esta juventude transbordava de vida e de

entusiasmo, e suas vozes enchiam o campo de uma

música tão alegre que o ar cristalino parecia todo

entrar em vibração.

- São apenas sombras do passado, disse o espírito;

elas não podem perceber a nossa presença.

A medida que os alegres cavaleiros se

aproximavam, Scrooge reconhecia-os e chamava-os

pelo nome.

Por que lhe causava tanta satisfação a presença

daqueles amigos? Por que lhe batia tão

descompassadamente o coração e se lhe

iluminavam os olhos ao vê-los passar? Por que se

sentia tão cheio de alegria ao ouvir estes rapazes

trocarem mútuas felicitações e votos de feliz Natal,

quando se despediam nas encruzilhadas para

regressarem a suas casas? Que significava para

Scrooge um .Feliz Natal.? Que vá para o diabo o

.Feliz Natal.! Que proveito havia ele tirado do

Natal?

- A escola não está de todo deserta, disse o

espírito; um menino solitário, abandonado pelos

seus, ainda ali está.

Scrooge declarou que bem o sabia, e reprimiu um

soluço.

Deixando a estrada principal, entraram por uma

vereda, que Scrooge bem conhecia. Ao cabo de

poucos instantes, chegaram a uma grande

construção de tijolos vermelhos, encimada por um

pequeno campanário. A casa devia ter sido

importante, mas teria passado por diversos

reveses, pois suas vastas dependências pareciam

abandonadas, com suas paredes úmidas e

emboloradas, os pisos fendidos e as portas

abaladas. As aves domésticas cacarejavam à solta

no pasto, e o mato havia invadido as cocheiras.

Dentro, nem o mais ligeiro vestígio do seu antigo

esplendor. Penetrando no silencioso vestíbulo,

Scrooge e o espírito entreviram, pelas portas

abertas, frias e escuras dependências parcamente

mobiliadas. Casavam-se o cheiro de mofo, que

flutuava no ar, e a nudez geral do ambiente, à idéia

de que ali deviam levantar-se ainda com o escuro e

talvez não pudessem alimentar-se quanto

desejariam.

**

O espírito e Scrooge dirigiram-se para uma porta ao

fundo do vestíbulo. A porta abriu-se diante deles,

mostrando uma vasta sala, triste e deserta, a que

uma longa fila de bancos e carteiras dava ainda um

aspecto mais austero.

Sentado num destes bancos, um estudante solitário

lia junto de um lume quase apagado. Reconhecendo

o pobre menino abandonado, que era ele próprio,

Scrooge sentou-se e pôs-se a chorar. Os mais

insignificantes ecos desta mansão, a algazarra dos

ratos atrás do madeiramento, os gemidos do vento

através da galhada seca de um choupo melancólico,

o ranger preguiçoso de uma porta emperrada, tudo

isso eram outros tantos ecos que penetravam no

coração de Scrooge e lhe enchiam a alma de uma

doce emoção.

Tocando-lhe o braço, o espírito mostrou-lhe o

menino engolfado em sua leitura. Subitamente, um

homem, vestido com um costume exótico, apareceu

atrás da janela, com um machado preso à cintura e

puxando pela brida um burro carregado de

madeiras.

- Meu Deus! Mas é Ali-Babá! exclamou Scrooge no

auge da alegria. É o meu querido e honrado Ali-

Babá! Sim, sim! Bem me lembro. Foi mesmo num

dia de Natal que ele apareceu pela primeira vez,

vestido exatamente desta forma, a este pequeno

estudante que ficara ali sozinho. Pobre criança... E

Valentino, e Orson, seu irmão mais velho . . .

Também estou a vê-los. E como se chama, mesmo,

este rapagote, que foi raptado durante o sono e

deixado semivestido às portas de Damasco? Não o

vedes? E o palafreneiro do sultão, que os deuses

derrubaram por ter desposado a princesa? Lá está

ele de cabeça para baixo! Pois foi muito bem feito!

Quem lhe mandou querer casar com a princesa?...

Que espanto para seus colegas de negócios se

pudessem ouvir Scrooge a discorrer com tanto

entusiasmo sobre tais coisas, com voz estranha,

onde se misturavam o riso e as lágrimas, e se

pudessem ver seu rosto incendido e seu ar

excitado!

- Olha! exclamou ele, lá está o papagaio, com o

corpo verde, a cauda amarela e a espécie de alface

que tem na cabeça, como uma poupa. .Pobre

Robinson Crusoé!., repetia ele quando seu amo

voltou, depois de inutilmente ter dado volta à ilha.

.Pobre Robinson Crusoé! Onde estiveste, Robinson

Crusoé?. O homem não acreditava no que via, e,

entretanto, era mesmo o pagagaio que falava.

Agora é o Sexta-Feira, que corre desabaladamente

para abrigar-se na pequena enseada. .Coragem,

Sexta-Feira! Vamos! Aí, valente!.

- Eu bem quisera... murmurou ele pondo as mãos

nos bolsos e olhando em redor de si, depois de

enxugar os olhos com a manga do casaco. Eu bem

quisera, mas já não é mais tempo . . .

- Que há? perguntou o fantasma.

- Nada, disse Scrooge, nada. Eu estava pensando

num garoto, que ontem à noite cantava uma ária de

Natal diante de minha porta. Eu desejaria ter-lhe

dado alguma coisa.

O espírito sorriu pensativamente e ergueu a mão,

dizendo:

- Passemos a outro Natal.

A estas palavras, a sombra do Scrooge de outros

tempos cresceu e a sala tomou um aspecto ainda

mais sombrio e descuidado. As finas tábuas que

forravam as paredes da sala racharam-se, os vidros

quebraram-se, e os fragmentos, que caíram do teto,

deixaram ver as vigas nuas. Como se operou esta

transformação, nem Scrooge nem ninguém poderia

explicar. O certo é que tudo o que via era a

representação da realidade, que tudo se tinha

passado exatamente assim, e que só ele lá ficara

ainda uma vez, quando todos os seus colegas

haviam partido festivamente para as férias em seus

lares.

Desta feita, não estava engolfado na leitura, mas

passeava pela sala de um lado para outro, com ar

sombrio. Scrooge olhou para o espírito, e depois,

abanando tristemente a cabeça, lançou um ansioso

olhar para a porta. Esta abriu-se, e uma garotinha,

muito mais nova que o estudante, apareceu na

sala, enlaçou lhe o pescoço com os braços e

estreitou-o repetidas vezes, chamando-lhe .meu

querido., .querido irmãozinho..

- Venho chamar-te para levar-te para casa, meu

adorado! disse ela, batendo palmas e rindo-se

alegremente. Sim, levar-te para casa, para casa,

para casa!

- Para casa? Será possível, querida Fani?

- Mas é claro! disse a criança, radiosa. Para casa,

sim senhor! Papai ficou tão bom, que agora nossa

casa é um verdadeiro paraíso. Uma destas noites,

quando eu ia deitar-me, ele falou-me com tamanha

ternura, que me atrevi a perguntar-lhe se irias

regressar breve.

Ele respondeu que sim, e mandou-me que viesse

buscar-te com o nosso carro. Agora estás quase um

homem, prosseguiu a criança, e nunca mais virás

para cá. Mas, para começar, vamos festejar juntos o

Natal, o mais alegremente que pudermos.

- E tu? Estás já uma verdadeira mulherzinha, Fani!

exclamou o rapazinho.

A garota bateu palmas novamente, rindo-se, e ia

acariciar-lhe a cabeça, mas, pequenina como era,

teve de pôr-se na ponta dos pés, o que a fez rir.

Depois, com pueril impaciência, puxou-o para a

porta, e ele não se fez de rogado para acompanhá-

la.

No vestíbulo, ouviu-se uma voz terrível:

- Tragam a mala do menino Scrooge!

E na mesma hora, no vestíbulo, apareceu o próprio

dono da pensão, que envolveu Scrooge com um

olhar de feroz condescendência, e lhe causou uma

confusão extrema ao lhe dar um aperto de mão.

Depois, levando-os para um horrível cubículo

gelado, que servia de salão, onde as cartas

geográficas suspensas às paredes, e os mapasm

úndi das vitrinas estavam recobertos de uma

barrela viscosa, apresentou-lhes um frasco de um

vidro singularmente pesado, ao mesmo tempo que

mandava perguntar ao cocheiro, por uma criada

extremamente magra, se era servido de tomar um

cálice de .qualquer coisa., ao que este respondeu

que agradecia a gentileza, e que só aceitaria se não

fosse a zurrapa ordinária da última vez.

Colocada a mala do aluno Scrooge, os dois irmãos

despediram-se do dono da pensão e tomaram

assento alegremente no carro, que logo se pôs a

rodar pela pequena avenida do jardim, fazendo

voar, à sua passagem, estilhaços de neve, que

cobriam os arbustos de azevinho como branca

espuma.

- Era uma delicada criatura, sensível à mais leve

carícia, e dona de um grande coração, disse o

espírito.

- Sim, um grande coração, exclamou Scrooge.

Tendes razão, Espírito. Não serei eu quem vos dirá

o contrário.

- Morreu casadinha de novo, disse o espírito, e

deixou filhos, parece-me.

- Um filho, retificou Scrooge.

- Ou isso, disse o espírito. Teu sobrinho.

Scrooge aquiesceu, com ar desajeitado.

**

Mal deixaram o pensionato, logo se encontraram

nas ruas movimentadas de uma grande cidade, por

onde os transeuntes iam e vinham sobre os

passeios, enquanto os carros disputavam a

passagem e o tumulto e a agitação dos grandes

centros faziam lembrar um campo de batalha.

O aspecto das lojas indicava claramente que se

estava de novo na época do Natal. Era noite, e as

ruas estavam iluminadas.

O espírito deteve-se diante da porta de uma loja e

perguntou a Scrooge se a reconhecia.

- Oh, se a reconheço! Não foi aqui que comecei o

meu aprendizado?

Ambos entraram.

Um ancião, com uma peruca na cabeça, estava

sentado em uma carteira tão alta, que mais umas

polegadas e sua cabeça teria tocado o teto.

A vista dele, Scrooge exclamou emocionado:

- Meu Deus! Mas é o velho Fezziwig! Louvado seja

Deus! É o velho Fezziwig ressuscitado!

O velho Fezziwig pousou a caneta e olhou para o

relógio, que marcava sete horas. Depois,

esfregando as mãos, reajustou o largo colete, deu

uma gargalhada que o sacudiu da cabeça aos pés, e

berrou com voz sonora, plena, rica, grossa e jovial:

- Olá, Ebenezer! Dick!

O velho Scrooge, tornado agora um jovem, correu

apressadamente, como o seu colega de

aprendizado:

- Ora esta! É Dick Williams! disse Scrooge ao

espírito. É fato! É realmente ele, que foi sempre

muito agarrado comigo, o bom rapaz! Pobre Dick!

Meu Deus! Meu Deus!

- Olá, rapazes! exclamou Fezziwig, o dia terminou.

Amanhã é Natal, Dick! É Natal, Ebenezer! Fechem a

loja, gritou Fezziwig batendo palmas; e que os

ferrolhos sejam ajustados imediatamente, antes

que eu tenha tempo de dizer: Jack Robinson!

Ninguém poderia imaginar a rapidez com que estes

bravos rapazes cumpriram a ordem. Ambos se

precipitaram para a rua com os ferrolhos . . . um . .

. dois . . . três... ajustaram; quatro. . . cinco . . .

seis . . . puseram as barras e as cunhas; sete . . .

oito . . . nove... tornaram a entrar, resfolegando

como cavalos de corrida, antes que tivessem tempo

de contar até doze.

- Vamos, adiante! berrou o velho Fezziwig, pulando

de sua escrivaninha com surprendente agilidade.

Vamos, criançada! Desocupem tudo, arranjem o

maior espaço possível!

Arranjar espaço? Mas eles seriam capazes de

desmontar tudo sob as ordens animadoras do velho

Fezziwig!

Em menos de um minuto, tudo estava pronto. Tudo

que podia ser transportado foi tirado e levado para

outras partes como se para desaparecer de uma vez

da face da terra. O soalho foi varrido e encerado, os

candelabros espanados, a lareira reabastecida.

Dentro em breve, o armazém estava transformado

em um belo salão de baile, tão confortável e bem

iluminado quanto se poderia desejar numa noite de

inverno.

Neste instante, chegou o rabequista com um

caderno de música. Empoleirando-se no alto de um

estrado, e sob pretexto de afinar o instrumento,

acabou por tirar dele apenas insuportáveis chiados.

A seguir, entrou a senhora Fezziwig, cuja pessoa

era inteirinha um vasto sorriso. Entraram, depois,

as três meninas Fezziwig, radiantes e adoráveis,

seguidas de seis rapagotes, cujos corações elas

pisavam. Vieram, a seguir, todas as moças e moços

que trabalhavam na loja, e mais a criada com seu

primo e mais o padeiro. Vieram, depois, a

cozinheira com o amigo íntimo de seu irmão, o

leiteiro, o pequeno aprendiz da loja fronteira, que

parecia passar fome em casa de seu patrão, e que

procurava esconder-se por detrás da criadinha.

Uns após outros, todos entraram, uns timidamente,

outros afoitamente, estes com graça, aqueles

desajeitados; uns empurrando os companheiros,

outros puxando-os. Finalmente, de um modo ou de

outro, todos entraram.

Começada a festa, todos se puseram a dançar -

vinte pares a um tempo - executando passos vários,

avançando, recuando, rodopiando, voltando e

recomeçando. O par da dianteira não sabia mais

onde se meter, uma vez terminado o seu número, e

o par seguinte saía sem esperar sua vez, de tal

maneira que em breve só havia pares de dianteira e

nenhum na traseira para substituí-los.

Obtido este resultado, o velho Fezziwig exclamou:

.Está ótimo!. e bateu palmas para fazer parar a

dança. O músico mergulhou a cara congestionada

num copázio de cerveja, enchido especialmente

para ele. Logo, porém, que voltou, tratou de

recomeçar a música com mais vivo entusiasmo,

antes mesmo que os presentes estivessem prontos

para dançar. Queria, talvez, que todos imaginassem

que o primeiro músico, indo tomar cerveja, tinha

ficado por lá e em lugar dele surgiu outro

rabequista, novo em folha, disposto a ultrapassar o

rival ou então morrer.

Seguiram-se outras danças, depois alegres

diversões, e depois ainda outras danças. Houve, em

seguida, uma mesa de bolos, vinho quente,

enormes pedaços de carne assada e cerveja à

vontade. Mas o mais belo momento da noitada foi

depois da ceia, quando o músico - aliás um guapo

rapagão, podem acreditar -, como bom conhecedor

de seu papel, atacou a ária de Sir Roger de Coverly.

Foi então que o velho Fezziwig e esposa começaram

pessoalmente a conduzir o baile: e posso afirmar

que não era fácil dirigir vinte e três ou vinte e

quatro pares de bailadores, e que bailadores! Era

gente que sabia dançar de fato e não simplesmente

arrastar os pés.

Mas, mesmo que fossem duas, três ou mesmo

quatro vezes mais, o velho Fezziwig seria capaz de

agüentar a parada, do mesmo modo que a senhora

Fezziwig, sua digna companheira em toda a

extensão da palavra.

Os pés de Fezziwig pareciam irradiar um brilho todo

particular, fulgurando como meteoros em todos os

pontos da dança ao mesmo tempo. Seria impossível

prever onde iriam eles aparecer no momento

seguinte.

Quando o senhor e a senhora Fezziwig executaram

todos os passos da contradança, Fezziwig terminou

com um magnífico entrechat, depois do qual se pôs

novamente em pé, firme e erecto como um I.

Esta noitada familiar terminou exatamente quando

o relógio bateu as onze horas. Então, o senhor e a

senhora Fezziwig colocaram-se de cada lado da

porta, apertando a mão a cada um dos convidados e

desejando a cada um deles um feliz Natal. Quando

todos se retiraram, com exceção dos dois

aprendizes, os Fezziwig trocaram com estes os

mesmos votos; em seguida, as alegres vozes

calaram-se e os dois rapazes voltaram para seus

leitos, arrumados num cômodo atrás da loja.

