"Milagres"
O plantão estava movimentadíssimo naquela
tarde de quarta feira, e realmente, foi no primeiro dia de residência medica na
emergência do Hospital São Marcos que o Dr. Thiago Freitas entendeu uma verdade
universal: um médico não pode ficar mais do que trinta segundos parado sem que
seu nome seja chamado ás pressas para atender algum acidentado. Era cansativo,
mas mesmo agora, depois de dez anos exercendo a profissão, achava que não teria
a menor graça se não fosse assim. Não nascera para ficar parado, jamais se
acostumaria com um consultório, sua vida estava ali, na emergência, onde a cada
segundo alguém lutava pela vida.
O
Dr. Freitas estava em um desses intervalos de paz tão preciosos quanto raros,
estava no vestiário trocando o uniforme azul claro todo sujo de sangue. Agora a
pouco atendera um motoqueiro que colidira com um caminhão bem na Marginal
Pinheiros. Enquanto trocava-se, pensava em varias coisas sem importância, algo
do tipo: “Amanhã a Mercedes vai limpar
meu apartamento, tenho que levar o Wolf pro Pet shop enquanto ela limpa, na
ultima vez ele avançou nela.”. Nesse momento, uma enfermeira baixinha,
branca e de cabelos negros cacheados, usando o uniforme branco apareceu na
porta do vestiário.
- Dr. Freitas, o medico novato desmaiou
de novo, pode assumir a paciente dele?
- Outra vez? Se a criatura não pode com
um pouquinho de sangue, por que virou médico? – disse inconformado ao
levantar-se do banco.
Fechou seu armário e saiu, acompanhando
a enfermeira.
- Ela tá tão quebrada assim? – perguntou
já no corredor.
- Na verdade não. A paciente dele teve
um ataque cardíaco na rua. Só que tinha uma mulher parindo na emergência,
então, entendeu, né?
A emergência estava uma loucura, como
sempre, aquele cheiro de hospital clássico: éter e desinfetante. O cheiro
inundava o ar e de certa forma, causava certo incômodo para quem não é acostumado
e, sinceramente, achava que isso atrapalhava mais o novato. Na verdade foi
assim que aconteceu: os exames preliminares da paciente já haviam sido feitos e
o novato estava indo buscar os resultados no laboratório quando se deparou com
uma mulher dando a luz bem ali no corredor. Desmaiara. Por isso o Dr. Freitas
decidiu pegar os exames primeiro, antes de ver a paciente.
No meio do caminho foi lendo a ficha
dela, seu nome Alice Queiroz, vinte e quatro anos de idade, e já havia entrado
na emergência do São Marcos três vezes no ultimo semestre, uma vez por parada
respiratória, duas vezes por ataque cardíaco. “Coitada, tão jovem.” Pensou enquanto procurava a paciente na ala
dos que já haviam sido atendidos. Era uma sala com vinte leitos, cada um separado
por uma cortina. Achou que seria fácil, por ser a única jovem que não estaria
sangrando, mas fora uma senhora idosa, os outros pacientes eram todos vitimas
de um acidente de ônibus. Já ia saindo pra perguntar para a enfermeira se ela
tinha piorado e ido para a UTI enquanto buscava os exames, quando a senhora
idosa o chamou.
- Creio que o senhor está me procurando.
– disse ela com uma voz cansada, mas clara.
- Não, eu estou procurando uma garota. –
disse tentando não parecer rude. – A moça do ataque.
- Sou eu. – disse normalmente.
- A senhora? – disse tentando abafar um
riso. – Desculpe, mas a senhora é Alice Queiroz?
- Sim, e aquele medico que desmaiou no
corredor fez essa mesma cara quando leu minha ficha agora pouco, mas se não
acredita em mim. . . – a velha levantou o braço e estendeu a mão, dando a
entender que ele deveria ler sua pulseira de identificação.
