Parte II
Capitulo II
"Liberdade"
Eva mandara servir á Sebastian uma boa
refeição no quarto mesmo, puxa, como estava com fome. Ele esperou que ela
voltasse durante certo tempo, mas ela não veio. Procurou então suas roupas no
closet e as encontrou cuidadosamente dobradas. Vestiu-se pensando em tudo que
Eva lhe disse e se deveria ir embora sem falar com ela. Eva era agora uma
senhora distinta, que não deveria se misturar com esse tipo de gente. “É melhor assim.” Pensou. Divida por
divida, á seu ver estavam quites. Tudo o que queria era falar com Francesco e
explicar por que voltava há essa hora e sem dinheiro.
Saiu pela porta de seu quarto e deparou-se
com um corredor cheio de portas, a ala dos quartos. Atravessou o corredor
mancando e ao final havia uma escada que levava á sala de estar. Desceu a
escada e observou que a sala era grande e bem decorada com móveis antigos,
porém bem conservados. Obras de arte, esculturas e quadros davam um ar
sofisticado ao ambiente.
Atravessava a sala e percebeu que havia na
parede do lado direito uma porta de vidro que levava a uma varanda. Pôde ver
Eva através do vidro, sentada sozinha numa mesa branca redonda de quatro
cadeiras, saboreando um chá. Ela parecia entretida naquilo e parecera não notar
que Sebastian a observava, no entanto, começou á falar.
- Já vai indo Sebastian? Sem se
despedir? – disse calmamente. – Venha até aqui.
Bem, já que seu plano de sair de fininho
havia ido pelo ralo, tudo bem. Caminhou até a varanda que era grande como numa
casa de campo e dava a volta na casa Aquela era só uma das três portas de
acesso á varanda.
- Sente-se. – Eva continuou.
Meio relutante Sebastian obedeceu.
- Eu lhe disse que nossa conversa não
havia acabado. – Eva dizia calma.
- Eu sei, mas eu preciso ir, tem gente
esperando por mim. – não queria dizer que tinha que encontrar com Francesco,
nem mesmo o motivo.
- Se já esperou até agora, pode esperar
mais um pouco. – deu uma golada em seu chá e recolocou a xícara na mesa. -
Encontrei uma coisa em seu bolso, - disse procurando uma coisa em seu próprio
bolso e colocou em seguida sobre a mesa um pacotinho transparente de plástico
com um conteúdo que parecia um pó branco. - É seu?
Sebastian desviou o olhar envergonhado.
Sentia-se mal agora que Eva havia descoberto sua fraqueza. Ficou em silêncio
reavaliando os motivos que o fizeram recorrer aquilo e isso só fez com que
desejasse loucamente aquele pacotinho em cima da mesa. O pior de tudo era
encarar a realidade e saber que aquilo não melhorava as coisas, apenas as
maquiava, e quando o efeito passava, seus problemas continuavam ali, prontos
para atormentá-lo de novo.
- Eu tentei não me agarrar a isso. -
disse sem conseguir encara-la – No começo eu pensei que força de vontade
bastaria. – ele esfregou o nariz. - Eu estava errado.
Eva adiantou-se e segurou a mão de
Sebastian entre as suas num gesto acolhedor. Ela não o julgava, ele podia ver
em seus olhos que ela não o julgava e isso mexeu com ele. Tanto que Sebastian
desviou novamente o rosto, pois não queria que ela visse que ele começava a
chorar.
- Acho que é sua vez de contar a sua
historia. – ela olhava e falava com ele de um jeito terno, como há muito tempo
não falavam.
Sebastian fitou-a, respirou fundo e contou
tudo. Tudo desde aquele dia fatídico no qual sua vida acabara: o dia em que seu
pai morrera. Contou como fora vendido e tirado de seu país e de como fora
jogado nas ruas por Don Giovanni e tudo o que acontecera desde então até a
noite passada, na qual se encontraram de novo. E contar tudo isso o fazia desejar
o pacotinho como louco.
- E
é isso. – disse limpando as lagrimas dos olhos ao fim do relato – E agora que
sabe quem eu sou e tudo o que fiz, que não sou o anjo que você pintou esses
anos todos, longe disso, pois anjos não vivem no inferno. Sabendo de tudo isso,
ainda acha que eu mereço sua ajuda, sua gratidão? – disse rude.