Enquanto o baile durou, Scrooge comportou-se como

um homem que tivesse sido transportado para a

sua mocidade. Tomava parte de alma e coração na

cena, com o Scrooge de outros tempos. Ele tudo

reconhecia, lembrava-se de tudo, divertia-se com

tudo e manifestava a mais estranha emoção. Foi

somente quando os rostos alegres de Dick e do

outro Scrooge se desviaram deles, que ele se

lembrou da presença do espírito. Notou, então, que

este o observava com atenção e que a claridade do

ápice de sua cabeça brilhava com viva intensidade.

- Não vejo nada de extraordinário para inspirar a

estes idiotas tanto reconhecimento, disse o

espírito.

- De fato, disse Scrooge.

O espírito fez-lhe sinal com o dedo para escutar os

dois aprendizes que cantavam os louvores de

Feziwig. Depois, continuou

- Como? Aí está uma coisa engraçada! Este homem

não despendeu senão algumas libras do seu

dinheiro terrestre. Isso é razão para tanto elogio?

- Não se trata disso, protestou Scrooge já

esquentado por esta observação e falando, sem que

o percebesse, como teria falado o Scrooge de

outrora. Não se trata disso, Espírito. Fezziwig tem o

poder de nos fazer felizes ou infelizes; pode fazer

que o nosso trabalho seja um prazer ou uma

insuportável tarefa. Que este poder se manifeste

por palavras, por gestos ou olhares, pouco importa;

a felicidade que espalha em torno dele é tão grande

como se custasse uma fortuna.

Scrooge sentiu pesar sobre ele o olhar do espírito, e

calou-se.

- Que é que há? perguntou este.

- Nada de mais, respondeu Scrooge.

- Alguma coisa te preocupa, insistiu o espírito.

- Nada, mesmo, disse Scrooge. Eu gostaria de dizer

duas ou três palavras a meu empregado, que aí

está.

Expresso este desejo, o antigo Scrooge apagou as

velas, e Scrooge e o fantasma acharam-se

novamente na rua, lado a lado.

- Apressemo-nos, observou o espírito. Meu tempo

esgota-se.

**

Esta injunção não se dirigia a Scrooge, nem a

ninguém que ele pudesse ver, mas seu efeito foi

imediato. O antigo Scrooge reapareceu, com alguns

anos a mais, sob a forma de um homem em plena

juventude. Seu rosto não tinha ainda os traços

duros e rígidos da idade madura, mas já se podiam

descobrir ali os sinais de uma natureza avarenta e

inquieta. Havia em seu olhar qualquer coisa de

impaciência, de inquietude, de avidez, de

sofreguidão, que deixava entrever qual a paixão que

se havia enraizado nele e de que lado, ao crescer,

esta árvore projetaria a sombra.

Scrooge não estava só. A seu lado, sentava-se uma

jovem vestida de luto, cujos olhos cheios de

lágrimas brilhavam à luz que espalhava o fantasma

dos Natais passados.

- A ti pouco importa, dizia-lhe ela com doçura; outro

ídolo tomou meu lugar. Mas, se ele puder dar-te, no

futuro, a alegria e os carinhos que eu mesma teria

tentado dar-te, não tenho justa razão para afligirme.

- Que ídolo tomou teu lugar? perguntou ele.

- O bezerro de ouro.

- Aí está como é o mundo e sua justiça! exclamou

ele. Não trata nada com tanta severidade como a

pobreza, nem condena com mais dureza a loucura

pelo dinheiro.

- Dás muita importância à opinião do mundo,

respondeu a jovem calmamente. Todos os teus

outros. desejos desapareceram diante do desejo de

não incorrer no seu mesquinho vitupério. Vi caírem,

uma por uma, as tuas mais nobres aspirações, até

que te absorvesses completamente na tua paixão

dominante - o amor pelo dinheiro. Não é verdade?

- E depois? Quando mesmo eu me tornasse mais

prudente com o decorrer dos anos, que poderia isso

significar? Não teria eu ficado o mesmo aos teus

olhos?

Ela meneou a cabeça.

- Tu me achas mudado?

- Nosso noivado data de longos anos, de um tempo

em que ambos éramos pobres mas vivíamos

satisfeitos com o nosso destino, esperando

melhorá-lo com o nosso trabalho perseverante.

Desde então, mudaste muito e já não és o mesmo

homem.

- Eu era uma criança, replicou ele com impaciência.

- Tu mesmo te achas agora diferente do que eras.

Quanto a mim, sou sempre a mesma; mas o que

me prometia a felicidade, quando éramos dois

corações em um só, não seria mais que uma fonte

de perenes sofrimentos, agora que estão

separados. Quantas vezes já fiz a mim mesma

estas amargas reflexões, nem eu própria saberia

dizê-lo. O que interessa, porém, é que eu as tenha

feito e que te devolva a liberdade.

- Acaso já procurei readquiri-la?

- Com palavras, não, nunca.

- Então, como?

- Mudando de natureza, de humor e de caráter. Já

não vês do mesmo modo tudo aquilo que, noutros

tempos, tornava o meu amor precioso aos teus

olhos. Se não existisse nenhum compromisso entre

nós, disse a jovem fazendo pesar sobre ele um

olhar terno mas firme, terias vindo procurar-me

hoje? Certamente, não.

Ele pareceu concordar, a contragosto, com a justeza

desta hipótese. Entretanto, respondeu com esforço:

- Não pensas o que dizes.

- Eu gostaria de pensar de outro modo, se fosse

possível. Chamo o céu por testemunha. Para

ajustar-me a semelhante verdade, é mister que ela

seja realmente de uma força irresistível. É essa a

razão pela qual, com o coração despedaçado,

devolvo a liberdade ao homem que foste outrora.

Pode ser - e a lembrança do passado justifica em

mim essa leve esperança - que experimentes

alguma saudade; mas sei que logo, muito logo,

repelirás essa lembrança como um sonho mau, do

qual se acorda com alívio. Possas tu ser feliz na

vida que escolheste!

Aqui se separaram.

- Espírito, disse Scrooge, não me mostreis mais

nada! Levai-me de novo para minha casa. Por que

haveis de gozar com a minha tortura?

- Uma sombra ainda! exclamou o fantasma.

- Não, não, nada mais! gritou Scrooge. Não quero

ver mais nada. Não me mostreis mais nada!

O espírito, porém, inflexível, sujeitou-o e obrigou-o

a olhar para o que ia acontecer.

**

A cena e a paisagem eram outras. Achavam-se

numa sala nem demasiado vasta, nem muito

luxuosa, mas confortável. Ao pé de um bom fogo,

estava sentada uma jovem de excelsa beleza, tão

semelhante à precedente, que Scrooge se teria

enganado se não tivesse visto, do outro lado do

fogo, esta última transformada em mãe de família,

sentada em frente de sua filha.

Fazia-se um grande barulho naquela sala, pois

havia nela mais crianças do que Scrooge poderia

enumerar, na agitação em que se encontrava, e era

tal a algazarra, que cada criança valia por dez.

Daquilo tudo, resultava um descomunal

pandemônio, mas ninguém reclamava; ao contrário,

mãe e filha riam e divertiam-se de coração.

Mas logo esta última, resolvendo tomar parte no

brinquedo, foi assaltada imediatamente pelas

crianças.

Que teria eu dado para ser um deles, muito

embora, diga-se de passagem, jamais me atrevesse

a portar-me com tamanha audácia. Não! Por nada

deste mundo me abalançaria a desmanchar o seu

penteado ou tocar nas suas tranças. Como poderia

eu esconder seu delicado sapatinho, nem que fosse

para salvar a minha vida? Mas, oh! quanto me fora

doce - devo confessá-lo - poder aflorar-lhe os

lábios; fazer-lhe perguntas só para vê-la entreabrir

a mimosa boca; admirar, sem que ela corasse, os

cílios de seus olhos baixos; acariciar as ondas dos

seus cabelos, dos quais uma única madeixa teria

sido para mim de valor inestimável! Confesso que

me sentiria feliz, se pudesse gozar junto dela do

mais pequeno privilégio de uma criança, mas sem

deixar de ser um homem, para poder apreciar-lhe o

valor.

Mas eis que começam a bater. Verifica-se uma tal

corrida para a porta, que a jovem, rindo-se e com a

roupa em desordem, é arrastada pela onda ruidosa,

no momento preciso de receber o papai, que chega

em companhia de outro homem carregado de

brinquedos e presentes de Natal.

Imaginem, agora, os gritos, as lutas, os assaltos

travados contra o pobre homem indefeso.

Cada um procura alcançá-lo com auxílio de cadeiras,

para remexer-lhe os bolsos e tomar-lhe os pacotes

embrulhados em papel colorido. Este se lhe pendura

ao pescoço, aquele o pega pela gravata, enquanto

outros lhe aplicam afetuosas palmadas nas costas e

nas pernas.

Que exclamação de júbilo e de surpresa a cada

pacote que se abria! Que emoção ao gritarem

apavorados que o caçulinha foi encontrado a enfiar

na boca uma frigideira de brinquedo, e que estão

com medo de que tenha engolido um peruzinho em

miniatura, colado no pratinho de madeira. E que

alivio quando verificaram que tudo isso não passava

de um boato! E como descrever a alegria, o êxtase

e o reconhecimento de toda esta garotada?

Finalmente, tendo chegado a hora de se

recolherem, todas as crianças se retiraram, com os

corações cheios de emoções barulhentas e subiram

ao andar superior onde encontrariam o repouso nos

seus leitos.

O interesse com que Scrooge contemplava esta

cena aumentou quando o dono da casa, tendo a

filha ternamente apoiada contra si, veio sentar-se

entre ela e a esposa, diante da lareira. Então,

Scrooge sentiu os olhos marejados de lágrimas,

quando começou a pensar que uma jovem

semelhante àquela, igualmente dotada de tais

encantos e promessas, teria podido chamar-lhe pai

e ter-lhe enchido de toda uma primavera o inverno

bravio de sua existência.

- Isabel, disse o marido, voltando-se para sua

mulher com um sorriso, encontrei hoje à tarde um

velho amigo teu.

- Sim? E quem era?

- Adivinha.

- Como queres que eu adivinhe? . . . Ah, sim!

acrescentou em seguida, rindo-se com ele. É o

senhor Scrooge.

- Exatamente. Passei diante do seu escritório, e

como estava iluminado e as janelas estavam

abertas, resolvi fazer-lhe uma visita. Disseram-me

que seu sócio está quase à morte. Assim pois,

estava só, mesmo porque me parece que ele não

tem mais ninguém no mundo.

- Espírito! disse Scrooge com voz trêmula, levai-me

para longe daqui!

- Eu te preveni de que eram as sombras das coisas

passadas. Se elas são como estás vendo, não me

cabe a culpa.

- Levai-me! exclamou Scrooge. Não posso mais

suportar!

Scrooge voltou-se para o espírito e, vendo que este

o olhava com uma expressão - coisa estranha! -

onde se encontravam todas as fisionomias das

sombras evocadas, atirou-se sobre ele.

Nesta luta, se se pode chamar luta a um assalto

onde o espírito, sem resistência aparente,

permanecia insensível aos esforços do seu

adversário, Scrooge percebeu que a luz que

fulgurava na cabeça do fantasma tornava-se cada

vez mais clara e mais alta.

Associando confusamente a idéia desta luz com a

influência que o espírito exercia sobre ele, tomou o

chapéu extintor com um imprevisto e rápido gesto e

lhe enterrou na cabeça. O espírito desvaneceu-se

imediatamente, ficando inteiramente coberto pelo

extintor.

Scrooge atirou-se com todo o seu peso sobre o

extintor, mas todo o seu esforço foi inútil para

aprisionar a luz que dele se escapava e que se

derramava pelo chão.

Scrooge sentiu que as forças o abandonavam, ao

mesmo tempo que o tomava uma incoercível

vontade de dormir. Entretanto, tinha consciência de

que se achava novamente em seu quarto. Sua mão

fez um último esforço para enterrar mais o chapéu,

mas o pulso afrouxou, e mal teve tempo para

ganhar o leito, cambaleando, antes de mergulhar

num sono profundo.

TERCEIRA ESTROFE



O segundo dos três espíritos



Despertado em meio de um barulhento ressonar,

Scrooge sentou-se na cama para coordenar as

idéias, sem precisar ser avisado de que o relógio ia

bater uma hora. Tinha consciência de que a lucidez

de espírito lhe voltava justamente no instante em

que devia travar conhecimento com o segundo

mensageiro anunciado por Jacob Marley. Mas

quando começava a perguntar a si mesmo qual

seria a cortina do leito que ia ser movida desta vez

pelo novo espírito, sentiu um arrepio tão

desagradável, que resolveu puxar todas as cortinas

com as próprias mãos.

Feito isto, deitou-se de novo, mas sem cessar a

rigorosa vigilância em redor do leito, pois queria

fazer frente ao espírito desde o momento de sua

aparição, e não ser tomado de surpresa, o que lhe

inutilizaria todos os seus recursos.

Aqueles que pretendem estar sempre à altura das

circunstâncias e não se perturbar com coisa alguma

costumam afirmar, para darem uma idéia de seu

sangue-frio, que podem permanecer tão calmos

diante de um sangrento duelo como diante de uma

partida de cartas. Entre estes dois extremos, há

evidentemente lugar para os mais diversos

acontecimentos.

Sem me atrever a pôr a mão no fogo por Scrooge,

posso declarar-vos, entretanto, que ele estava

disposto a afrontar todas as aparições, as mais

variadas ou mais estranhas, e que nada,

absolutamente nada lhe causaria surpresa, desde

uma simples criança até um descomunal

rinoceronte.

Mas, se Scrooge estava preparado para ver o que

quer que fosse, não estava absolutamente

preparado para não ver coisa alguma. Assim pois,

quando o relógio bateu uma hora e nenhum

fantasma apareceu, um violento tremor apossou-se

de todo o seu ser.

Cinco . . . Dez . . . Quinze minutos transcorreram, e

nada aparecia. Durante todo esse tempo, Scrooge

permaneceu estendido no leito, onde se

concentravam os raios de uma luz avermelhada, que

começara a brilhar no momento em que o relógio

soava uma hora.

Esta simples claridade parecia a Scrooge mais

inquietante que uma dúzia de fantasmas, pois não

podia compreender o que aquilo podia significar. Por

vezes, era levado a imaginar que o fenômeno não

passasse de um caso de combustão espontânea,

embora não tivesse a consolação de o saber ao

certo.

Finalmente, Scrooge explicou-se a si mesmo - como

qualquer pessoa o faria - que o segredo desta

misteriosa luz estava sem dúvida na sala vizinha,

de onde, bem observado, ela parecia vir.

Estribado nesta idéia, levantou-se da cama

vagarosamente, calçou as chinelas e dirigiu-se para

a porta. No momento em que punha a mão na

maçaneta, uma voz desconhecida o chamou de

dentro, convidando-o a entrar.

Scrooge obedeceu.

O quarto era exatamente o seu, isso lá era, sem a

menor dúvida -, mas havia passado por uma incrível

transformação. As paredes e o teto estavam tão

bem enfeitados de vegetação, que se haviam

tornado um verdadeiro bosque, onde brilhavam

esparsos lagos espelhantes. As folhas verticais de

azevinho, do agárico e da hera refletiam as luzes

como outros tantos minúsculos espelhos. No fogão,

crepitava um esplêndido fogo, como jamais

crepitara neste desajeitado fogão em nenhum outro

inverno, nem no tempo de Marley.

Empilhados no chão, de modo a formar uma espécie

de trono, encantavam a vista inumeráveis vitualhas,

como perus, patos, caça, aves, presuntos, pernas

de porco, leitoas, verdadeiras guirlandas de

salsichas, ostras, castanhas ainda quentes, rubras

maçãs, laranjas apetitosas, suculentas peras,

imensos bolos reais, taças de vinho espumante,

cujo delicioso aroma enchia todo o ambiente.

Sobre este incrível estrado estava confortavelmente

instalado um belo e jovial gigante, em cuja mão

sustentava um facho aceso em forma de cornucópia.

Quando Scrooge entreabriu a porta para passar, o

gigante ergueu o facho bem alto para projetar a luz

sobre o rosto do recém-chegado.

