Parte II
Capitulo I
"Alguém do Passado"
1993
O que aconteceu durante esses dez anos
que se passaram não é difícil de imaginar. Em Aaron River comentou-se durante
certo tempo sobre um garoto que havia matado o pai e se matado. Mas como
ninguém se importava, logo deixaram de falar sobre o assunto. Às vezes alguém
lembrava vagamente quando passavam pelas ruinas da oficina, mas assim como se
faz quando se vê um comercial contra o cigarro e se pensa: “Nossa, o cigarro mata.” e se esquece
disso assim que o comercial acaba, assim acontecia com os Desmont. A pessoa
seguia seu caminho voltando a se preocupar com seus próprios afazeres e
deixavam a tragédia no esquecimento.
Todos se esqueceram. Todos menos April
que rezava pela alma de Chandler todos os dias, fiel á sua lembrança. April
sempre teve esperança de um dia ele voltaria, com aquele sorriso lindo que ele
tinha e esperou por ele. Esperou durante muito tempo e foi ai quando começou a
entender que deveria deixar seu espirito em paz e que deveria começar a viver
sua vida, mas nunca deixara de rezar por ele.
Já o garoto, durante certo tempo teve
esperança de que algo aconteceria e ele se libertaria. Voltaria para casa, não
importava quando tempo demorasse e por muito tempo manteve essa esperança. Os
dias tornaram-se meses, os meses tornaram-se anos, e quando os anos começaram a
passar, sua esperança se foi com eles, e quando finalmente percebeu que nada
extraordinário aconteceria para libertá-lo, já era tarde demais.
Sebastian não teve uma vida fácil. Embora
tivesse resistido o quanto pôde, embora tivesse lutado para não cair na
criminalidade nem em algo degradante, embora tivesse passado fome, frio, e uma
série de outras coisas pelas quais uma criança não deveria passar, não teve
jeito. Invés de diminuir, sua divida para com Don Giovanni só parecia aumentar
e nada do que fizesse parecia suficiente. Então, depois de muitas lágrimas e
sofrimento, Sebastian furtou, roubou, aplicou golpes e fez o que era preciso.
Mesmo assim, seus esforços pareciam inúteis para a quantia absurda que era
exigida, cada vez mais alta, então teve que ir além. Nunca matara ninguém, de
resto, fizera de tudo. E talvez para matar o resto de consciência que o
atormentava e não o deixava dormir, drogou-se.
Foram anos de sofrimento, muita dor para
alguém tão jovem. Sebastian havia se tornado apenas uma sombra do que fora
antes, as ruas haviam roubado sua essência deixando apenas um fantasma de olhos
verdes, sem alegria ou esperança, vagando pelas ruas da cidade.
Assim ele cresceu, triste, depois a
tristeza tornou-se conformismo. Sabia que jamais conseguiria pagar a divida e
ser livre de novo, sabia que talvez em um belo dia alguém o matasse, quem sabe
Francesco. Mas isso não importava, nada mais importava. Quanto ao homem que se
tornou, era uma cópia idêntica de seu pai, numa versão mais surrada claro, mas
ainda assim, belo como nenhum outro homem de Nápoles.
Havia certa noite uma mulher num
restaurante fino de Nápoles. Ela estava sentada sozinha numa mesa junto á
janela observando o movimento do lado de fora com um ar vago. Ela era morena,
os cabelos no ombro. Usava um discreto vestido azul marinho que contrastava com
sua pele branca. Não aparentava ter mais do que trinta e poucos anos. Bonita,
elegante, sozinha. Quem a olhasse, diria que se tratava de uma mulher que
esperava entediada o amante atrasado para o encontro, mas não era isso o que
fazia. Não havia nenhum namorado a esperar, ela era apenas o que aparentava
ser: uma mulher sozinha, que talvez permanecesse assim pelo resto de seus dias.
Ela pediu um drink que não bebeu, e
depois de uma hora sentada sozinha, com o drink intocado na mesa, chamou o
garçom, pagou a conta e foi embora, pegando um taxi na porta do restaurante e
sumindo na avenida.
Uma mulher estranha? Não, apenas uma
mulher que não suportava mais a imensidão de sua casa onde seus pensamentos
pareciam ecoar tão alto que a estavam enlouquecendo.
Eva era uma boa mulher, considerada por
quem a conhecia um exemplo. Ia á missa, contribuía com a caridade, era rica,
mas nada disso parecia preencher o vazio em seu coração.
O
carro em que Eva estava passava pelas ruas e ela não reparava em nada. Olhava
para as calçadas absorta em pensamentos até que param em um sinal vermelho.