- Agora mais do que nunca. – respondeu
sem pensar duas vezes. – Vou ajudá-lo a sair dessa, pode ter certeza.
Sebastian riu forçadamente.
- Você tem bom coração. Na minha vida
encontrei poucas pessoas assim. Você tem fé, – disse levantando-se. – mas não
pode me ajudar.
Sebastian ia afastando-se em direção á porta
de vidro quando Eva chamou sua atenção.
- Espere. – disse fazendo-o parar e
virar para ela.
Sebastian não havia percebido, mas havia
uma bolsa pendurada em uma das cadeiras daquela mesa, e ele viu quando Eva
pegou a bolsa e tirou de dentro um talão de cheques.
- O que está fazendo? – ele disse
intrigado.
- Já que você está indo embora, vou
pagar pelo tempo que ficou aqui. – disse séria.
- Não quero seu dinheiro. – disse
ríspido.
- Mas quanto á Francesco?
- Eu me viro. – aproximou-se e deu um
leve beijo nos lábios dela. – Adeus Eva.
Lentamente afastou-se e saiu pela porta de
vidro de volta á realidade de sua vida, rumo á uma conversa com Francesco que
só poderia ser descrita como dolorida.
Eva sentia-se tão impotente em não poder
fazer nada para ajudá-lo, mas também ele era orgulhoso demais para admitir que
precisava de ajuda. Tudo bem, não importava, não ia desistir tão fácil assim.
A noite chegou e no centro de Nápoles, o trio
estava outra vez em seu ponto em frente a lanchonete. Sebastian levara outra
surra, dessa vez de Francesco, pela perda do dinheiro e não estava se
aguentando de dor, mas tinha que trabalhar mesmo machucado. Essa era sua vida e
seria sempre assim, não importava o quanto encontrasse pessoas boas como Eva,
elas iriam embora muito rápido. Então acordava e voltava para as ruas, onde era
seu lugar.
Estava sentado no degrau da lanchonete por
não conseguir nem ficar em pé, o que estava deixando seus amigos preocupados.
- Cara, o Francesco exagerou dessa vez.
– Pietro disse alarmado.
- Mas também, ele voltou aquela hora e
sem dinheiro. – disse Luigi.
- Eu estava com aquela moça. – Sebastian
disse com dificuldade.
- Poderia ter aceitado o dinheiro dela.
- argumentou Pietro. – Talvez ele não tivesse te batido. . . tanto.
Ficaram discutindo isso por um tempo até que
um carro conhecido estacionou perto deles. Era Eva, que outra vez vinha
procurá-lo.
- Você não desiste, não é? – disse Sebastian
ainda sentado.
- Vai entrar logo nesse carro ou vou ter
que trazer você arrastado como da última vez? - Eva disse com um sorriso
zombeteiro que provocou risos em todos.
- Seja lá o que foi que você fez para
ela estar tão na sua desse jeito, por favor, me ensina. – Pietro disse
impressionado.
Com dificuldade Sebastian levantou-se e mancando
caminhou até o carro, abriu a porta e entrou.
- O que quer comigo agora?
- Eu pensei que poderíamos dar uma volta
por ai.
- O que quer comigo. – repetiu a
pergunta, notando uma segunda intenção no ar.
- Tenho uma surpresa para você, mas
primeiro você terá que confiar em mim. – disse enigmática.
- Confiar? – pareceu pensar a respeito.
– E eu tenho escolha?
- Não. – ela sorriu.
Eva deu a partida no carro e foi dirigindo
pelas ruas noturnas, num momento que parecia irreal. Ambos estavam em silêncio,
cada um com seu pensamento. Eva exibia um singelo sorriso de satisfação e
Sebastian olhava tristemente para o lado de fora através da janela. Já havia
perdido a conta de quantas vezes passara por aquelas ruas á noite, rumo a algum
lugar que não queria ir. Não conseguia se acostumar, todo esse tempo
aparentando não se importar era apenas para esconder o que realmente sentia: pavor, do momento que o cliente dizia
olá, até o momento que ele dizia adeus. Porém não se sentia assim com Eva. Tudo
bem, ela não era exatamente uma cliente. Não sabia explicar, não sentia aquela
sensação ruim perto dela, e isso devia significar alguma coisa.