- Entra! gritou o espírito. Entra, meu amigo, e

façamos as nossas apresentações.

Scrooge entrou timidamente e baixou a cabeça

diante deste novo espírito. Já não era o Scrooge

rabugento da véspera, mas, embora os olhos claros

da aparição tivessem uma expressão de bondade,

Scrooge não podia enfrentar a sua irradiação.

- Eu sou o fantasma do Natal presente, disse o

espírito. Olha-me.

Scrooge obedeceu respeitosamente.

O espírito vestia um simples manto verde-escuro

guarnecido de branco. Este manto era tão simples e

tão folgado, que deixava descoberto o peito largo.

Também estavam descalços seus pés, que

apareciam sob as pregas da estranha indumentária.

Como coroa, tinha um ramo de azevinho ornado com

uns enfeites cintilantes imitando pedaços de gelo.

Longas e escuras madeixas brincavam-lhe

livremente sobre o rosto generoso e franco,

franqueza esta que também se refletia em seu

olhar cintilante, em sua voz sonora, em sua mão

aberta, em sua expressão alegre e em suas

maneiras cativantes. Pendia-lhe da cintura uma

velha bainha, já bastante enferrujada e sem a

respectiva espada.

- Já viste, em toda a tua vida, alguma pessoa

parecida comigo? perguntou o espírito.

- Não, nunca, respondeu Scrooge.

- Nunca viajaste com os mais jovens membros de

minha família, ou melhor, com os meus irmãos mais

velhos vindos ao mundo no decorrer destes últimos

anos?

- Não creio, disse Scrooge. Parece-me que não.

Tendes muitos irmãos, Espírito?

- Mais de mil e oitocentos.

- Que família para manter! murmurou Scrooge.

O fantasma do Natal presente levantou-se.

- Espírito, disse Scrooge com voz humilde, levai-me

aonde vos aprouver. Ontem à noite saí contra a

vontade e recebi uma lição que começa a produzir

seus frutos. Esta noite, se tiverdes alguma coisa a

ensinar-me, estou pronto para tirar dela todo o

proveito.

- Toca em meu manto, disse o fantasma.

Scrooge obedeceu e segurou a roupa do gigante. No

mesmo instante, desapareceram azevinhos,

agáricos, heras, lagos brilhantes, perus, patos,

caças, frangos, assados, presuntos, ostras e

salsichas. Do mesmo modo, desapareceram

repentinamente o quarto, o fogo, a luz

avermelhada, a própria hora noturna, e Scrooge

achou-se em uma das ruas de Londres perto de seu

companheiro, por uma manhã de Natal.

Fazia um tempo chuvoso, e as pessoas produziam

uma espécie de música, que não era desagradável,

ao raspar a neve que se acumulava nos seus portais

e nos rebordos dos telhados. As crianças

regalavam-se ao ver a neve, que rolava em grandes

porções, despedaçando-se na calçada em pequenas

avalanchas.

As fachadas das casas pareciam ainda mais negras

em contraste com a alva e lisa camada de neve,

que cobria os telhados e até mesmo com a neve da

rua; esta não tinha a mesma alvura, pois as

pesadas rodas das viaturas haviam cavado ali

profundos sulcos, que se cruzavam e se

entrecortavam nas encruzilhadas, formando um

intricado de pequenos canais que se perdiam numa

espessa mistura de lama amarelada e de água

gelada.

O céu era triste, as ruas tomadas por uma opaca

neblina, que era meio chuvisco, meio gelo, cujas

partículas mais densas recaíam em gotículas

fuliginosas, como se todas as chaminés da Grã-

Bretanha tivessem sido acesas ao mesmo tempo e

estivessem passando por uma limpeza em regra.

Nada havia de muito agradável neste aspecto

hibernal de Londres. Entretanto sentia-se por toda

parte uma atmosfera de alegria, que nem mesmo o

mais belo sol de verão, nem o mais límpido ar

seriam capazes de criar. Assim, os varredores de

neve demonstravam o mais jovial bom-humor,

interpelando-se de cima dos telhados, atirando-se

de quando em quando mútuas bolas de neve -

projéteis menos perigosos que certos gracejos -,

rindo alegremente, quando atingiam o alvo e rindo

do mesmo modo, quando falhavam.

As churrascarias ainda não estavam de todo

abertas, mas as casas de frutas ostentavam todo o

seu esplendor. Ali, grandes cestas de castanhas,

repletas até aos bordos, ostentavam-se nas portas,

ameaçando rolar para a rua, vítimas de seu próprio

volume. Havia maçãs e pêras amontoadas em

vistosas pirâmides, cachos de uvas que o

negociante tivera o cuidado de pendurar bem à

vista, para que, aos transeuntes, lhes viesse água

à boca, sem que isso lhes custasse nada.

Havia pêssegos dourados e veludosos, cujo aroma

lembrava passeios de inverno nos bosques, maçãs

de Norfolk, cuja tonalidade morena fazia ressaltar o

amarelo-claro dos limões e laranjas. Até os peixes,

prateados e dourados, expostos em aquários no

meio destas frutas selecionadas, pareciam adivinhar

que se passava qualquer coisa de anormal, e, de

boca aberta, faziam evoluções no seu pequenino

mundo, tomados de grande agitação.

E as mercearias! Oh! as mercearias! Estavam quase

fechadas, mas, pelos pequenos espaços

entreabertos, que espetáculo esplêndido! O que

tornava encantadora a atmosfera não era apenas o

alegre ruído das balanças, o barulho das caixas, que

ora se abriam, ora se fechavam, o esquisito aroma

que se evolva a um tempo do chá e do café, a

grossura e a abundância das passas, a extrema

alvura das amêndoas, a beleza dos paus de canela,

tão compridos e retos, ou o perfume penetrante das

outras especiarias; não era somente a presença

apetitosa dos figos moles e carnosos, das ameixas

agridoces, dos confeitos açucarados, capazes de

fazer morrer de vontade os menos gulosos, ou

ainda os enfeites de Natal, constituídos por todas

estas lindas coisas; era também a alegria dos

fregueses, tão possuídos da grandeza daquele

esperançoso dia, que se apertavam a ponto de

achatarem os seus cestos, se esqueciam de suas

compras sobre o balcão e voltavam correndo para

buscá-las, tudo isto com a maior alegria possível;

era a presteza dos caixeiros risonhos e agradáveis,

que corriam solícitos atendendo a todos e

patenteando, na paciência com que serviam a sua

jovial freguesia, a satisfação que lhes ia na alma.

Com o badalar dos sinos chamando o povo para as

igrejas e as capelas, as ruas encheram-se de uma

multidão de pessoas, ostentando os seus mais

belos trajes, bem como as suas mais joviais

fisionomias. Ao mesmo tempo, de uma quantidade

de estreitas ruas, de vielas e passagens ignoradas,

surgiu uma multidão de homens e mulheres

trazendo seus respectivos manjares ao padeiro,

para mandá-los esquentar.

A vista desta humilde gente e de suas ingênuas

festas pareceu interessar ao Espírito no mais alto

grau.

Postando-se, em companhia de Scrooge, à porta de

uma padaria, descobria e incensava com o seu

facho todos os pratos, à medida que iam passando.

Era de fato um facho extraordinário. Uma ou duas

vezes, quando alguns portadores de viandas

trocavam mútuos insultos por se terem chocado na

fila, bastou que o espírito erguesse sobre eles o

seu facho para que imediatamente lhes voltasse o

bom-humor. .Efetivamente, é bastante vergonhoso,

diziam eles próprios, levantar questões num dia de

Natal.. E era a pura realidade.

Depois, os sinos silenciaram e as padarias

fecharam-se. Nos subsolos, porém, as carnes

assavam, e, sobre o fornos, na rua, as próprias

calçadas fumegavam, como se as pedras do passeio

estivessem igualmente a cozer.

- Será que têm algum sabor particular estas

gotículas que caem do vosso facho? perguntou

Scrooge.

- Sim, naturalmente. Têm o sabor do Natal.

- E este sabor pode transmitir-se no dia de hoje a

qualquer prato?

- A qualquer prato dado de bom coração,

especialmente aos mais pobres.

- Por que aos mais pobres?

- Porque são os que têm mais necessidade deles.

**

Ambos se calaram, e, sempre invisíveis,

prosseguiram seu caminho pelas ruas da cidade. O

espírito era dotado de uma extraordinária

faculdade, que Scrooge já havia notado na

confeitaria: apesar de seu talhe gigantesco, estava

sempre perfeitamente à vontade, onde quer que

fosse; mesmo sob o mais baixo teto, andava com a

mesma graça e naturalidade como se estivesse no

mais luxuoso palácio.

Ou fosse para fazer alarde deste poder, ou fosse

levado pelo seu coração generoso, compassivo

pelos humildes, o certo é que foi para a casa do seu

empregado que o espírito arrastou Scrooge, sempre

agarrado ao seu manto. Na soleira da porta o

espírito sorriu e deteve-se para abençoar a casa de

Bob Cratchit, levantando o seu facho.

Então, apareceu a senhora Cratchit, esposa de Bob,

vestida muito modestamente com um vestido já

surrado mas que ela havia enfeitado garridamente

com umas fitas baratas, que custam apenas alguns

centavos e fazem tanta vista.

A senhora Cratchit estendia a mesa ajudada por

Belinda, sua segunda filha, também toda garrida,

enquanto Pedro Cratchit, enterrado em seu vasto

cachecol, herdado de seu pai, espetava um garfo na

panela de batatas, contente por se ver tão elegante

e suspirando por se mostrar na rua.

No mesmo instante, os dois últimos Cratchits, um

menino e uma menina, precipitaram-se na sala,

gritando que acabavam de sentir o cheiro do pato,

do .seu. pato, quando passaram diante da padaria.

Depois, embriagados com o pensamento do gostoso

molho de cebola que estavam preparando, puseramse

a dançar em homenagem à habilidade do

cozinheiro Pedro Cratchit.

Modesto, apesar de seu vistoso colarinho que quase

o enforcava, este pôs-se a soprar o fogo com tanta

graça que logo as batatas começaram a dançar na

água fervente e vieram tamborilar contra a tampa

da panela para anunciar que já estavam cozidas e

prontas para serem descascadas.

- Que será que está prendendo seu querido papai e

seu irmão Tinzinho? disse a senhora Cratchit. E

Marta? No Natal passado, ela chegou meia hora

mais cedo.

- Cá está Marta, mamãe! disse uma garota que

vinha entrando naquele instante.

- Cá está Marta! exclamaram os dois pequeninos

Cratchits. Urra! Veja, Marta! Temos pato hoje!

- Louvado seja Deus, minha querida! Como estás

atrasada hoje! observou a senhora Cratchit,

abraçando-a repetidas vezes e tomando-lhe

solicitamente o chapéu e o xale.

- Tivemos que terminar uma porção de coisas ontem

à noite, respondeu a moça, e hoje de manhã

tivemos de pôr tudo em ordem.

- Está bem; o essencial é que já estás aqui.

Senta-te perto do fogo, querida, e aquece-te um

pouco.

- Não, não, aí está papai! gritaram os pequeninos

Cratchits, que estavam sempre em toda parte ao

mesmo tempo.

- Vai esconder-te, Marta! Vai esconder-te!

Marta escondeu-se, e Bob, com o cachenê

arrastando no chão, com a roupa usada mas bem

escovada e em ordem para dar idéia de dia de

festa, irrompeu na sala, trazendo o Tinzinho às

costas.

Pobre Tinzinho! Trazia umas muletinhas, e suas

pernas eram sustentadas por um aparelho de metal.

- Muito bem! Onde está nossa Marta? Exclamou Bob

Cratchit, lançando os olhos em torno.

- Ela não pode vir, disse a senhora Cratchit.

- Não pode vir! repetiu Bob perdendo subitamente

seu primeiro entusiasmo, pois acabava de servir de

cavalo ao pequeno Tim, e estava fatigado por Ter

corrido desde a igreja até à casa dele. - Ela não

pode vir! Num dia de Natal!

Marta ficou penalizada por vê-lo decepcionado,

mesmo em se tratando de uma brincadeira, e sem

mais perder tempo abriu a porta que a escondia e

atirou-se

aos braços do pai, enquanto os dois pequeninos

Cratchits levavam Tinzinho para a cozinha, onde

estavam cozinhando o pudim.

- E como se tem portado o Tinzinho? Perguntou a

senhora Cratchif, depois de ter gracejado com Bob

por motivo de sua credulidade e depois que este

abraçou a filha cheio de satisfação.

- Como um anjo, disse Bob, e mais ainda. Quando

está calmo, torna-se reflexivo, e todos nós ficamos

admirados com as idéias que lhe ocorrem. Ainda há

pouco me dizia que esperava que todos o tivessem

notado na igreja por ser doente, e, acrescentou,

especialmente no , dia de Natal os cristãos devem

sentir-se felizes ao pensarem naquele que fazia

andar os coxos e restituía a vista aos cegos.

Repetindo estas palavras, a voz de Bob tremia, e

tremeu mais ainda quando observou que Tinzinho

se tornava cada dia mais forte e mais vigoroso.

As batidas da muletinha fizeram-se ouvir sobre o

soalho, e antes que tivessem dito qualquer outra

palavra, Tinzinho apareceu em companhia dos

irmãos e da irmã, que o ajudaram a subir ao seu

banquinho, no canto do fogo.

Então, arregaçando as mangas, como se receasse

que elas se estragassem mais, as pobres mangas,

Bob preparou numa vasilha uma mistura revigorante

com gim e limão, agitou-a fortemente e a pôs para

esquentar perto do fogo. Pedro e os dois pequenos

Cratchits, que se viam em toda parte ao mesmo

tempo, correram buscar o pato, que trouxeram logo

a seguir, em triunfal procissão.

A celeuma que se seguiu, poder-se-ia acreditar que

o pato era, naquele instante, a mais rara das aves,

um fenômeno emplumado, e que perto dele um

cisne negro não passava de uma insignificante

curiosidade. Realmente, era este o caso naquela

modesta residência.

A senhora Cratchit fervia o molho depositado numa

caçarola, enquanto Pedro Cratchit esmagava as

batatas com incrível vigor, Belinda preparava a

calda de maçãs, Marta enxugava os pratos, Bob

colocava Tinzinho à mesa, ao lado dele, e os

pequeninos Cratchits punham as cadeiras para

todos, inclusive para si mesmos; uma vez bem

instalados, puseram uma colher na boca, para que

não fossem tentados a pedir seu pedaço de pato

antes de chegar-lhes a vez de serem servidos.

Finalmente, colocados todos em seus respectivos

lugares, recitou-se a oração de antes das refeições.

Seguiu-se, então, um silêncio impressionante,

enquanto a senhora Cratchit, tomando lentamente a

faca de trinchar, se preparava para cortar a ave.

Mal, porém, a senhora Cratchit enterrou a faca nas

laterais do pato, após tão mal contida ansiedade,

um .hurra. de contentamento estrugiu por toda a

sala. O próprio Tinzinho, excitado pelos dois

pequeninos Cratchits, bateu na mesa com o cabo da

faca e repetiu um .hurra..

Nunca, em tempo algum, se tinha visto um pato

semelhante. Bob declarou que jamais se fizera um

pato assado igual àquele; foram objeto de

comentários o seu preço, a qualidade, o tamanho e

o delicioso gosto. Ainda mais, com o molho de

maçãs e o pirão de batatas, este pato representava

um lauto almoço para toda a família, .e até mesmo

sobrou., observou a senhora Cratchit com

satisfação, olhando alguns ossos relegados no

prato.

Entretanto, todos comeram à vontade, inclusive os

pequenos Cratchits, que tinham a cara lambuzada

de pato e de molho até aos olhos. E agora,

enquanto Belinda muda os pratos, a senhora

Cratchit sai sozinha da sala, para esconder sua

grande emoção, e vai buscar o pudim.

Oh, e se o pudim não estiver bem cozido! E se ele

se desmoronar quando for desenformado! E

imaginem se alguém se introduziu na despensa e o

roubou, enquanto todo mundo se regalava com o

pato!