Desconfiado, Dr. Freitas aproximou-se
dela e segurou sua mão para ler a pulseira, nela estava escrito: Alice Queiroz
e o numero de identificação. Ele olhou para ela mais uma vez, devia ter uns
sessenta anos de idade, haviam rugas, marcas de expressão, mechas brancas no
cabelo que uma mulher de vinte e quatro anos não deveria ter. Mas os olhos, havia
algo diferente nos olhos.
- Você não acredita, né? Eu sei é
chocante para as pessoas no começo, mas é isso ai cara. – disse ela com um
sorriso simpático.
- Ele puxou uma cadeira ali perto e
sentou-se ao lado da cama dela, com um ar intrigado.
- Eu já ouvi falar disso, é uma síndrome
rara, estudamos um caso indiano uma vez. . .
- Não é essa a doença.
- E qual é?
- Ninguém sabe.
- Ninguém conseguiu chegar á uma conclusão
baseado em seus sintomas?
- Não, por que não há doença, não há
sintomas. Só envelheço um pouco rápido demais.
- Mas deve haver alguma explicação. –
insistia.
- Claro que há, mas você não
acreditaria. – sorria de novo.
- E qual seria a explicação?
- A vontade de Deus.
Freitas parou e olhou para ela sério.
- Realmente, eu não acredito. Sou um
médico, acredito em causa e consequência, acredito que haja uma explicação
científica para o seu problema. Ela pode não estar clara agora, mas depois, com
o avanço da medicina, isso pode ser totalmente explicado, e possivelmente
curado. – disse convicto.
- Muito racional. Já eu, acredito que
Ele sabe o que faz. - sorria amavelmente. – Ele tem um plano para cada um de
nós, às vezes parece confuso e cheio de provações, mas o propósito fica claro
no final.
Ele a olhava intrigado.
- Realmente, sua postura sobre sua
condição é bastante positiva. Cada um responde de uma forma ao fato estarem
doentes, alguns negam, outros ficam deprimidos, mas você, parece tão. . .
- “Conformada”?
– ela completou a frase dele. – Aprendi a encarar os problemas de uma forma
diferente, acho. – disse deixando-o sem palavras. – E os exames? – perguntou de
repente.
- Como? – Freitas ficara tão entretido com
a conversa com aquela mulher tão singular que se esquecera dos exames. – Ah,
sim, seu coração exige atenção, é o segundo ataque em seis meses, ele apresenta
insuficiência, e sua pressão está totalmente desregulada, gostaria que ficasse
aqui para exames mais específicos, não acho boa ideia liberá-la antes de termos
certeza.
- Como quiser. – ela disse com aquele sorriso
que o deixara intrigado.
- Bem, eu tenho outros pacientes pra
ver, mas eu volto para vê-la.
O Dr. Freitas saiu daquela sala bastante
impressionado com aquela mulher. Em primeiro lugar, pela própria figura de
Alice, que era uma mulher de vinte e quatro anos no corpo de uma velha. Em
segundo lugar, sua postura. Não que achasse errado as pessoas procurarem
respostas em “forças superiores”, só
as achava tolas. Não acreditava nisso, não depois de dez anos de emergência.
Mas iria assumir o caso, nunca desistira de nada, ainda mais se chamasse sua
atenção, e esse caso chamou. Eram quatro horas da tarde, e naquele momento,
Freitas ainda não sabia quanto sua vida mudaria por causa dessa paciente.
Alice dormia, porém seu sono sempre fora
leve, então acordara sem esforço quando a porta da ala fora aberta e por ela
entrara uma maca conduzida por duas enfermeiras. Na maca estava uma mulher, ela era jovem,
morena, e estava inconsciente. As enfermeiras a colocaram no leito ali lado do
de Alice que devagar se pôs sentada para ver o que estava acontecendo. Em
silêncio, ela observou as enfermeiras ajeitando a moça no leito cuidadosamente,
e ligando nela o aparelho que media os batimentos cardíacos.