Teve um susto, seu coração quase saíra pela boca e se já não fosse o fato de
estar sentada, teria caído. Mais á frente, a uns três metros do taxi, havia um
trio de rapazes encostados á parede de uma lanchonete. Dois deles pareciam
irmãos, muito parecidos, altos e cabelos negros, mas não eram eles que haviam
chamado sua atenção e sim o outro que estavam junto deles. Era um rapaz de
aparência abatida, roupas velhas e surradas, os cabelos negros desgrenhados,
fumava um cigarro e parecia entorpecido. Conhecia aquele rapaz, sim,
lembrava-se dele. Há muito tempo atrás o conhecera numa praia, numa época quase
tão longínqua quanto o inicio dos tempos. Ficou atordoada, até que o carro começou
a andar.
- Não! Pare! – protestou ao motorista.
Por coincidência, o carro havia parado
bem á frente do trio. Eva abaixara o vidro e ficou olhando bem para o rosto do
rapaz que reparou e começou a encará-la em troca.
- Sim? – disse Sebastian notando que o
negócio era com ele.
Porém Eva não disse nada, estava
paralisada com aqueles olhos verdes, no entanto, ele parecia não a reconhecer.
Sebastian riu, jogou o cigarro fora e veio em direção ao carro, com o andar
arrogante que aprendera com Francesco e se encostou ao carro.
- Em que posso ajudar? - disse em
fluente italiano.
- Eu. . . – Eva tentava dizer alguma
coisa, mas estava sem palavras. – Eu. . . – gaguejou.
- Olha Dona, eu cobro oitenta liras por
hora. – disse para encurtar a conversa e facilitar as coisas.
Ele era um garoto de programa?! Que
horror, que destino terrível haveria de aguardá-lo nessa vida assim perigosa.
Isso a abalou de tal forma que ela recostou-se no banco, chocada.
- Espera ai. – disse ele parando para
pensar - Eu não te conheço de algum lugar? – Sebastian disse olhando bem para o
rosto dela, então riu. – Oi Eva. – mas não era um sorriso normal, havia cinismo
nele. – Como vai? Tem mergulhado ultimamente?
- Já faz muito tempo que não nos vemos,
Sebastian. – ela disse abalada.
- É, tipo, uma eternidade. – suas palavras
eram carregadas de sarcasmo. Como ele havia mudado.
- Oque aconteceu com você? – disse ainda
abalada com a mudança nele. – Você está diferente.
- Diferente? – riu pesadamente. – Isso é
o que acontece quando você passa os últimos dez anos nas ruas. – ele a
alfinetou - Mas você está ótima, quero dizer, olha só pra você: vestido bonito,
brincos caros. É rica, não é? É claro que é, reconheço um rico quando vejo um.
E já vi muitos. – disse com um sorriso amargo.
Eva não conseguia acreditar que aquele
rapaz que estava ali na sua frente era o mesmo garoto inocente que conhecera
anos atrás, aquele garoto doce que lhe salvara a vida e que lhe mostrara a
importância de não desistir. Aquele era outro, alguém amargurado, esquivo,
rude. Não podia acreditar que era nisso que ele havia se transformado.
- Sebastian, quero conversar com você,
mas longe daqui. – suplicava com os olhos. Ele riu forçadamente.
- Eu cobro oitenta liras por hora. –
disse deixando ela atônita.
- Quer que eu pague? – estava chocada
com a frieza dessas palavras.
- Se não está disposta á pagar, vá
embora. Não posso desperdiçar meu tempo. Estou trabalhando e se você quiser um
“momento” comigo, vai ter que pagar
como qualquer cliente. – disse ríspido.
Boquiaberta, Eva abaixou a cabeça
completamente horrorizada com o que acabara de ouvir. Com aperto no coração
disse ao motorista do taxi que prosseguisse.
- Será que foi algo que eu disse? – Sebastian
zombou, virando-se para Luigi e Pietro.
- Quem era? – Luigi perguntou curioso.
- Alguém do passado. Sebastian respondeu
acendendo outro cigarro.
Por que ele agira dessa forma com ela? Ele
fora tão rude, muito diferente daquele garoto que conhecera. Bem, ele já não era
mais um garoto, era um homem. Um homem amargo e frio, maltratado pela vida e
que provavelmente aprendera a contar só com ele e ninguém mais.
Ah, se ele soubesse como Eva pensava
nele esses anos todos, como ansiara reencontrá-lo, porém não imaginava que
seria desse jeito. Se Sebastian soubesse como a ajudara durante esse tempo
todo, não só naquele dia na praia, mas sempre que pensava em desistir
lembrava-se daquelas palavras: “Não
desista por causa de um tombo apenas.”. Se ele soubesse de tudo. . .