A estes dolorosos pensamentos, os dois Cratchits

fizeram-se lívidos. Os mais horríveis receios

assaltavam-nos.

Ah, uma nuvem de vapor! É o pudim que sai do

forno . . . Agora, um cheiro de lixívia . . . É do pano

que está envolvendo o pudim. Um aroma que

parece vir de uma pastelaria, situada entre um

restaurante e uma lavanderia! Pois é o próprio

pudim! . . .

Meio minuto mais tarde, a senhora Cratchit, com o

rosto afogueado mas com um sorriso de triunfo nos

lábios, reaparece com o pudim: um pudim

semelhante a uma bala de canhão, todo,

mosqueado, duro e compacto, tendo em cima um

galho de azevinho, mergulhado na base em um

quarto de pinta de brandy inflamado.

Oh, que maravilhoso pudim!

Bob Cratchit declarou, solenemente, que era a mais

perfeita obra-prima que a senhora Cratchit executou

desde que casaram. A senhora Cratchit, agora com

o espírito liberto do receio de errar, confessava ter

tido alguma dúvida sobre a quantidade de farinha

empregada.

Cada um teve alguma coisa a dizer sobre o pudim;

mas o que ninguém disse, e talvez nem mesmo se

atrevesse a pensar, é que o referido pudim era

demasiado pequeno para tão grande família.

Em verdade, isso teria sido uma espécie de

blasfêmia, e quaisquer dos Cratchits teria corado de

vergonha à simples idéia de fazer tal alusão.

Finalmente, o almoço terminou. A mesa foi

levantada, o chão varrido e a lareira reabastecida.

Em seguida, após o elogio feito à bebida que fora

distribuída entre todos os presentes, foram

servidas, à mesa, maçãs e laranjas, ao mesmo

tempo que se atiravam à cinza punhados de

castanhas.

Depois, toda a família Cratchit se reuniu diante do

fogo - ao que Bob Cratchit chamava .fazer roda. em

torno do fogo.

Ao lado de Bob tinha-se juntado tudo o que havia

na casa de finos cristais, isto é, dois copos de pé e

uma xícara sem asa. Mas, pouco importava: não

continham tais vasos o licor saboroso, do mesmo

modo como se estivesse em finos vasos de ouro?

Bob distribuiu licor a todos, com ar radioso,

enquanto as castanhas pulavam na cinza e

rachavam com estalos intermitentes. Em seguida,

Bob Cratchit levantou este brinde:

- A todos vocês, meus amigos, um felicíssimo

Natal! Que Deus nos abençoe a todos!

Toda a família respondeu alegremente.

- Que Deus abençoe a cada um de nós! disse

Tinzinho, o último de todos.

Tinzinho estava sentado ao lado do pai, em seu

banquinho, e Bob tinha entre as suas as magras

mãozinhas do filho querido, estreitando-o contra si,

amorosamente, como se receasse que alguém lhe

viesse arrebatá-lo.

- Espírito, falou Scrooge com um interesse que

jamais sentira, dizei-me se Tinzinho viverá muito

tempo.

- Vejo uma cadeira vazia neste pobre lar, e umas

muletinhas sem dono, conservadas como uma

dolorosa lembrança. Se estas sombras não forem

modificadas no futuro, esta criança morrerá.

- Não, não, meu bom espírito! exclamou Scrooge,

dizei-me que o pequeno será poupado.

- Se os destinos permanecerem estáveis nestas

imagens, respondeu o espírito, nenhum membro de

minha raça o tornará a encontrar aqui. E por que

deplorá-lo? Se é seu destino morrer, que morra já!

Isso virá diminuir o excesso de população . . .

Ouvindo o espírito repetir suas próprias palavras,

Scrooge baixou a cabeça, tomado de sentimento e

de remorso.

- Homem, disse o espírito, se possuis um coração

humano e não um coração de pedra, deixa de dizer

tolices até que tenhas descoberto o que é excesso

de população e onde existe. A ti é que cabe decidir

quais são, entre os homens, aqueles que devem

viver e aqueles que devem morrer? Pode muito bem

ser que aos olhos de Deus sejas tu muito menos

digno de viver do que milhares de seres

semelhantes ao filho deste pobre homem. Justos

céus! Ouvir o inseto pousado sobre a folha dizer

que acha muito numerosos os seus irmãos famintos

que se debatem na poeira!

Scrooge ouvia, de cabeça baixa, a invectiva do

fantasma e olhava para o chão a tremer.

Subitamente, ergueu os olhos ao ouvir pronunciar

seu nome.

- À saúde do senhor Scrooge! dizia Bob. A saúde de

meu patrão, graças ao qual estamos hoje em festa.

- Bonito patrão, realmente, exclamou a senhora

Cratchit corando. Eu gostaria que estivesse aqui! Eu

lhe faria uma bela saudação a meu modo . . .

- Minha querida amiga... disse Bob. As crianças... o

dia de Natal . . .

- É preciso, de fato, que seja dia de Natal, replicou

a mulher, para que se beba à saúde de um homem

tão detestável, ladrão, cruel e sem coração como o

senhor Scrooge. Você bem sabe quem ele é, Bob!

Você o sabe melhor que ninguém, meu pobre amigo!

- Querida... protestou Bob com doçura. É dia de

Natal! . . .

- Se eu beber à saúde dele; será só por você e por

ser dia de Natal, mas não por ele mesmo. Assim

pois, longa vida ao senhor Scrooge! Bom Natal e

feliz Ano Novo! É isso, segundo penso, que o fará

feliz e alegre! . . .

As crianças brindaram, depois dela, à saúde de

Scrooge; era a primeira coisa, naquela noite, que

faziam de má vontade. O último que bebeu foi

Tinzinho, mas sem entusiasmo. Scrooge era o pavor

da família Cratchit. A simples menção de seu nome

lançou sobre a reunião familiar uma sombra que

durou vários minutos.

Quando o terror se dissipou, todos, aliviados por

terem liquidado o assunto antipático de Scrooge,

ficaram dez vezes mais alegres que antes. Bob

Cratchit falou de um emprego que- tinha em vista

para Pedro, onde poderia ganhar meia libra por

semana. Os pequenos Cratchits deram gostosas

gargalhadas à idéia de verem Pedro .trabalhar..

Quanto a Pedro, olhava para o fogo com ar

pensativo, entre as duas pontas do seu colarinho,

como se perguntasse a si mesmo onde iria colocar

seu dinheiro, quando estivesse de posse de tal

fortuna. Marta, simples aprendiz na oficina de uma

modista, contava o que fazia no atelier, quantas

horas tinha de trabalho e falou da satisfação do dia

seguinte, tirando uma manhã por sua conta e indo

passear em casa da família. Falou, também, de um

lorde e de um condessa que tinham vindo à loja

alguns dias antes. .Este lorde era mais ou menos

da estatura de Pedro.. A estas palavras, Pedro

ergueu tão alto o colarinho, que este quase lhe

escondeu completamente o rosto.

Durante este tempo, as castanhas e o bule

passavam e repassavam entre todos os que

formavam a roda. Para terminar, Tinzinho cantou,

com voz sumida, a canção de um menininho perdido

na neve, e saiu-se perfeitamente bem.

Em tudo isso, não havia nada de notável. Os

Cratchits não eram nem belos nem elegantes, seus

sapatos não eram à prova d.água, suas roupas não

estavam na moda, e Pedro, posso afirmar, teria se

valido, por vezes, da loja de algum adelo. Todos,

porém, eram felizes, reconhecidos para com Deus,

cheios de afeição uns pelos outros e sabiam gozar

da hora presente.

Quando suas imagens empalideceram, ainda mais

alegres sob as gotículas brilhantes do facho com

que o espírito os espargia, à guisa de despedida,

Scrooge continuava com os olhos pousados sobre

elas, especialmente sobre Tinzinho, até que se

evanescessem de todo.

**

Agora, a noite descera e a neve caía em flocos. Era

maravilhoso o espetáculo que se gozava, da rua,

vendo-se as labaredas que saíam das cozinhas e

das salas de jantar. Aqui, as claras luzes

iluminavam os aprestos para um confortável lanche,

os pratos aquecidos diante do fogão, as grandes

cortinas grená, que bastaria fechá-las para impedir

a entrada ao frio e à escuridão. Além, todas as

crianças da casa precipitavam-se para fora, na

neve, ao encontro de seus irmãos casados, de seus

tios e tias, para serem os primeiros a recebê-los.

Através das cortinas fechadas, viam-se as silhuetas

dos convidados reunidos. Mais adiante, um grupo de

belas jovens, toucadas e calçadas com botinas

forradas de pele, dirigiam-se festivamente,

palrando todas a um tempo, à casa de algum

vizinho. Ai do celibatário que as visse entrar (elas

bem o sabiam, as finórias) com os olhos risonhos e

as faces coradas pelo frio!

A julgar pelo número de pessoas que se dirigiam

para reuniões amistosas, poder-se-ia perguntar

quem ficaria em casa para recebê-los. Ora, ao

contrário, em toda parte se esperavam hóspedes,

por toda parte se enchiam de carvão as lareiras até

em cima.

Oh! como o Espírito exultava! Como abria a sua

grande mão e espalhava generosamente sua alegria

sã e transbordante sobre todos que passavam ao

seu alcance! O acendedor de lampiões, que corria

adiante, pontilhando a escura rua com pequenos

focos luminosos, e que se tinha arrumado para ir

gozar em companhia dos demais, desatou a rir

gostosamente, quando o fantasma passou perto

dele, embora estivesse o pobre acendedor longe de

imaginar que era o próprio espírito do Natal em

pessoa que acabava de tocá-lo.

Subitamente, sem que tivesse recebido de seu

companheiro o menor aviso, ambos se acharam

numa região deserta, que mais parecia um

cemitério de gigantes, pela enorme quantidade de

blocos de pedra ali existentes.

A água aparecia à flor do solo, por toda a parte

onde lhe aprouvesse, ou, melhor, ela teria

aparecido, se o gelo não continuasse a tê-la retida.

Cresciam ali apenas a grama e o junco, uma grama

espessa e agressiva.

A oeste, o sol poente havia deixado um rastro

vermelho, que brilhou por instantes, como um olho

zangado, e que depois se foi apagando, até

extinguir-se de todo, nas trevas de uma noite

opaca.

- Onde estamos? perguntou Scrooge.

- Na região dos mineiros, daqueles que trabalham

nas entranhas da terra, respondeu o espírito. Eles

também me conhecem. Olha!

Uma luz brilhava na janela de uma cabana. Ambos

se dirigiram para aquela direção, e passando

através da taipa, deparou-se-lhes um numeroso

agrupamento reunido em torno de um belo e vivo

fogo.

Havia ali um velho curvado pelos anos e sua esposa

com seus filhos e os filhos de seus filhos, e ainda

outra geração, todos vestidos com seus trajos de

festa. O velho, com uma voz que mal dominava o

assobio do vento que zunia no deserto, cantava um

cântico de natal - um cântico já bem antigo, de

quando o bom velhinho ainda era criança, e, de

quando em quando, toda a família repetia o refrão.

Cada vez que os filhos cantavam com ele, o velho

parecia sorrir, e sua voz fazia-se mais sonora; mas,

desde que se calavam, seu entusiasmo arrefecia e

sua voz fazia-se novamente mais surda.

O espírito não se demorou neste local. Convidando

Scrooge a segurar-se em seu manto, elevou-se nos

ares, deixou aquela charneca e atirou-se - mas para

onde? . . . não sobre o mar?. . . Sim, por certo, por

sobre o mar.

Voltando a cabeça, Scrooge viu com indizível terror,

que deixavam atrás de si a costa e suas selvagens

penedias; ao mesmo tempo, era aturdido pelo

fragor das vagas que rolavam e rugiam, abismandose

raivosamente nas sombrias cavernas que tinham

cavado como se porfiassem em minar a praia.

Sobre um isolado recife, batido pelas vagas durante

todo o ano, a uma légua aproximadamente da terra

firme, erguia-se um farol solitário. Uma espessa

camada de algas alcatifava-lhe a base, e as

gaivotas, que parecem nascer do vento como as

algas do mar, voavam em torno dele, elevando-se e

mergulhando ao ritmo das vagas que elas apenas

afloravam.

Também lá, os dois guardas do farol haviam ateado

uma fogueira, e através de uma abertura praticada

na espessa muralha, a claridade da chama

projetava no oceano raivoso um reflexo de alegria.

Apertando-se as mãos calejadas por sobre a tosca

mesa diante da qual se achavam sentados, os dois

homens trocaram mútuos votos de feliz Natal antes

de beber o seu grog. Depois, um deles, o mais

idoso, cujo rosto era sulcado pelas intempéries,

como figuras esculpidas na proa dos antigos navios,

entrou a cantar uma canção de marinheiro,

impetuosa como um vendaval.

Novamente, o espírito retomou seu vôo por cima do

mar sombrio e revolto, prosseguindo até ao

momento em que, já longe de toda costa, foi

pousar com seu companheiro sobre um navio.

Ali, visitaram um por um, o timoneiro em seu leme,

o vigia de proa e os oficiais de guarda; poucos

minutos depois, tinham sido visitados todos os

marinheiros que se achavam em serviço, cada um

em seu respectivo posto.

Ora, não havia um só destes homens que não

estivesse a cantar alguma cantiga de Natal ou não

pensasse no Natal, ou mesmo não estivesse a

conversar com alguns dos seus companheiros sobre

algum Natal passado, lembrando-se dos recantos

que gostariam de tornar a ver. Nenhum destes

homens, a bordo, bom ou mau, tinha deixado de ter

para com seus companheiros alguma palavra mais

cordialmente afetuosa. Uns e outros haviam, até

certo ponto, participado da alegria desta festa, e,

pensando em suas famílias distantes, sentiam um

doce prazer ao se lembrarem de que, naquele

mesmo instante, parentes e amigos lhe enviavam

algum pensamento de saudade através do oceano.

Scrooge, ao mesmo tempo que ouvia o gemer do

vento, pensava quanto era fantástico deslizar assim

dentro da noite deserta e acima dos abismos

insondáveis das águas. De súbito, sentiu-se

extremamente surpreendido ao ouvir perto de si

uma sonora gargalhada, mas ainda mais

surpreendido ficou quando viu que tal gargalhada

era de seu sobrinho, e que ele próprio se

encontrava na sala clara, tépida e alegre, sempre

em companhia do espírito. Este contemplava o

sobrinho de Scrooge com uma expressão cheia de

simpatia e benevolência.

- Ah! ah! ah! ria o sobrinho de Scrooge. Ah! ah! ali!

Se por um acaso absurdo, algum de vocês encontrar

um dia uma pessoa que ria com mais entusiasmo

que o sobrinho de Scrooge, diga-me logo, que eu

terei todo o prazer em procurar conhecê-la.

Observemos, de passagem, que, se a doença e a

tristeza são facilmente contagiosas, também, por

uma justa compensação das coisas deste mundo,

nada há de mais irresistivelmente contagioso que a

risada e o bom-humor.

Enquanto o sobrinho de Scrooge ria a bom rir, a

cabeça dobrada para trás e o rosto convulsionado, a

sobrinha de Scrooge - sobrinha por afinidade - ria

também às gargalhadas, e todos que estavam na

companhia deles riam do mesmo modo, para não

ficarem atrás.

- Ah! ah! ah! Ah! ah! ah!

- Tão verdade como eu estar aqui presente, dizia o

sobrinho de Scrooge, ter-me dito ele que o Natal é

uma tolice, e parecia dizê-lo com convicção.

- Isso não deixa de ser ainda mais vergonhoso para

ele, Fred! declarou a sobrinha de Scrooge com ar

revoltado.

Não há como as mulheres para exprimir seus

pensamentos com mais energia: elas não dizem

nada pela metade!

A sobrinha de Scrooge era encantadora,

notavelmente encantadora: uma carinha adorável,

faces rechonchudas, uma expressão de ingenuidade,

uma boca rubra, feita para os beijos; no queixo,

umas covinhas que se fundiam uma na outra

quando ria; para completar, os olhos mais

luminosos que jamais se tenham visto em rostos de

menina. Seu encanto tinha qualquer coisa de

aliciante, digamos mesmo de provocante, o que a

tornava ainda mais sedutora.