Já estavam circulando á certo tempo e
Sebastian conhecia muito bem aquelas ruas. No entanto, percebeu que o caminho
que estavam pegando estava começando a ficar familiar demais.
- Onde estamos indo? – Sebastian
perguntou começando a ficar ressabiado.
- Vai ver. – Eva disse enigmática.
Ele conhecia bem aquelas ruas, e ainda mais
o caminho. Já o havia feito milhares de vezes. Começou a ficar inquieto e
nervoso Ela não podia estar levando ele para lá, não ela. Porém quando o carro
entrou naquela rua teve certeza, estavam indo para a mansão de Don Giovanni.
Logo
chegaram aos portões daquele imponente imóvel branco, estilo colonial com
jardim bem cuidado, tudo muito lindo, com exceção dos guardas armados que
vigiavam a casa. O carro estacionou e ficou esperando, até que os guardas
vieram até eles.
- Por que me trouxe aqui? – disse Sebastian
com visível nervosismo
- Eu já disse para confiar em mim. – Eva
respondeu séria.
Nesse momento os guardas se aproximaram e
Eva abaixou o vidro, recebendo-os com um sorriso simpático.
- Seu patrão Don Giovanni está? Tenho
negócios a tratar com ele.
Os guardas se entreolharam confusos e
desconfiados. Um deles pegou o radio e disse:
- Vicenzo, tem uma senhora aqui com o
americano. Querem falar com o chefe.
Depois de um tempo de silêncio, pôde-se ouvir
a voz etérea que saia do radio:
- Deixe-os
passar. – era a voz de Vicenzo.
Eles sorriram, abriram o portão e os dois
entraram com o carro pela entrada através do jardim. Ao saírem do carro, em frente
á porta principal, aqueles mesmos dois guardas que abriram o portão estavam lá
para revistá-los, como dizia o chefe, “regras
da casa”.
A porta principal foi aberta por uma
empregada que Sebastian conhecia e lhe dissera um olá seco. Ela os acompanhou
até a sala e logo Vicenzo apareceu, pedindo que o acompanhasse até o escritório,
ali no térreo mesmo.
Sebastian sentia calafrios cada vez que
entrava naquela casa, pois em todas as vezes, algo ruim acontecia. O que Eva
queria com Don Giovanni? Provavelmente iria arrumar encrenca e ele ia acabar se
ferrando de novo.
Na sala havia uma porta que era o
escritório, Vicenzo a abriu e Sebastian deparou-se com o criminoso, analisando
calmamente alguns papéis em sua grande mesa de mogno. Nunca havia entrado em
seu escritório, era um lugar bem bonito, em contraste com as coisas que
deveriam acontecer lá dentro quando as portas se fechavam.
- Não costumo receber gente sem hora
marcada, Sebastian, devia saber disso. – disse sem tirar os olhos dos papéis. –
Mas teve sorte de me pegar de bom humor.
Ele levantou o rosto. Estava mais velho,
claro, mas não menos bonito. Seu ar sedutor e arrogante só parecera aumentar.
Os olhos vermelhos tão penetrantes analisavam a dupla agora e sorria aquele
sorriso cínico de bandido característico dele e daquele outro, Robert Murphy.
Levantou-se e estendeu a mão para Eva.
- Eu não te conheço, mas você certamente
me conhece. – disse com voz macia.
- Sou Eva Stefanelli. – cumprimentou ele
educada.
- Sente-se, senhora Stefanelli. – disse
sentando-se novamente, apontando a cadeira á sua frente. – Vejo que já conheceu
um de meus garotos.
- Sim. – Eva disse sentando-se.
- Mas oque aconteceu com ele? – Don
Giovanni disse ao reparar nos hematomas no rosto dele.
- Bem. . . – Sebastian ia começar a falar
quando Eva o interrompeu.
- Isso, Don Giovanni, é o que acontece
com seus garotos nas ruas. – Eva disse alfinetando-o - Mas esse não é o motivo
que me trás aqui.
- E qual seria? – perguntou dando de
ombros.