Já estava deitada em sua cama enquanto
ruminava seus pensamentos, quando um trovão tirou-a de seus pensamentos. Olhou
para a janela, chovia forte lá fora. Seu coração se apertou mais ainda. Será
que ele estava bem? Será que tinha um lugar para ficar? Tantas coisas martelavam
em sua cabeça. Olhou para o relógio digital na cabeceira da cama no criado
mudo, era uma hora da manhã. Isso não estava certo, tinha que fazer alguma
coisa. Mordeu o lábio inferior inquieta e decidiu-se. Levantou-se da cama
jogando os lençóis longe. Correu para o closet á direita da cama, abriu a porta
e pegou um casaco, colocou-o rapidamente, saindo pela porta do quarto que era
em frente da cama.
Desceu a escada que dava para o primeiro
andar e pegara as chaves do seu carro na cozinha. Não o usara para ir ao bar
porque não gostava de dirigir á noite, mas nesse caso. . . Foi até a garagem e
saíra pela noite em busca de Sebastian.
A casa dela ficara numa parte afastada
da cidade, numa área mais rural de Nápoles onde ficava seu vinhedo e por isso
demorava uns quarenta minutos para chegar ao centro. Queria voltar ao lugar
onde o encontrara, mesmo sendo difícil de dirigir e procurar por ele com a
chuva embaçando os vidros do carro.
Provavelmente ele não estava mais perto daquela lanchonete e olhava para
a rua atenta agora.
Foi quando viu num beco algo acontecer. Três
homens espancavam um. Eva parou o carro e os agressores se entreolharam e
correram para o lado contrário, certamente deviam ter achado que era a policia.
Correram e deixaram a vítima lá e Eva reconheceu a vitima com sendo Sebastian,
que jazia desmaiado no chão.
Abriu a porta do carro e saiu correndo deixando-a
escancarada. Correu na chuva até ele, ajoelhando-se ao seu lado, haviam batido
muito nele.
- Acorda Sebastian! – Eva tentava
reanimá-lo, dando batidinhas em seu rosto.
Ele estava acordado agora, mas parecia um
pouco entorpecido. . . Ele estava drogado! Ele tentava afastá-la com os braços.
- Aqueles desgraçados. . . – foi a única
coisa que Eva conseguiu discernir das várias coisas sem sentido que ele dizia.
- Se apoie em mim, vamos sair daqui.
Eva pegou um de seus braços e fazendo com que
ele se apoiasse nela e com dificuldade conseguiu conduzir Sebastian até o
carro. Tudo o que ela queria era tirá-lo dali e levá-lo para algum lugar
seguro. Isso não era vida. Ainda não conseguia entender como ele entrara nessa,
mas ajudaria ele á sair.
Sebastian acordara com uma baita dor de cabeça
e dor no corpo todo, com a garganta seca e uma vontade louca de fumar. O que
tinha acontecido mesmo? Ah, sim, três caras o roubaram e o espancaram.
Lembrava-se de se despedir de seu ultimo cliente que o havia trazido de carro até o beco, depois de terem passado
duas horas num motel. Logo depois esses caras apareceram, o pegaram sozinho e
desprevenido, roubando tudo o que havia ganhado á noite. Que vida!
Estava acordado havia um tempo, mas só
abrira os olhos momentos depois por causa da claridade. Onde estava? Viu que
estava em um quarto grande, deitado numa cama limpa de lençóis brancos e finos
que só via em casa de gente rica. Pôs-se sentado, embora a dor em sua barriga o
fizesse se arrepender disso. Olhava para o quarto grande e bonito. Á frente da
cama havia uma penteadeira com um espelho no qual podia se ver. Via que ele
próprio estava estranho, com um pijama azul escuro, limpo e cheiroso. Havia um
curativo em sua testa no supercílio direito e um corte no lábio inferior, e
claro, um olho roxo. Ao lado da penteadeira havia a porta, na parede direita o
closet, na outra parede uma estante com livros e objetos de decoração. Havia
ainda uma escrivaninha e outra porta aberta que era o banheiro.
O
que havia acontecido? Como fora parar lá? Tá certo que tinha exagerado na dose
ontem, mas isso era estranho. Olhou-se no espelho mais uma vez. Será que isso
era alguma brincadeira de Don Giovanni? Pois se fosse, era de muito mau gosto.
Ouviu então passos do lado de fora do quarto e a porta abriu. Era Eva, com um
sorriso no rosto, parecia feliz ao vê-lo.
- Bom dia, Sebastian. – disse enquanto
caminhava em direção á uma poltrona ao lado da cama e sentou-se.
- Você de novo? Está me perseguindo? –
ele disse rude.
- Ainda bem que estou, não é? – disse com
um sorriso amável. – Fui te procurar de novo de madrugada e te encontrei numa
situação no mínimo desconfortável. Tive que trazê-lo para minha casa.