- É um velho manhoso, certamente, tomou o

sobrinho, e bem pouco amável; mas seus defeitos

terão seu respectivo castigo, e não serei eu quem

lhe venha atirar a primeira pedra.

- Ele é riquíssimo, não é verdade? insinuou a

sobrinha. Pelo menos, foi o que você sempre me

disse.

- Que importa a sua fortuna, querida, respondeu

o marido, uma vez que ela não lhe serve para

nada?

Não se utiliza dela para praticar o bem, não tira

dela nenhum proveito para si mesmo, nem mesmo

tem a satisfação de pensar - ah! ah! ah! - que um

dia. nos fez o menor benefício com o seu dinheiro.

- Pois bem: eu não quero aturá-lo! declarou a

sobrinha de Scrooge. E suas irmãs, e todas as

damas presentes foram da mesma opinião.

- Eu já sou menos severo que vocês, disse o

sobrinho; eu lamento que ele possua um caráter

assim, mas sou incapaz de querer-lhe mal por isso.

Quem sofre as conseqüências do seu humor

atrabiliário não é ele? Já que se lhe meteu na

cabeça querer detestarmos e recusar nosso convite,

qual é o resultado? Talvez não perca um famoso

jantar...

- Ora esta! Eu acho que ele perdeu um ótimo jantar!

interrompeu sua esposa, e todos fizeram coro.

É necessário convir em que eles eram bons juízes,

pois que estavam terminando o jantar. A sobremesa

foi servida, e todos os convidados se haviam

agrupado em torno do fogo, à claridade do lume.

- Tanto melhor! disse o sobrinho, estou encantado

de o saber, pois não tenho muita confiança na

habilidade destas jovens donas de casa. Que diz a

isto, Topper?

Topper - era visível - já tinha lançado as vistas

sobre uma das irmãs da sobrinha de Scrooge.

Assim, respondeu que um celibatário não passava

de um miserável pária, e que não tinha o direito de

se manifestar neste assunto. A isto, a irmã da

sobrinha de Scrooge ( a mocinha rechonchuda, com

uma gola de renda) fez-se vermelha como uma

rosa.

- Acabe, Fred! exclamou a sobrinha de Scrooge,

batendo palmas. Ele nunca termina de contar as

coisas! Isso é ridículo!

O sobrinho de Scrooge entrou a gargalhar

novamente, e como não havia meio de fugir ao

contágio, a irmãzinha rechonchuda procurou evitá-lo

respirando vinagre aromático, sendo seu exemplo

seguido por todos.

- Eu , ia dizer simplesmente, tornou o sobrinho de

Scrooge, que, ao nos mostrar antipatia e recusandose

a reunir-se a nós, ele próprio se priva de alguns

momentos agradáveis, que só lhe poderiam fazer

bem. Teria encontrado aqui uma companhia mais

agradável do que aquela que lhe oferecem seus

próprios pensamentos em seu velho e mofado

escritório ou em seu empoeirado apartamento. É

meu propósito renovar-lhe todos os anos o mesmo

convite, seja-lhe agradável ou não, pois tenho pena

dele. Ele que zombe do Natal até ao seu último dia,

mas posso apostar que refletirá melhor quando me

vir todos os anos voltar com o mesmo humor para

lhe dizer: .Bom dia, tio Scrooge, como vai?. Se com

isso conseguir inspirar-lhe a idéia de deixar ao seu

pobre empregado pelo menos cinqüenta libras, já

me dou por muito bem pago. Assim mesmo, pareceme

que consegui comovê-lo um pouco, ontem à

noite.

A idéia de que tivesse podido comover a Scrooge

despertou uma geral hilaridade.

Como Fred possuía temperamento jovial e se

empenhava em fazer rir seus convidados, ainda

mais lhes estimulou a alegria, enchendo-lhes

novamente os copos.

Depois do chá, organizaram uma sessão de música,

pois todos na família eram músicos e formavam

esplêndido conjunto para cantar canções e rondéis.

Topper, especialmente, sabia fazer vibrar sua voz

sem precisar inchar as veias da testa ou ficar com o

rosto congestionado.

A sobrinha de Scrooge dedilhava a harpa com

doçura, executando, entre outras, uma melodia

simplicíssima, que qualquer pessoa, em dois

minutos, aprenderia a assobiar.

Ora, era esta exatamente a ária favorita da menina

que outrora tinha ido ao colégio buscar Scrooge,

como lhe mostrara o fantasma dos Natais

passados.

Enquanto a moça tocava a harpa, tudo que este

fantasma havia mostrado a Scrooge lhe reaparecia

diante dos olhos. Cada vez mais emocionado,

acudiu-lhe ao pensamento que, se tivesse podido

noutros tempos ouvir com mais freqüência esta

melodia, teria aprendido, sem dúvida, a cultivar as

doces alegrias familiares, para sua própria

felicidade e não iria, como Jacob Marley, para a pá

do coveiro no meio da indiferença de todos.

Mas a tarde não foi toda passada somente em

números musicais.

Ao cabo de certo tempo, puseram-se a brincar de

outras coisas, pois é bom, de quando em quando,

voltar-se aos tempos de criança, especialmente no

Natal, festa cujo próprio divino Fundador é uma

criança.

Bem, ei-los que começam pelo brinquedo da cabracega.

Era inevitável! Mas não me venham dizer que

Topper estava honestamente com os olhos

fechados. Na minha opinião, ele estava

mancomunado com o sobrinho de Scrooge. O

espírito do Natal presente sabia disso muito bem ..

. .

O modo como Topper está perseguindo a mocinha

rechonchuda é um desafio à credulidade humana.

Ele derruba o guarda-fogo, arrasta as cadeiras, bate

contra o piano, enrola-se nas cortinas, mas a toda

parte aonde ela vai, ele vai. Ele sabe sempre onde

está a mocinha rechonchuda; não quer pegar

nenhuma outra pessoa. Você pode ficar de propósito

diante dele, como se usa fazer: ele finge por

momento querer pegá-lo, mas com um

desajeitamento que envergonha a inteligência

humana. Em seguida, prossegue na direção onde se

encontra a irmãzinha rechonchuda.

.Assim não vale!. reclama, ela muitas vezes, e ela

tem toda razão. Quando, finalmente, ele consegue

pegá-la, quando, apesar de sua fuga rápida e

acompanhada do frufru das sedas, consegue

conduzi-la a um canto, de onde ela não pode mais

sair, então sua conduta se torna simplesmente

abominável: sob o pretexto de não saber quem é,

permite-se tocar em seus cabelos, mexer num anel

que ela tem no dedo, pegar numa correntinha que

ela trás ao pescoço - em suma, toma todas as

liberdades escandalosas! Não há dúvida, a

irmãzinha rechonchuda não deixa de lhe dizer o que

pensa disso tudo, agora que ambos têm uma

conversa confidencial no peitoril da janela, depois

que o lenço passou para as mãos de outro jogador.

A sobrinha de Scrooge não brincava de cabra-cega.

Ficara confortavelmente sentada numa poltrona, a

um canto da sala exatamente onde estavam o

espírito e Scrooge. Ela tomou parte em outros

brinquedos, e respondeu admiravelmente à

pergunta .como gosta dele?., conseguindo amá-lo

com todas as letras do alfabeto; do mesmo modo,

fez maravilhas nas adivinhações .Onde?., .Como?. e

.Quando?.. Com secreta alegria a sobrinha de

Scrooge venceu galhardamente as suas próprias

irmãs, e entretanto, estas não eram tolas. Topper

que o diga.

Havia ali umas vinte pessoas, entre moços e

velhos, e todas tomavam parte nos divertimentos,

que o próprio Scrooge ficou entusiasmado.

Esquecendo-se - tanto lhe interessavam aqueles

jogos - que sua voz não podia ser ouvida, respondia

em voz alta às adivinhações lançadas. Sucedia

acertar sempre, pois a melhor agulha de

Whitechapel não era mais fina que ele, apesar da

expressão idiota que gostava de mostrar, para

despistar as pessoas.

O espírito estava encantado de vê-lo de tão bomhumor,

e observava-o com tanta benevolência, que

Scrooge, como se fosse uma criança, perguntou se

podia ficar até que os convidados se retirassem.

Mas o fantasma respondeu que era impossível.

- Estão começando um novo jogo, insistiu Scrooge.

Só meia hora, espírito, apenas meia horinha.

Era um jogo chamado .Sim e Não..

O sobrinho de Scrooge devia pensar em uma coisa e

fazê-la adivinhar aos presentes, mas, respondendo

às suas perguntas apenas com um .sim. ou um

.não.. De pergunta em pergunta, chegaram à

conclusão de que ele pensava num animal. Que era

um animal vivo, um animal desagradável, um

animal bravio, um animal que grunhia e urrava, que

também falava, que vivia em Londres, que andava

pelas ruas, que não era exposto com entrada paga,

que não era levado pelo cabresto, que não vivia em

alguma jaula, que não se levava para o matadouro,

que este animal não era nem um cavalo, nem um

burro, nem uma vaca, nem um touro, nem um tigre,

nem um cão, nem um porco, nem um gato e nem

um urso. A cada pergunta, o patife do sobrinho de

Scrooge estourava em nova gargalhada. Sua

hilaridade tornou-se mesmo tão violenta, que se viu

obrigado a levantar-se do sofá onde estava sentado

para sapatear no soalho.

Por fim, a irmãzinha rechonchuda, desatando numa

formidável gargalhada, exclamou vitoriosa:

- Eureca! Fred! Eureca! Achei!

- Então, o que é?

- É o teu tio Scroo-oo-oo-oo-ge!

Era de fato isso, e todo mundo aplaudiu

ruidosamente.

Entretanto, algumas pessoas notaram que à

pergunta .é um urso?., ele esteve a ponto de

responder .sim., visto que neste caso, uma

resposta negativa teria

podido desviar o pensamento deles para longe do

tio Scrooge.

- Ele contribuiu galhardamente para nos divertir,

observou Fred, e seria a mais negra ingratidão não

bebermos à sua saúde. Eis que neste instante

chega mesmo a propósito o gostoso vinho quente.

Assim, pois, à saúde do tio Scrooge!

- ótimo! A saúde do tio Scrooge! exclamaram todos.

- Um feliz Natal e um feliz ano novo a este querido

cavalheiro! exclamou o sobrinho de Scrooge. Que

este voto, que ele não aceitará de mim, possa ser

para ele o portador de mil felicidades! Portanto, à

saúde do tio Scrooge!

Tio Scrooge tinha tomado, pouco a pouco, tanto

apego àquela festa e sentido tanta satisfação por

ela, que teria justificado de bom grado o brinde, e

feito a todos os presentes, que não podiam ouvi-lo,

um discurso de agradecimento, se o fantasma lhe

tivesse deixado tempo para tanto. Mas, às últimas

palavras do sobrinho, toda a cena se desvaneceu, e

Scrooge partiu com o espírito para novas

peregrinações.

**

Foram muito longe, viram muitas coisas, visitaram

muitos lares, semeando sempre o bem por onde

passavam. O espírito parava à cabeceira dos

enfermos, e os enfermos sorriam; parava em terra

estranha, e os exilados acreditavam estar em sua

própria pátria; parava perto daqueles que sofriam e

lutavam, e logo a esperança renascia em seus

corações; detinha-se perto dos pobres, e os pobres

julgavam-se ricos. Nos hospitais, como nos asilos e

nas prisões, nestes refúgios da miséria, onde o

homem orgulhoso não havia usado de sua efêmera

autoridade senão para lhe defender a entrada, o

espírito espalhava suas bênçãos, ensinando a

Scrooge os preceitos da caridade.

Foi uma longa noite, o que o fez suspeitar de que

todos os dias de festa do Natal se tinham

condensado no espaço de tempo em que eles

peregrinaram juntos.

Coisa curiosa! Enquanto Scrooge permanecia o

mesmo, o espírito envelhecia a olhos vistos.

Scrooge observou esta mudança sem dizer nada,

até ao momento em que, deixando uma reunião de

crianças, que estavam festejando o dia de Reis, viu

que os cabelos do espírito estavam ficando

grisalhos.

- A vida dos espíritos é assim tão breve? perguntou

ele.

- De fato, minha vida aqui na terra é bastante

curta, respondeu o fantasma. Ela termina esta

noite.

- Esta noite mesmo? exclamou Scrooge.

- A meia-noite. Ouve! A hora aproxima-se.

No mesmo instante, o carrilhão bateu onze e três

quartos.

- Perdoai minha pergunta, se ela é indiscreta, disse

Scrooge com os olhos fixos nas roupas do espírito.

Esta coisa esquisita que está saindo por baixo da

vossa roupa e que não vos pertence, é um pé ou

uma garra?

- Tão leve camada de carne o recobre, disse o

espírito com tristeza, que mais poderia ser uma

garra. Olha bem.

Das dobras de seu manto, fez sair duas crianças,

duas miseráveis criaturas, hediondas, abjetas e

repugnantes, que se ajoelharam diante dele e se

agarraram ao seu manto.

- Homem insensível, olha! Olha a teus pés!

exclamou o fantasma.

Eram um menino e uma menina. Pálidos, magros e

esfarrapados, tinham uma expressão bravia e

odiosa, mas ao mesmo tempo rastejante e humilde.

Seus rostos, onde deveria ter desabrochado o

frescor da juventude, eram macilentos,

encarquilhados, desfeitos, como se a mão do tempo

os tivesse tocado. Jamais a criação, em seus

insondáveis mistérios, produzira mais feios

monstros.

Scrooge recuou espantado. Mas, como era o espírito

que os estava apresentando, ia dizer que eram

belas crianças; as palavras, porém, lhe morreram na

garganta, recusando-se a dizer tão monstruosa

mentira.

- Espírito, estas crianças são vossas? . . .

Scrooge não pôde prosseguir.

- São filhos do Homem, disse o espírito, baixando o

olhar sobre ele. Estão agarrados a mim para pedir

justiça contra seus pais. Este é a Ignorância, e

aquela, a Miséria. Toma cuidado contra um e outro,

mas especialmente contra a Ignorância; pois vejo

escrito em sua fronte a palavra .condenação. e se

esta palavra não for apagada, a predição se

cumprirá. Negai-o, todos vós! clamou o espírito com

voz forte, estendendo a mão sobre a cidade.

Caluniai aqueles que vos avisam! Tolerai e encorajai

um flagelo que serve para os vossos negros

desígnios! . . . Mas temei o fim!

- E eles não têm nenhum recurso? Não há para eles

nenhum refúgio? exclamou Scrooge.

- Sim? E não há as prisões? disse o espírito

repetindo-lhe ainda uma vez suas próprias palavras.

Não há as casas de correção?

O relógio bateu as doze badaladas.

Scrooge procurou o espírito com os olhos e já não o

viu mais.

Quando acabou de bater a última badalada, Scrooge

lembrou-se da predição de Jacob Marley, e,

erguendo os olhos, avistou uma sombra escura

inteiramente velada, que avançava para ele,

deslizando como a bruma pela superfície do solo.

OUARTA ESTROFE



O último dos três espíritos



Lentamente, no meio de um profundo silêncio, o

fantasma aproximou-se.

Quando chegou perto de Scrooge, este sentiu que

as pernas se lhe dobravam, pois o espírito parecia

espalhar em torno de si uma atmosfera de mistério

e tristeza.

Estava envolto num espesso manto negro, que lhe

ocultava a cabeça, o rosto e todas as formas do

corpo, não deixando visível senão uma das mãos.

Sem esta mão, teria sido difícil distinguir, dentro da

noite, esta forma sombria, quase identificada com a

funda escuridão do ambiente.

De perto, Scrooge notou que o fantasma tinha uma

estatura imponente, e que sua misteriosa presença

lhe inspirava um sagrado terror. Nada mais pôde

saber, porque o espírito conservava-se imóvel e

silencioso.

- Estarei em presença do espírito dos Natais

futuros? perguntou Scrooge.

O espírito não respondeu, mas apontou o caminho

com a mão.

- Ireis mostrar-me coisas que ainda não

aconteceram, mas que estão para acontecer, não é

verdade, Espírito?