- Com licença, o que houve com ela? –
Alice perguntou curiosa.
- Teve um AVC. Provavelmente não vai
mais acordar. – disse a enfermeira com visível pesar. – É triste, tão jovem.
Ela vai ficar aqui até amanhã, quando será transferida para Minas Gerais.
Depois de um tempo ajeitando os
aparelhos, as duas enfermeiras se retiraram do quarto, deixando as duas
sozinhas. Alice olhava-a com compaixão, realmente era uma fatalidade. Seu
coração apertou-se dentro do peito. Respirou fundo, afinal, entendera o que
devia fazer.
Alice levantou-se com cuidado e caminhou
até o leito daquela jovem, deviam ter a mesma idade cronologicamente falando, afinal,
o espelho lhe dizia outra coisa. Apoiou-se na grade, aquela que como num berço,
evita que o paciente caia para o lado. O quarto estava escuro, já era de noite
e o único som era o das enfermeiras e médicos transitando no corredor, alheios
ao que estava acontecendo naquele quarto.
Com
delicadeza, Alice pegou a mão direita da moça. Estava fria, como se não houve
mais vida ali naquele corpo e como se o monitor estivesse enganado. Então fez o
que tinha que fazer.
- Não se preocupe, querida, você vai
ficar bem. – disse baixo.
Alice sabia muito bem das consequências,
mas realmente, não se importava, já estava feito, e agora era só esperar.
Por um momento tudo parecia normal,
então tudo aconteceu. O som dos batimentos no monitor estava enlouquecido e a
mulher de repente apertou sua mão com força. Os batimentos se normalizaram e de
repente a mulher abriu os olhos. Tinha uma feição assustada, como se não
compreendesse o que estava acontecendo e isso foi tudo o que viu, pois Alice
naquele momento caía desfalecida no chão.
A primeira coisa que notou quando
acordou horas depois, era que não estava em seu quarto, e que haviam vários
aparelhos ligados á ela. Pela inclinação da cama, podia ver a porta do quarto e
podia ver também, pelas sombras no chão que entravam pela fresta embaixo na
porta, que duas pessoas estavam paradas em frente ao quarto do lado de fora,
talvez conversando, não sabia dizer, não dava para ouvir, haviam várias vozes
no corredor.
O que havia acontecido mesmo? Ah, sim,
estava claro agora, havia chegado uma moça doente em seu quarto, tão jovem. . .
É estava feito. E naquele momento, naquele leito de hospital, rodeada de
aparelhos, sentiu-se, em uma só palavra, ótima, como nunca em sua vida. Alice
não se importava mais se estava no hospital, ou com os aparelhos ligados á ela.
Haviam coisas mais importantes com as quais se preocupar.
A calma que sentia era tão grande que já
estava quase dormindo de novo, e teria dormido, se a porta não tivesse sido
aberta e por ela entrado o Dr. Freitas, que estranhamente exibia uma expressão
preocupada enquanto caminha em direção á Alice. Como antes, ele puxou uma
cadeira e sentou-se ao lado do leito.
- Olá, Alice. – ele disse tentando
parecer o mais natural possível. – Cumpri minha promessa, estou aqui outra vez.
- Eu sei, é impossível resistir ao meu
charme. – Alice gracejou, arrancando um meio sorriso do medico.
- Faz ideia do que aconteceu com você?
Por que estava no chão? – disse meio evasivo.
- Se eu dissesse, doutor, não
acreditaria.
- Já disse isso hoje. – disse em tom
ameno. – Por que não tenta?
Alice sorriu de um modo estranho, um
tanto amargo para alguém que demonstrara ser tão alegre até agora. Ela parecia
cansada, como alguém que andou um longo caminho, andou, andou, e ainda vê
milhares de quilômetros á sua frente.
- Diga-me, doutor, acredita em milagres?
– disse direta, pegando-o de surpresa.