- Olha Eva, eu agradeço o que fez por
mim, mas eu preciso ir. – Sebastian fez menção de se levantar, mas Eva o
impediu delicadamente.
- Ainda não, está muito machucado. – Eva
o impediu.
- Eu não posso ficar, você sabe, eu. . .
- Não pode desperdiçar seu tempo. – o
interrompera. – Quanto é mesmo que você cobra, oitenta liras? Eu pago. – disse
com naturalidade, deixando em Sebastian um ar incomodado. – Aceite minha ajuda.
- Não é assim tão fácil. – desviou o
olhar.
- Não disse que seria, mas eu vou te
ajudar assim mesmo.
- Então isso salda a dívida? Agora
estamos quites? – disse seco.
- Nem que eu vivesse mil anos
conseguiria pagar a dívida que eu tenho com você. – disse emocionando-se e
deixando-o confuso.
- Como assim?
Eva o olhava de um modo estranho, com um
brilho diferente no olhar. Respirou fundo e começou a contar uma história como
se a estivesse contando pela primeira vez.
- Meu nome é Eva Stefanelli, tenho
trinta e cinco anos e minha vida não foi um mar de rosas. Quando eu tinha
quinze anos, minha mãe morreu e foi aí que eu comecei a me perder. Fiquei
revoltada, deprimida e nada do que eu fazia parecia amenizar a tristeza Foi ai
que meu pai morreu, quando eu tinha dezoito anos. Nesse momento eu pirei. Caí
de cabeça em coisas que só mascaravam a dor. Garotos, festas, bebidas, drogas,
e quando dei por mim estava afundada nisso. Depois de um tempo dessa
combinação, eu não me lembrava nem de quem eu era. Bem, quando eu tinha uns
vinte e poucos, numa dessas festas eu exagerei e apaguei ali mesmo. Não me
lembro de muita coisa, só de um peso em cima de mim, e quando acordei estava
nua e machucada, o que torna o que aconteceu fácil de deduzir. – ela parou e
respirou fundo. - Se eu já não estava bem, isso acabou com o resto de controle
emocional que eu tinha e foi o inicio de um comportamento suicida. Foi então
que eu te conheci, naquela praia. Eu estava desesperada, pronta para por fim na
minha própria vida e pedi a Deus que me mandasse um sinal. E ele me mandou
você, meu anjo de olhos verdes. Você me salvou aquele dia, mas não só a mim. Eu
estava gravida.
- Gravida? – disse ele perplexo
- Sim, descobri um dia depois do nosso
encontro. – disse em tom triste. – Esse foi o meu motivo para continuar vivendo,
meu filho.
- Onde ele está? – perguntou
interessado, porém, notou que Eva abaixara a cabeça e pôde ver os olhos dela
marejando.
- Por causa das drogas acumuladas no meu
organismo, o bebê nasceu com problemas. – disse devagar. – Não viveu muito, dez
meses apenas, mas eu nunca o abandonei. Vivi por ele todos os dias desde o
momento em que ele abriu os olhos até o momento em que ele os fechou. – disse
deixando Sebastian consternado. – Isso foi algo pelo qual eu tive que passar
para entender que cada momento pode ser o último e que a vida é muito valiosa
para ser desperdiçada com aquelas porcarias. Se você não tivesse me tirado da
agua, eu não teria conhecido o meu pequeno milagre, meu filho. E por cada
minuto que eu pude passar ao lado dele eu vou ser eternamente grata á você.
Sebastian estava em choque com aquelas
palavras, não sabia o que dizer. Não podia imaginar que Eva tinha passado por
isso tudo, era uma historia muito triste que o deixara com o coração apertado.
Sempre seguira o conselho de Don Giovanni de mostrar ser forte sempre, mas
aquilo o havia afetado de tal maneira que ele também baixara a cabeça para
esconder os olhos marejados.
- Acho que não mereço sua gratidão. –
Sebastian disse forçadamente. – Perdi minha fé há muito tempo. Ao contrário de
você, o meu motivo para continuar vivendo não era nada nobre e veja só no que
me tornei.
- Eu sei que você deve ter passado por
muita coisa nessa vida e que isso o faz agir assim, eu entendo, – dizia amável -
mas isso não quer dizer que esteja tudo perdido. Você pode encontrar a paz,
como eu.
- Não sei se é possível.
- Claro que é. – Eva sorriu e seu
sorriso era cheio de compreensão. - Nossa conversa ainda não acabou. Você
precisa comer um pouco primeiro, depois voltaremos a falar.
Eva levantou-se e devagar caminhava até a
porta do quarto. Porém, no meio do caminho voltou-se para Sebastian outra vez.
- Não quer saber qual era o nome dele,
do meu filho.
- Qual
o nome dele?
- Sebastian. O nome dele era Sebastian.