A parte superior do manto moveu-se por um

instante, como se o espírito inclinasse a cabeça em

sinal de assentimento. Foi essa a sua única

resposta.

Embora. já habituado à convivência com os

espíritos, Scrooge sentiu-se desta vez tão

perturbado com esta muda aparição, que suas

pernas tremiam e quase não podia conservar-se em

pé.

Como se tivesse compreendido a situação e

quissesse dar-lhe tempo para refazer-se, o espírito

esperou um instante. Scrooge, porém, sentiu-se

ainda mais perturbado; causava-lhe um vago e

impreciso terror o pensamento de que, atrás

daquele escuro manto, havia dois olhos a fixá-lo;

mas ele mesmo, por mais que se esforçasse por

distingui-los, não via mais que uma lívida mão

como parte da massa informe.

- Espírito do futuro, exclamou ele, eu vos temo

ainda mais que a todos os outros espíritos que vi

até hoje, mas como sei que tendes por objetivo a

minha reabilitação, e como desejo ser um homem

melhor do que tenho sido, estou pronto a seguirvos

com toda a gratidão. Nada tendes a dizer-me?

O fantasma conservou-se calado. A mão continuava

estendida na mesma direção.

- Guiai-me, guiai-me! disse Scrooge. A noite

avança, e as horas que passam têm grande valor

para mim. Guiai-me, espírito, guiai-me!

O fantasma começou a afastar-se, do mesmo modo

como se tinha aproximado. Scrooge seguiu-o,

acompanhando a sombra do seu manto, que,

parecia-lhe, o arrebatava e o arrastava.

Não se poderia dizer que se dirigiam para a cidade,

pois foi a cidade que pareceu surgir diante deles.

Ambos se acharam, subitamente, no coração da

cidade, na Bolsa, no meio de uma multidão de

homens de negócios, que iam e vinham, com ar

agitado, que conversavam em grupos, que

consultavam os relógios, que faziam tilintar suas

moedas no bolso ou brincavam, preocupados, com

seus sinetes dependurados na corrente do relógio

em forma de berloques, tais, em uma palavra, como

Scrooge costumava vê-los.

O espírito deteve-se em frente a um pequeno grupo

de corretores da Bolsa. Scrooge, notando que a mão

apontava para eles, aproximou-se para ouvir o que

diziam.

- Não, dizia um senhor alto e gordo, possuidor de

um enorme queixo, não sei mais nada. Só sei que

ele morreu.

- Quando isso? perguntou outro.

- A noite passada, creio.

- E de que morreu? perguntou um terceiro, tomando

uma ampla pitada numa larga tabaqueira. Eu pensei

que ele fosse eterno.

- Não sei de que morreu, tornou o primeiro abrindo

a boca.

- A quem teria deixado todo o seu dinheiro?

perguntou um cavalheiro de rosto congestionado,

cujo nariz apresentava uma excrescência que se

balançava como o papo de um peru.

- Nem sei, respondeu o homem do queixo enorme,

abrindo a boca novamente. Talvez o tenha deixado

à sua sociedade. Em todo caso, o que posso afirmar

é que não foi a mim que ele o deixou.

Uma risada geral acolheu a pilhéria.

- Será talvez um enterro bem pobre, continuou ele,

pois não vejo, palavra de honra, quem se dê o

trabalho de o acompanhar. Em todo caso, vamos lá

para fazer número.

- Eu só irei se depois me oferecerem um almoço,

respondeu o cavalheiro do nariz de pelote.

Novas risadas acolheram o gracejo.

- Pois eu sou mais desinteressado que todos vocês,

respondeu o primeiro interlocutor, porque não tenho

luvas pretas e não me incomodo com o almoço.

Mas se alguém quiser acompanhar-me estou pronto

a ir. No fundo, parece-me que eu era um dos seus

mais íntimos amigos, pois toda vez que nos

encontrávamos, gostávamos de parar e conversar

um instante. Passem bem, senhores.

Todos se afastaram e foram juntar-se a outros

grupos.

Scrooge, que conhecia aquelas pessoas, voltou-se

para o espírito para pedir uma explicação, mas o

fantasma o levou para uma rua e lhe apontou com o

dedo dois senhores que acabavam de se encontrar.

Julgando que sua palestra o esclareceria, pôs-se a

escutar de novo.

Scrooge conhecia-os também perfeitamente. Eram

dois homens de negócios, riquíssimos e muito

considerados. Scrooge sempre fizera muita questão

da estima deles, mas, expliquemos, exclusivamente

do ponto de vista comercial.

- Como vai? disse um.

- Muito bem. E você? respondeu o outro.

- Olhe, tornou o primeiro, o senhor Harpagão

liquidou sua última conta.

- Já soube? respondeu o segundo. Que frio Não

acha?

- É da época. Você quer patinar?

- Não, obrigado. Tenho outra coisa a fazer. Até logo.

Nada mais. Tais foram seu encontro e sua palestra.

**

Para começar, Scrooge achou esquisito que o

espírito desse tanta importância a umas

conversações aparentemente banais. Naturalmente,

deviam elas ter uma significação oculta, mas qual

seria? Elas não podiam referir-se à morte de Jacob,

seu antigo sócio, porque a morte dele pertencia ao

passado, e o domínio deste fantasma era o futuro.

Entre as pessoas que ele conhecia, Scrooge não via

nenhuma a quem pudesse aplicar o assunto

daquelas palavras, mas, persuadido de que de um

modo ou de outro elas encerravam uma lição

destinada ao seu aperfeiçoamento, resolveu guardar

com cuidado tudo que visse e ouvisse, e observar

particularmente sua própria imagem quando ela lhe

aparecesse, pois a atitude de seu próprio futuro lhe

daria provavelmente o fio condutor que lhe faltava e

lhe tornaria fácil a solução de todos estes enigmas.

Assim, pois, procurou-se a si mesmo entre os

corretores da Bolsa, e, ainda que o relógio

estivesse marcando a hora que ele habitualmente lá

se encontrava, não viu ninguém que se parecesse

com ele no meio da multidão que se precipitava sob

o peristilo.

Isso, entretanto, não lhe causou maior surpresa.

Não havia ele decidido mudar de vida? Sem dúvida

alguma, sua ausência da Bolsa devia ser uma

conseqüência das suas novas resoluções.

Mudo e sombrio, o fantasma conservava-se calado

ao pé dele, sempre com a mão estendida. De

acordo com a atitude do espectro, Scrooge imaginou

que os olhos invisíveis do fantasma estavam

fixados nele, e esta idéia deu-lhe calafrios.

Deixaram a Bolsa, com a sua agitação, e dirigiramse

para um bairro de Londres, onde Scrooge nunca

tinha estado, mas cuja reputação ele bem conhecia.

As ruas eram estreitas e sujas, as casas

residenciais e comerciais de aspecto sórdido; viamse

pessoas embriagadas, em andrajos, mal

calçadas e repulsivas. As vielas e os becos, como

outros tantos canos de esgoto, desembocavam em

ruas tortuosas, com seus odores pestilentos e mal

cheirosos, sua sujeira e sua população formigante.

Todo este bairro respirava a imundície, miséria e

crime.

Ao fundo deste covil asqueroso, numa cabana

colocada sob ampla coberta, fazia-se o comércio de

ferragens, de garrafas, de retalhos, de ossos e de

gorduras.

No chão, montões de chaves enferrujadas, de

pregos, de correntes, de gonzos, de ferramentas, de

velhas balanças e de ferragens de toda espécie.

Escondiam-se nestes montes de trastes velhos,

nestes sepulcros de ossos e gorduras rançosas,

muitos segredos que poucas pessoas gostariam de

aprofundar.

**

Sentado no meio dos objetos, que constituíam o

seu comércio, junto de um fogão feito de velhos

tijolos, um setuagenário abrigava-se do frio que

vinha de fora, por meio de uma cortina feita de

disparatados retalhos presa a um fio, e fumava o

seu cachimbo, gozando o conforto do seu tranqüilo

recanto.

No momento preciso em que Scrooge e o espírito se

achavam na presença deste homem, uma mulher

carregada com um pesado volume entrou

furtivamente na loja. Apenas ela entrou, outra

mulher apareceu, igualmente carregada, seguida de

perto por um homem vestido de preto, o qual, ao

vê-las, ficou tão surpreendido quanto elas próprias

ao reconhecê-lo.

Após alguns segundos de surpresa, partilhada pelo

homem do cachimbo, todos três desataram a rir.

- Que a dona da casa passe primeiro, para começar,

declarou a mulher que fora a primeira a entrar; a

lavadeira passará depois, e em seguida o .gatopingado

... Olá! diga-me então, meu velho Joe, aqui

não está um belo acaso? Até parece que todos três

combinamos uma senha para nos encontrarmos

aqui!

- Não podia haver melhor lugar para um encontro,

disse o velho Joe, tirando da boca o cachimbo. Há

muito que esta casa é sua, e os outros dois

também não são desconhecidos. Esperem apenas

que eu vá fechar a porta. Olha como range! Não

creio que haja aqui coisa mais enferrujada que os

seus gonzos, como também não creio que haja

ossos mais velhos que os meus. Ah! ah! Estamos

mesmo bem talhados para este serviço . . . mas

bem talhados mesmo. Vamos ao salão, vamos.

O salão era o espaço oculto pela cortina de

farrapos.

O velho espertou o fogo com uma acha de escada,

depois, arranjou a lamparina fumarenta com o cabo

do cachimbo - porque a noite já tinha caído - e

tornou

a pô-lo na boca.

Durante este tempo, a mulher que já havia falado

depositou seu volume no chão, e ato contínuo

sentou-se calmamente num tamborete; então, com

os cotovelos nos joelhos, encarou os dois outros

com ar desconfiado.

- E então, como é, madame Dilber? disse ela. Será

que não temos o direito de cuidar dos nossos

interesses? Está muito bem o que .ele. sempre tem

feito.

- Lá isso é verdade, disse a lavadeira, e melhor que

qualquer outra pessoa.

- Então, bela, porque fazer semelhante papel, como

se estivesse com medo? Quem o saberá? Parece-me

que não nos vamos vender mutuamente?

- Naturalmente que não! disseram ao mesmo tempo

o homem e a senhora Dilber. Isso está fora de

dúvida.

- Sendo assim, tudo vai bem! exclamou a mulher. A

quem poderá prejudicar a perda destas poucas

bugigangas? Naturalmente, não será ao defunto,

penso?

- Evidentemente que não, respondeu a senhora

Dilber, rindo.

- Se aquele velho avarento queria guardá-las depois

de morto, o que devia ter feito é viver como toda

gente, prosseguiu a mulher. Só assim teria tido

alguém para assisti-lo em seus últimos instantes,

em vez de dar o último ai completamente só.

- É a pura verdade, declarou a senhora Dilber. Foi o

seu castigo.

- O castigo teria sido maior, se eu pudesse ter

deitado a unha a outras coisas. Abra este pacote,

velho Joe, e diga-me o que isso pode valer. Seja

franco. Pouco me estou incomodando de passar

adiante dos outros. Suponho que já sabíamos,

antes de nos encontrarmos aqui, que iríamos tratar

dos nossos negócios. Acho que não há nenhum mal

nisso. Vamos, abra o pacote, Joe!

Seus amigos, porém, por delicadeza, opuseram-se a

isso, e o homem de negro foi o primeiro a expor a

sua muamba.

Esta não era grande coisa: um sinete ou dois, um

porta-níqueis, um par de abotoaduras de punho e

um alfinete de gravata, de pouco valor. Era tudo.

O velho Joe examinou-os detidamente, avaliou-os

escrevendo a giz na parede a quantia que estava

disposto a dar para cada um dos artigos e fez a

soma, quando viu que não havia mais nada.

- Aí está sua conta, disse Joe, e não darei a mais

nem um centavo, nem que me joguem água

fervente. Quem é o seguinte?

Apresentou-se a senhora Dilber.

Ela trazia lençóis e guardanapos, algumas roupas,

duas colheres de prata, de modelo antigo, um

pegador de açúcar e vários pares de calçados. A

conta foi feita na parede, como anteriormente.

- Para as senhoras costumo pagar sempre mais. É

esse um dos meus vícios, que acabará por levar-me

a falência, disse o velho Joe. Aqui está sua conta,

mas não insista, pois não levará nem um centavo a

mais, do contrário, ainda posso arrepender-me e

deduzir do total pelo menos meia coroa.

- Agora é o meu embrulho, Joe! disse a primeira que

havia chegado.

Joe pôs-se de joelhos para abrir o embrulho mais

comodamente. Depois de ter desamarrado

inumeráveis nós, arrancou um grosso e pesado rolo

de tecido escuro.

- Que coisa vem a ser isto aqui? Mosquiteiros?

- Naturalmente, respondeu a mulher com uma

gargalhada e inclinando-se para a frente com os

braços cruzados. São mosquiteiros!

- Não vai dizer-me que os tirou com argolas e tudo

quando ainda estava estendido na cama?

- Posso afirmar que sim, naturalmente. E por que

não? replicou a mulher.

- Você nasceu para ser rica! exclamou Joe,

há de fazer fortuna, não há dúvida!

- Desde que, estendendo a mão, eu possa apanhar

alguma coisa, é natural que eu não ia guardá-la em

meu bolso por consideração a semelhante indivíduo,

respondeu a mulher friamente. Atenção! Faça o

favor de não derramar óleo nos cobertores.

Cobertores dele? perguntou Joe.

De quem mais podiam ser? respondeu a mulher.

Tenho a impressão de que a esta hora já não tem

medo de passar frio.

- Espero que não tenha morrido de moléstia

contagiosa? perguntou Joe interrompendo o seu

inventário e erguendo os olhos para ela.

- Sei lá! Eu não tenho medo, replicou a mulher. A

sua companhia não era assim tão agradável para

que eu andasse vendo o que ele tinha. Oh, pode

morrer de olhar para essa camisa, que não achará

um rasgão, um rustido. Era a que ele tinha de mais

resistente e mais bonita. Sem mim, ela estaria

perdida.

- Perdida? Como assim?

- Sim, teria sido enterrado com ela, disse a mulher.

Não sei quem teve a estúpida idéia de a vestir

nele, mas eu tornei a tirá-la. Se a chita não serve

para mortalha, então não serve para nada. Olhe que

não podia ser mais feio do que era com esta

camisa.

Scrooge ouvia este diálogo horrorizado.

Aqueles indivíduos agrupados em redor de sua

presa, à miserável claridade da lamparina do velho,

inspiravam-lhe um ódio e uma repugnância

indescritíveis, apenas menos violentos, talvez, do

que se tivessem sido imundos demônios em disputa

do seu próprio cadáver.

- Ah! ah! ah! gargalhou ruidosamente a mulher,

quando o velho Joe, apresentando um saco de

flanela cheio de dinheiro, pôs no chão a quantia que

tocava a cada um.

- Ah! ah! ah! Ele, em vida, continuou a mulher,

mandou toda a gente passear, com o único fim de

nos proporcionar alguns pequeninos lucros depois

de sua morte. Ah! ah! ah!

- Espírito, disse Scrooge tremendo da cabeça aos

pés, agora compreendo, agora compreendo. A sorte

deste infeliz poderia ter sido a minha, e é

exatamente a isso que conduz uma vida como a que

levo. Deus do céu! Que é aquilo?

Scrooge recuou, apavorado.

A cena era completamente outra. Estava agora à

cabeceira de uma cama, uma cama sem cortinas,

sobre a qual jazia, envolto num pano rasgado, uma

forma cuja muda imobilidade era um lúgubre libelo

contra a natureza.

O quarto estava escuro, bastante escuro para que

se lhe pudessem distinguir os detalhes, embora

Scrooge olhasse para todos os lados, ansioso por

descobrir

aquilo que tal escuridão envolvia.

Uma pálida claridade vinda do exterior incidiu sobre

o leito onde, pilhado, roubado, sem ninguém que o

velasse, sem um amigo para chorá-lo, no meio do

mais absoluto abandono, jazia o corpo deste

homem.

Scrooge olhou para o fantasma, e viu que a mão

apontava para a cabeça do morto. O lençol que a

envolvia estava colocado de tal maneira que

bastava levantar-lhe uma das pontas para descobrir

o rosto do a defunto.