- Quero pagar a dívida que Sebastian e
os irmãos Tomazi têm para com o senhor.
- O que?! – Sebastian e Dom Giovanni
disseram juntos incrédulos.
- Eva, não precisa fazer isso. – Sebastian
disse ao perceber o que ela queria fazer, porém ela o ignorava.
- Diga em quanto está a divida, que eu
estou disposta á pagar. – continuou.
- Está brincando? – disse Don Giovanni.
- Está louca? – protestou Sebastian.
- Tenho cara de quem está brincando, Don
Giovanni? – disse Eva decidida.
- Senhora Stefanelli, - Don Giovanni
disse em tom de deboche - ele não é tão bom de cama assim, eu sei, eu o provei.
– ele disse ferindo Sebastian.
- Os motivos que me fazem querer
ajudá-lo não estão em discussão aqui. –
ela retorquiu - Então, diga logo quanto você quer. – disse pegando da bolsa o
talão de cheque e uma caneta.
Don Giovanni pareceu pensar um pouco
analisando a situação. Então de repente disse:
- Quinze
mil por Sebastian e mais dez mil por cada gêmeo. – disse vendo-a escrever no
talão. – Tem certeza de que quer fazer isso? Quem é você?
- Apenas uma mulher rica. – ela terminou
de escrever, destacou a folha e entregou ao homem á sua frente. – Ai tem
cinquenta mil: quinze por Sebastian, dez por cada gêmeo e mais quinze para
deixá-los em paz daqui para frente.
Don Giovanni esboçou um sorriso seguido
de um franzir de testa.
- Eu não sei. . . – ele relutou com o
cheque nas mãos.
- Quer que eu aumente o valor? – disse
ele decisiva em resposta.
- Não, o valor está ótimo. – ele analisou
o papel outra vez. – Está feito, Eva. - levantou-se e caminhava em direção ao
rapaz. – Eu me lembro de quando você entrou por aquela porta pela primeira vez.
Tão assustado e arisco, como um filhote de gato. – sorrindo aproximou-se e o
abraçou. – Você sempre foi meu preferido. – tocou seu rosto e o beijou nos
lábios. – Quando precisar de mim, sabe onde me encontrar. Minhas portas sempre
estarão abertas para você.
Sebastian estava pasmo, atônito. Não
acreditava no que acabara de acontecer ali, bem na frente de seus olhos. Será
que era um sonho? Só podia estar sonhando. Estava livre, livre! Eva, aquele
anjo, pagara sua divida. Não era mais propriedade de Don Giovanni.
- Vamos querido. - Eva levantou-se e o
pegou pelo braço. – Você nunca mais terá que vir até aqui de novo.
Saíram do escritório. Eva puxava-o pelo braço
e atravessaram a sala e saíram pela porta. Sebastian ainda estava entorpecido
pela noticia, tinha os olhos marejados. Pararam em frente do carro dela e se
abraçaram.
- Isso está mesmo acontecendo? –
Sebastian perguntou quase sem voz.
- Está sim, meu querido. Agora tudo vai
ser diferente.
Eva entrou no carro, porém Sebastian
ficou mais um tempo do lado de fora, respirando fundo e pela primeira vez em
dez anos, como um homem livre. Quando entrou no carro ainda limpava os olhos
com as costas das mãos. Para Eva era bem diferente vê-lo chorar de tristeza e
vê-lo chorar de alegria.
- Aonde quer ir? Já está tarde. – ela
disse animada.
- Eu não sei. - disse parando para
pensar. – Aquele galpão no porto foi demolido alguns anos atrás, desde então
não temos lugar certo para ficar.
- Então vamos para minha casa. Lá você
vai dormir e amanhã. . . Bem, amanhã nós pensaremos em alguma coisa. – sorria
confiante.
Sebastian segurou sua mão e olhou fixamente
em seus olhos.
- Eu nunca vou conseguir te pagar. . .
Eva sorriu e acariciou seu rosto.
- Quando eu te conheci, você tinha uma
sombra no olhar. Veja só, ela sumiu. – disse sorrindo. – Esse é meu pagamento.
– disse Eva com o sorriso mais doce que Sebastian já vira.
Nenhum comentário:
Postar um comentário