Scrooge pensou em fazê-lo, mas, ao tentá-lo,

verificou que para realizar este facílimo gesto se

achava tão impotente quanto para despedir o

espectro que continuava de pé a seu lado.

Ó Morte, ó pavorosa Morte! Morte gélida e rígida!

Ergue aqui teu altar e dispõe ao teu redor o teu

cortejo de horrores, pois é mesmo aqui o teu

domínio! Mas, se vais ferir uma cabeça querida,

honrada e respeitada, não podes fazer que nenhum

dos seus cabelos se apreste para os teus negros

desígnios, nem podes imprimir os teus horrores

sobre um só dos seus traços. A mão pode ser

pesada e recair inerte quando abandonada, e o

coração pode ser silencioso, mas esta mão foi

generosa, aberta e leal, e neste coração corajoso e

terno corria um sangue nobre e viril. Fere, Morte!

Fere! Tu verás surgir dos teus golpes somente

nobres ações, que recairão sobre o mundo como

sementes de imortalidade!

Nenhuma voz pronunciou estas palavras aos seus

ouvidos, e entretanto Scrooge as ouviu claramente

quando se havia inclinado sobre o leito. .Se este

homem ressuscitasse agora, pensava ele, quais

seriam as suas primeiras preocupações?

Inquietações de avarento? Amor do dinheiro?

Desejo de acumular? Realmente, elas o levaram a

um belo fim. . . .

E o morto jazia abandonado na enormidade daquela

casa vazia, sem um homem, uma mulher ou uma

criança que recordasse com mágoa alguma ação

generosa sua. A porta miava um gato e debaixo do

fogão ouvia-se um rumor de ratos. O que .eles.

procuravam naquela casa de morte, Scrooge não

ousou pensar.

- Espírito, disse ele, este lugar é pavoroso. Os

ensinamentos que acabo de aprender aqui, jamais

os esquecerei, eu vos juro. Por piedade, afastemonos

daqui!

Mas o espírito continuava a apontar a cabeça do

morto com o seu inexorável indicador.

- Eu vos compreendo, disse Scrooge, e desejaria

obedecer-vos, se pudesse, mas não tenho forças

para tanto, Espírito! Espírito não tenho forças. . .

O espírito pareceu encará-lo novamente.

Movido pela angústia, Scrooge continuou:

- Se houver em toda a cidade de Londres uma só

pessoa a quem a morte deste homem tenha

causado qualquer emoção, mostrai-ma, Espírito, eu

vos suplico.

O fantasma desdobrou diante dos olhos de Scrooge

o seu sombrio manto como se fosse uma asa, e em

seguida, afastando-o, fez aparecer diante dele uma

sala fartamente iluminada pela luz de um claro dia,

e, nela, uma mãe de família com os seus filhos.

A mulher parecia esperar alguém, tomada da mais

viva ansiedade, estremecendo ao menor ruído, indo

de um lado para outro, olhando pela janela,

consultando o relógio, tentando em vão recomeçar

seu trabalho e enervando-se com o barulho que

faziam as crianças ao brincar.

Finalmente soou o toque da campainha tão

ansiosamente esperado. Ela precipitou-se para a

porta, a fim de receber o marido, rapaz ainda moço,

mas cuja fisionomia apresentava os sinais da

inquietude e das preocupações.

O jovem tinha, neste momento, uma singular

expressão, onde se lia uma espécie de alegria

entremeada de embaraço, uma alegria da qual se

envergonhava e que procurava reprimir.

Quando se sentou à mesa, para o almoço

requentado, que a esposa lhe guardara, e esta lhe

perguntou, timidamente, quais eram as notícias - o

que só fez depois de longo silêncio -, o rapaz

pareceu embaraçado para responder.

- São boas ou más? perguntou ela para ajudá-lo.

- Más, respondeu ele.

- Então, estamos arruinados?

- Não, Carolina, ainda há esperança.

- Será que .ele. vai apiedar-se? disse ela hesitante.

Se esse milagre se realizar, já não haverá razão

para a gente desesperar na vida.

- Ele não pode mais apiedar-se, porque já morreu.

Era uma senhora meiga e paciente, a julgar pela

expressão de seu rosto; entretanto, seu primeiro

impulso foi juntar as mãos e dar graças a Deus.

Imediatamente, porém, arrependeu-se e

manifestou-se penalizada por ter assim procedido,

mas era a primeira manifestação que lhe havia

brotado da alma espontaneamente.

- O que me havia dito aquela mulher meio

embriagada, de quem te falei ontem à noite,

quando pedi licença para vê-lo, a fim de obter dele

a espera de pelo menos mais uma semana, não era

pretexto para não me deixar entrar, mas a pura

realidade: não somente ele estava enfermo, mas

mesmo agonizante.

- A quem teria passado a nossa dívida?

- Não sei. Mas até que a situação esteja

regularizada, terei conseguido o dinheiro

necessário. E mesmo que não nos fosse possível

pagar de uma só vez, seria muita falta de sorte se

encontrássemos em seu herdeiro um credor tão

impiedoso como ele. Esta noite, Carolina, podemos

dormir tranqüilamente.

Sim, isso era natural, pois os seus corações

estavam mais aliviados. As crianças, agrupadas em

silêncio em torno de seus pais, para ouvirem uma

conversa de que nada entendiam, tinham as

fisionomias mais risonhas, e a felicidade entrava

novamente nesta casa com a morte deste homem.

A única emoção causada pelo seu desaparecimento,

e que o espectro pôde mostrar, foi uma emoção de

alegria.

- Espírito, disse Scrooge, fazei-me ver uma cena em

que se misture um pouco de doçura ao drama da

morte, do contrário, este quarto escuro que

acabamos de ver ficará eternamente gravado na

minha lembrança.

**

O espectro conduziu-o através de ruas que lhe eram

familiares, e enquanto caminhavam, Scrooge olhava

em torno de si, na esperança de se descobrir a si

mesmo, mas ninguém o via em parte alguma.

Entrando, novamente, na pobre casa dos Cratchits,

esta casa que Scrooge já tinha visitado,

encontraram a mulher e as crianças em redor do

fogo.

Como estavam calmos! Os barulhentos caçulas dos

Cratchits permaneciam a um canto, quietos como

imagens, e olhavam para Pedro, que tinha um livro

aberto diante de si. A mãe e as filhas ocupavam-se

num trabalho de costura. Sim, todos eram

estranhamente silenciosos.

.Ele pegou a criancinha e sentou-a no meio deles..

Onde tinha Scrooge ouvido estas palavras? Não as

tinha sonhado! Talvez o jovem Cratchit as tivesse

lido em voz alta no momento em que transpunha a

porta com o espírito. Mas, por que não continuava

ele a sua leitura?

A senhora Cratchit pousou o trabalho na mesa e

passou a mão pelos olhos.

- A cor deste pano me faz mal aos olhos, disse ela.

A cor e a luz da lamparina me cansam a vista, e eu

não queria ter os olhos vermelhos, quando seu pai

chegasse. Deve estar quase na hora de seu

regresso.

- Acho que já passou, respondeu Pedro, fechando o

livro. Mas, tenho a impressão, mamãe, de que, há

já alguns dias, ele está andando mais

vagarosamente que antes.

Novamente se fez silêncio. Ao cabo de um instante,

a mãe prosseguiu com voz mais firme, que

fraquejou apenas uma vez:

- Eu o vi andar bem ligeiro, bem ligeiro mesmo com

. . . com Tinzinho às costas.

- Eu também, e muitas vezes, exclamou Pedro.

- Eu também! exclamaram os pequenos, ao mesmo

tempo.

- Mas Tinzinho é muito leve, continuou ela, e o pai

lhe queria tanto bem que nem sentia cansaço. Ah,

eis seu pai que volta!

Ela precipitou-se para ir abrir-lhe a porta, e Bob,

sufocado em seu cachenê - de que aliás tinha bem

necessidade, o pobre - entrou na sala. Seu chá

esperava-o no canto do fogão, e cada um queria ser

o primeiro a servi-lo. Depois, os pequeninos

Cratchits subiram aos seus joelhos e chegaram seus

rostinhos ao dele, como para dizer: .Não pense

nisso, pai. Não se aborreça tanto..

Bob falou-lhes sorrindo, e teve uma palavra amável

para cada um. Observando os trabalhos de costura

espalhados na mesa, elogiou a habilidade e a

diligência da senhora Cratchit e suas filhas. Tudo

estaria perfeitamente terminado para domingo.

- Domingo? Então você foi lá, Bob? perguntou sua

mulher.

- Sim, querida, e gostaria muito que estivesse

comigo. Teria gostado de ver como o lugar é belo e

verdejante. Mas poderá ir lá muitas vezes. Prometilhe

que iria passear lá no domingo. Oh, meu

menino! Meu pobre pequenino! gemeu Bob.

Subitamente, Bob desatou a chorar. Não chorar

estava acima de suas forças, pois elos de grande

afeto prendiam-no a esta criança.

Deixando a sala, subiu para o quarto do andar

superior, que se achava fartamente iluminado e

enfeitado com guirlandas de flores, como para

Natal. Junto à criança, estava colocada uma

cadeira, e notava-se que poucos minutos antes

alguém estivera sentado ali.

Bob sentou-se, concentrando-se por um momento, e

depois de readquirir a calma, abaixou-se e beijou o

rostinho do menino. E como aceitava

resignadamente o seu sacrifício, foi com ânimo

sereno e forte que tornou a descer para junto dos

demais.

Todos se aproximaram do fogo e começaram a

conversar, enquanto a senhora Cratchit e suas filhas

continuavam a costurar. Bob falou-lhes, então, da

extraordin

ária benevolência que lhe havia

testemunhado o sobrinho de Scrooge. Este

cavalheiro, que não o tinha visto mais que uma ou

duas vezes, fizera-o parar na rua,, naquela tarde, e,

tendo notado sua fisionomia um tanto abatida,

interessou-se em saber o que lhe havia acontecido.

- Nestas circunstâncias, prosseguiu Bob, expliqueilhe

tudo, pois o sobrinho de Scrooge é de fato um

perfeito cavalheiro, o homem mais afável que se

possa imaginar. .Estou sinceramente preocupado,

senhor Cratchit, não somente pelo senhor, mas

ainda por, sua excelente esposa.. A propósito,

.como podia ele saber disso?

- Saber o quê, meu amigo?

- Que você é uma excelente esposa.

- Mas toda gente o sabe, disse Pedro.

- Muito bem respondido, meu rapaz, exclamou Bob.

Espero que todos o saibam. Em seguida, referindose

ao encontro, continuou: .Sinto muito e se eu lhe

puder ser útil em qualquer coisa, terei nisso muito

gosto, disse-me ele, apresentando-me seu cartão.

Se precisar, venha procurar-me sem acanhamento..

Ora, não será tanto pelos serviços que nos poderá

prestar, mas pela maneira cordial como se ofereceu.

Dir-se-ia que já conhecia nosso Tinzinho e

compartilhava das nossas mágoas.

- Estou certa de que é um homem de bom coração,

declarou a senhora Cratchit.

- E ainda mais se certificaria disso, minha cara, se o

visse e pudesse falar com ele. E não ficaria

surpreendido, pode crê-lo, se ele arranjasse um

lugar melhor para Pedro.

- Ouça lá, Pedro, disse a mãe.

- E então, disse uma das moças, Pedro se casa e

nos deixa.

- Calma, meninas! respondeu Pedro com uma

careta.

- É uma coisa que poderá acontecer qualquer dia,

meu rapaz, disse Bob, embora ainda tenhamos

tempo para pensar nisso. Em todo caso, quando

chegar o momento de nos separarmos uns dos

outros, nenhum de nós poderá esquecer o pequeno

Tim, não é verdade? Ninguém se esquecerá desta

primeira separação.

- Não, papai, jamais, exclamaram todos.

- Depois, meus filhos, só a lembrança de quanto ele

era meigo e paciente, embora não passasse de uma

criancinha, já seria o bastante para nos

entendermos sempre bem, pois o contrário seria

esquecer o nosso pequeno Tim.

- Sim, papai, sempre! exclamaram todos

novamente.

- Sinto-me imensamente feliz, meus filhos, disse

Bob, muito contente.

A senhora Cratchit abraçou-o e todas as meninas o

abraçaram, e Pedro veio apertar-lhe a mão.

Tinzinho! Tua pequenina alma de criança tem a pura

essência divina!

- Espírito, disse Scrooge, alguma coisa me diz, sem

que eu saiba como, que a nossa separação se

aproxima. Podereis dizer-me o nome do homem que

vimos deitado em seu leito mortuário?

O espírito dos Natais futuros transportou-o de novo

para o bairro comercial. Parecia que o tempo havia

passado. As novas visões já não tinham para ele

nenhum nexo entre si, a não ser o de que

representavam sempre o futuro, mas a imagem de

Scrooge não se via em parte alguma. Aliás, o

espírito não parava, continuando sempre em seu

caminho, como se se dirigisse para um fim

determinado. Scrooge, em dado momento, suplicoulhe

que parasse um pouco.

- É neste beco, que agora estamos atravessando

tão depressa, que se encontra meu escritório, e

isso não é de hoje. Daqui estou a ver a casa.

Deixai-me ver o que serei no futuro.

O fantasma parou, com a mão estendida para outra

direção.

- A casa está lá, exclamou Scrooge, por que me

apontais para outro local?

O dedo do fantasma continuou inexoravelmente

estendido.

Scrooge correu até à janela do seu escritório

comercial, mas já não era o seu. A mobília tinha

sido mudada, e sentado na poltrona achava-se um

desconhecido.

O fantasma indicava sempre a mesma direção.

Scrooge foi ter com ele, e, perguntando a si mesmo

onde poderia estar o seu próprio futuro,

acompanhou o fantasma até o momento em que

chegaram a uma grade de ferro, diante da qual se

detiveram antes de entrar.

Era um cemitério. Ali, sem nenhuma dúvida,

embaixo da terra, estaria aquele infeliz cujo nome

lhe restava saber.

Que lugar pavoroso! Apertado entre capelas; cheio

de sepulturas, invadido pelas ervas daninhas . . .

Oh, sim... Triste lugar!

Em pé no meio dos túmulos, o espírito designavalhe

um túmulo. Scrooge caminhou para ali a tremer.

Embora o aspecto do fantasma não tivesse mudado,

Scrooge receava ver, em sua forma espectral, uma

nova e terrível significação.

- Antes de aproximar-me desta pedra que me

apontais, disse ele, respondei, Espírito, à minha

pergunta: Estas imagens representam o que deve

ou o que poderia acontecer?

O fantasma continuava a indicar o túmulo perto do

qual se achava.

- A conduta de um homem pode fazer prever o seu

fim, disse Scrooge, mas se ele muda de vida,

também o seu fim não será modificado? Dizei-me

se assim é que devo entender tudo o que me

tendes mostrado.

O espírito continuou imóvel.

Então, continuando a tremer, Scrooge inclinou-se

para diante. Guiado pelo dedo sempre estendido do

fantasma, leu sobre a lápide desta sepultura

abandonada o seu próprio nome: Ebenezer Scrooge.

- Então, era eu o homem estendido sobre o leito?

O dedo que apontava a inscrição dirigiu-se para

Scrooge, depois voltou ao túmulo.

- Não, não, Espírito! Por piedade! Isso não! . . .

O dedo continuou imóvel.

- Espirito, exclamou Scrooge, agarrando-se ao seu

manto, ouvi-me! Não sou mais o homem que fui. Já

não serei o homem que teria sido sem a vossa

intervenção. Por que mostrar-me todas estas

coisas, se toda esperança está perdida para mim?

Pela primeira vez a mão pareceu estremecer.

- Bom Espírito, prosseguiu, prostrando-se por terra

diante dele, eu sei que no fundo de vós mesmo

tendes compaixão de mim. Dizei-me que,

reformando minha vida, poderei transformar estas

imagens que me mostrastes.

A mão pareceu ter um gesto de benevolência.

- Honrarei o Natal com todas as veras de minha

alma e prometo guardar o vosso espírito durante

todo o ano. Viverei no presente, no passado e no

futuro. A lembrança dos três Espíritos do Natal me

ajudará a transformar-me, e eu jamais serei surdo

às lições que me ensinaram. Oh! dizei-me que

posso apagar o nome escrito sobre esta lápide!

Em sua angústia, Scrooge tomou a mão do

espectro. Este tentou desvencilhar-se, mas Scrooge

a reteve com uma pressão de súplica. Mais forte

que ele, porém, o fantasma o repeliu.

Então, como Scrooge erguesse as mãos numa

suprema prece, viu que uma alteração se estava

produzindo na forma do fantasma, que se retraiu,

diminuiu, e finalmente se transformou numa das

colunas da cama.



Epílogo



Era de fato uma das colunas da cama. E esta cama

era a sua, e o quarto era o seu quarto! E melhor

ainda: Scrooge dispunha de tempo para reparar

seus erros e mudar de vida.

- Quero viver no passado, no presente e no futuro,

repetiu Scrooge, saltando do leito. A lembrança dos

três espíritos virá em meu auxílio para tanto. Oh!

Jacob Marley! Benditos sejam o céu e a festa de

Natal! E eu o digo de joelhos, velho Jacob, de

joelhos!

Scrooge estava agitado e tão entusiasmado com as

suas boas resoluções, que sua voz tremia. Durante

a sua luta com o espírito, havia soluçado

violentamente e seu rosto estava inundado de

lágrimas.

- Não foram arrancadas, exclamou Scrooge,

abraçando uma das cortinas de seu leito, não foram

arrancadas nem as cortinas nem os laços. Está tudo

aqui. E eu também estou aqui. O futuro, cujas

sombras me foram mostradas, ainda pode ser

conjurado. E o será, estou absolutamente certo

disso!

Durante este tempo, suas mãos não cessavam de

virar e revirar suas roupas, que vestia pelo avesso,

que esticava e fazia quase romper as costuras ou

deixava cair no chão, praticando assim toda espécie

de desajeitamentos.

- Já não sei onde estou nem o que faço, exclamava

ele chorando e rindo ao mesmo tempo. Sinto-me

leve como uma pluma, feliz como um rei, alegre

como um canário, estouvado como um homem que

bebeu demais. Boas festas a todos! Um feliz ano a

todos!

Scrooge havia saltado para a sala, e aí parou já

quase sem alento.

- Aqui está a caçarola, ainda com o chá, exclamou

ele, dirigindo-se no mesmo passo para a lareira.

Aqui está a porta por onde entrou o espectro de

Jacob Marley. Aqui, o lugar onde esteve sentado o

espírito do Natal presente. Aqui está ainda a janela

por onde avistei as almas errantes. Tudo está em

seus lugares, tudo aconteceu, tudo é verdade. Ah!

ah! ah!

Efetivamente, para um homem que estava

desabituado a rir, havia tantos anos, Scrooge tinha

um gargalhar sonoro, um gargalhar soberbo, uma

risada que prometia uma longa, uma extensa

linhagem de sonoras risadas futuras.

- Já não sei em que mês estamos, disse Scrooge,

nem sei quanto tempo passei com os espíritos. Já

não sei mais nada. Estou como uma criancinha.

Tanto pior, pouco importa! Eu gostaria mesmo de

ser uma criancinha. Quero ver gente! Venham todos,

venham!

Interromperam-no em seus transportes de alegria

os carrilhões das igrejas, que lançavam a todos os

ventos as suas vozes mais alegres:

.Ding, ding, dong, boum! ding, ding, dong, boum!

- Senhor, que belos, que maravilhosos carrilhões!

Correndo para a janela, abriu-a e pôs o rosto para

fora. Nem bruma, nem granizo. Era um belo dia

claro, com um frio vivo e revigorante, um frio que

fazia correr o sangue nas veias. Era um sol dourado

e flamante, um céu de pureza divina, um ar de

esplêndida limpidez, onde revoavam vozes alegres

de sinos festivos.

- Senhor, que bela, que maravilhosa manhã!

- Em que dia estamos hoje? perguntou Scrooge a

um rapazinho bem vestido, que passava sob suas

janelas.

- Como? disse o menino interrogado.

- Em que dia estamos hoje? repetiu Scrooge.

- Hoje? repetiu o menino. Mas é dia de Natal!

- É dia de Natal? disse Scrooge consigo mesmo.

Assim pois, ainda o alcanço! Os espíritos fizeram

tudo em uma só noite. Naturalmente, podem fazer

tudo que querem. Não há nada de extraordinário

nisso. Muito bem, meu homenzinho!

- Como diz? fez o menino.

- Sabe onde é a loja do vendedor de aves, na

esquina da segunda rua depois desta? perguntou

Scrooge.

- Parece-me que a conheço!

- Você é um rapaz inteligente! disse Scrooge, um

rapaz absolutamente notável! Será que você

poderia informar-me se a perua que estava para

vender ontem ainda não foi vendida? Não a

pequena, mas a maior.

- Uma que era tão grande como eu?

- Que maravilhoso menino! exclamou Scrooge

extasiado. A gente sente um verdadeiro prazer em

conversar com ele. É isso mesmo, meu rapaz! É isso

mesmo!

- Ainda não foi vendida, disse o menino.

- Sim?! Muito bem: então vá correndo buscá-la para

mim.

- Brincalhão! exclamou o garoto.

- Não, não é brincadeira! disse Scrooge. Vá

encomendá-la e diga que me tragam aqui, para eu

determinar o lugar onde deve ser entregue. Venha

com o empregado, e eu lhe darei um xelim, se

voltar dentro de cinco minutos, ganhará uma coroa.

O garoto saiu como uma flecha. Efetivamente, um

atirador que já não estivesse com o dedo no gatilho

de seu fuzil, não teria dado o tiro com maior

rapidez.

- Vou mandá-la a Bob Cratchit, pensou Scrooge

esfregando as mãos e desatando a rir. Ele não

saberá de onde veio esta perua, duas vezes mais

gorda que Tinzinho. Será uma esplêndida

brincadeira!

Sua mão tremia imperceptivelmente enquanto

traçava o endereço, mas conseguiu fazê-lo, após o

que desceu para abrir a porta e receber o

empregado da casa de aves. Enquanto o esperava,

seu olhar incidiu sobre a aldrava da porta.

- Esta aldrava será de minha estimação até o meu

último dia, exclamou Scrooge, acariciando-a

ternamente. Que boa aparência! Que bela

expressão! É de fato uma aldrava admirável! Mas

eis que chega a perua. Bravo! Hurra! Bom dia,

amigo, Feliz Natal!

Para uma perua, era de fato um fenômeno! Nunca

esta enorme perua poderia ter-se mantido sobre

suas patas, do contrário, tê-las-ia fraturado em

poucos segundos, como se fossem de pão.

- Parece-me que não poderá levar isto a Camden

Town, disse Scrooge, será necessário tomar um

carro.

As risadas com que acompanhou estas palavras, as

risadas com que pagou a perua, as risadas com que

pagou o carro e as risadas com que recompensou o

garoto só podiam ter sido superadas pelas risadas

com que se estatelou em sua poltrona e que

continuaram a apoderar-se dele até às lágrimas.

Para barbear-se, achou alguma dificuldade, uma vez

que esta operação requer certos cuidados, pois que

não se pode dançar enquanto se barbeia; mas

Scrooge teria com a maior naturalidade cortado um

pedaço do nariz e curado a ferida com um pedaço

de esparadrapo, e sua alegria não teria sofrido o

menor abalo.

Foi nestas condições que calçou os sapatos de

pelica e saiu finalmente de casa.

**

A esta hora, as ruas regurgitavam de gente, tais

como as tinha visto em companhia do fantasma do

Natal presente.

Com as mãos atrás das costas, Scrooge via cada um

dos transeuntes com os lábios desabrochados em

sorriso. Seu ar era tão alegre, tão irresistivelmente

amável, que dois ou três rapazes lhe atiraram, ao

passar, um .Bom dia, senhor! Feliz Natal!.. E pelo

correr do tempo adiante, Scrooge declarou e repetia

com freqüência, que de todas as palavras

agradáveis que ouvira, nenhuma fora tão agradável

de ouvir como aquelas.

Ainda não tinha andado muito, quando viu,

caminhando em sentido contrário, o cavalheiro

imponente, que no dia anterior tinha vindo ao seu

escritório dizendo: .Scrooge & Marley, se não me

engano?..

A idéia do olhar que aquele cavalheiro faria pairar

sobre ele, quando o visse, comprimiu-lhe o coração.

Ele, porém, conhecia qual a rua que o cavalheiro ia

tomar e adiantou-se para ela rapidamente.

- Meu caro senhor, disse ele, abordando

alegremente o cavalheiro e apertando-lhe

cordialmente as duas mãos, como vai? Espero que a

sua coleta de ontem tenha sido boa. Bela obra a

sua! Desejo-lhe um feliz Natal, cavalheiro!

- É o senhor Scrooge?

- Perfeitamente, senhor. Receio que meu nome não

lhe seja bastante simpático. Permita-me que lhe

apresente minhas escusas, e queira ter a bondade.

. .

Aqui, Scrooge segredou-lhe qualquer coisa ao

ouvido.

- Jesus! exclamou o velho cavalheiro, quase

sufocado. Meu caro senhor Scrooge, está falando

sério?

- Peço-lhe que aceite, disse Scrooge, nem um

centavo a menos. Não faço mais que pagar velhas

dívidas atrasadas. Quer fazer-me este favor?

- Meu caro senhor, disse-lhe o outro apertando-lhe a

mão, estou petrificado diante de tal generosi . . .

- Não falemos mais nisso, por obséquio,

interrompeu Scrooge, e venha procurar-me em

minha casa. Virá?

- Oh, não faltarei! exclamou o velho senhor, com

uma expressão que denotava a firme resolução de o

fazer.

- Agradeço, senhor, fico-lhe muito obrigado, mil

vezes grato! Que Deus o abençoe!

Saindo dali, Scrooge dirigiu-se para a igreja, saindo,

após o ofício, para passear pelas ruas,

contemplando os transeuntes que iam e vinham

atarefadamente, dando tapinhas amáveis nas faces

das crianças, interrogando os mendigos,

interessando-se pelo que se passava nas cozinhas,

no subsolo, olhando pelas janelas das casas e

notando que tudo isso lhe agradava e divertia.

Jamais teria imaginado que um simples passeio

pudesse proporcionar-lhe tão grande satisfação.

A tarde, Scrooge dirigiu-se para casa de seu

sobrinho. Antes de subir os degraus da escada,

passou por diante da casa uma dezena de vezes.

Finalmente, cheio de coragem, avançou para a porta

e bateu resolutamente.

- O patrão está em casa, minha filha? perguntou à

criada. (Gentil esta menina, sim senhor!)

- Está, cavalheiro.

- E onde está ele, minha bela menina?

- Na sala de jantar, com a senhora. Se o cavalheiro

quiser subir ao salão . . .

- Obrigado, eu sou da família, disse Scrooge, já com

a mão na maçaneta da porta da sala de jantar. Vou

entrar, minha menina.

Scrooge virou brandamente a maçaneta e passou a

cabeça pela porta entreaberta.

Em pé diante da mesa, o sobrinho e a sobrinha

passavam em revista os talheres arrumados

elegantemente para uma recepção, porque os

jovens recémcasados davam grande importância a

estes pormenores e queriam certificar-se de que

nada faltava.

- Fred! chamou Scrooge.

Céus! Como sua sobrinha ficou sobressaltada!

Scrooge já se esquecera das palavras que lhe ouvira

quando ela estava sentada ao canto da sala com

outras senhoras. Se lembrava, perdoara-as.

- Meu Deus! exclamou Fred, quem é que vejo?!

- Sou eu, teu tio Scrooge, que vem almoçar. Posso

entrar, Fred?

Se podia entrar? Pois pouco faltou para que o

sobrinho não lhe arrancasse o braço com um aperto

de mão!

Não se poderia imaginar mais cordial acolhimento.

Em cinco minutos, Scrooge estava como em sua

própria casa. A sobrinha imitou o sobrinho, e Topper

fez o mesmo, e assim fizeram a irmãzinha

rechonchuda e todos os demais convidados, quando

chegaram.

Oh, noite deliciosa, deliciosos jogos e

divertimentos, amabilíssima companhia! Oh,

maravilhoso sentimento de felicidade!

No dia seguinte, Scrooge dirigiu-se logo pela manhã

para o escritório, pois se lhe meteu na cabeça ser o

primeiro a chegar e pegar Bob Cratchit em flagrante

delito de atraso.

E foi o que aconteceu. O relógio bateu as nove, e

nada de Bob. Bateu as nove e um quarto, e nada de

Bob, que, finalmente, chegou dezoito minutos e

meio depois da hora.

A porta fora deixada aberta por Scrooge, que queria

vê-lo entrar no cubículo. Antes de entrar, Bob tirou

o chapéu e o cachecol, e em menos de dois

segundos estava sentado em seu mocho, fazendo

deslizar a pena com extrema rapidez, como se

quisesse recuperar o tempo perdido.

- Diga-me lá, grunhiu Scrooge no seu tom de voz de

antes, tão bem quanto lhe foi possível imitar, como

se atreve a chegar com semelhante atraso?

- Estou muito penalizado, senhor, disse Bob,

cheguei um tanto atrasado.

- Um tanto atrasado? repetiu Scrooge, acredito!

Venha aqui, faça o favor!

- Isso não acontece mais que uma vez por ano,

senhor, alegou Bob pondo a cabeça fora do seu

cubículo. Garanto que isso não acontecerá mais.

Ontem me diverti um pouco . . .

- Muito bem, meu amigo! Vou dizer-lhe o seguinte:

Semelhante estado de coisas não pode continuar

por mais tempo! Assim, prosseguiu Scrooge,

saltando da cadeira abaixo e assentando nas costas

de Bob uma tal palmada, que este recuou

cambaleando até a entrada do cubículo, assim... a

partir de hoje os seus vencimentos serão

aumentados.

Bob, a tremer, lançou um olhar para a régua

metálica, e por um instante teve a idéia de dar em

Scrooge uma tremenda pancada, de imobilizá-lo, e

em seguida chamar em seu auxilio as pessoas do

prédio para vestir-lhe a camisa-de-força.

- Um feliz Natal, Bob, continuou Scrooge com tal

seriedade, que não era mais possível haver engano.

Um melhor Natal e mais belo, meu rapaz, que todos

aqueles que há tantos anos você tem passado sob

meu jugo. Vou aumentar seus vencimentos e farei

todo 0 esforço para ajudar a sua laboriosa família.

Vamos conversar sobre os seus negócios esta tarde

mesmo, diante de um copo de ponche fumegante,

que beberemos em honra do Natal, Bob! E agora,

antes mesmo de começar a trabalhar, acenda o fogo

e vá buscar-me outra lata de carvão, Bob Cratchit!

Scrooge cumpriu a palavra, e foi ainda muito além.

Fez tudo quanto havia resolvido fazer e ainda muito

mais. Com referência ao pequeno Tini - que não

morreu -, Scrooge foi para ele verdadeiramente um

segundo pai. Em breve, tinha-se tornado o melhor

amigo, o melhor patrão, o melhor homem que

jamais se encontrou em nossa velha cidade ou em

qualquer outra velha cidade, aldeia ou povoação do

nosso velho mundo.

Alguns riram da mudança operada nele, mas ele os

deixou rir e não se incomodou. Scrooge era

bastante inteligente para compreender que nada de

bom se passa em nosso planeta que não comece

por provocar a hilaridade de certas pessoas. E como

estas pessoas são destinadas a continuarem cegas,

a Scrooge tanto fazia que elas manifestassem seus

sentimentos por uma gargalhada ou por uma careta.

Seu próprio coração estava alegre e feliz, e isso lhe

bastava.

Ele não teve mais relações com os espíritos, mas

manteve a melhor das relações com os seus

semelhantes, e diziam mesmo que não havia

nenhuma pessoa que festejasse com mais

entusiasmo as festas de Natal.

Que todos possam dizer de nós a mesma coisa,

com a mesma sinceridade. E para terminar, vamos

repetir com o pequeno Tim:

- Que Deus abençoe a cada um de nós.

FIM

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