- Milagres? – perguntou receoso.
- Sim, milagres, do tipo “levanta-te e anda”. – disse com um
sarcasmo estranho.
- Se dissesse que acredito estaria
mentindo. – Freitas tentou parecer o mais suave possível. – E se acha que foi
isso o que aconteceu com você, foi exatamente o contrario, seu coração piorou.
. .
- Não, eu não. – olhava-o com ternura. –
Como vai a paciente que entrou no meu quarto no começo dessa noite? – disse
deixando Freitas de repente sem palavras.
- Como? Oque. . . Oque quer dizer?
- Aquela moça, do AVC, que talvez não
acordasse mais.
- Ela acordou, na verdade, ela está
ótima, vai se recuperar logo, mas. . . o que está querendo me dizer? Que
aconteceu um milagre naquele quarto?
- Sim.
- E você foi parar no chão por que. . .
- Eu a curei, com a ajuda de Deus. – ela
exibia uma feição muito alegre.
Freitas a observou calado durante um
tempo. Tentava assimilar o que acabara de ouvir. Será que ela acreditava mesmo
no que estava dizendo?
- Eu sei que não acredita nisso doutor,
mas foi isso o que aconteceu.
- Não,
o que aconteceu provavelmente foi um diagnostico errado da paciente, por um
medico que deve estar sem dormir a muito tempo. – dizia convicto. – E invés de
se preocupar com “milagres”, devia
estar preocupada com você. Foi por
isso que vim vê-la, seu coração. . .
- Piorou, eu sei. Chamo isso de “efeito colateral” do meu dom. – disse
naturalmente, não parecia se importar com isso. – Toda vez é assim quando eu
curo alguém, uma parte de mim fica doente, deve ser por isso que aparento ser
velha. Mas para mim, tudo bem, há uma razão para tudo isso acontecer. Todos nós
temos uma missão a cumprir antes do fim, e se eu vim parar aqui, é para ajudar quantas
pessoas eu conseguir antes que. . . eu vá embora. – Alice disse com uma
serenidade espantosa.
- Você tem noção do que acabou de dizer?
– disse sério – Não é possível que não esteja preocupada com a sua saúde. Em
todos os meus anos com médico nesse hospital, nunca vi uma paciente como você.
- Ah, doutor, você verá muita coisa
ainda. – disse enigmática.
Naquela noite, Freitas deixou aquele
quarto na UTI com uma sensação estranha, um misto de preocupação e
incredulidade. Toda aquela conversa sobre milagres o deixou preocupado com
Alice. Ela era dessas que se apegam á um “poder
maior” e mais cedo ou mais tarde acabam desistindo do tratamento
convencional. E o pior era que ela realmente acreditava que podia operar milagres.
Milagres! Iria cuidar dela. Alice não quis ouvir, mas seu quadro era muito
grave. Sentira uma empatia por ela e prometera a si mesmo que se dedicaria ao
seu caso.
Tudo parecera correr bem, com o
tratamento dedicado de Freitas, certa melhora era visível em Alice. Ele a
visitava com frequência nesses dias e uma amizade foi nascendo entre os dois dessa
situação inusitada. Em suas conversas, percebiam que tinham varias coisas em
comum, talvez por serem tão sozinhos, um encontrava no outro uma companhia.
Tudo parecia bem, até o dia em que ele a liberou para sair do quarto para tomar
um pouco de ar.
Era uma tarde de sexta. O sol estava
forte lá fora no estacionamento e os raios de sol entravam pelas janelas e
frestas, aquecendo o lugar. Alice caminhava lado a lado com Freitas no corredor
dos quartos, que sem duvida era um lugar bem melhor do que a UTI, sem todo
aquele peso no ar. Conversavam sobre algo fútil, um filme talvez, quando
passavam na frente do quarto 232.
No momento em que passavam por ali, a
porta abriu-se com um estrondo assustando-os por um momento e do quarto saiu um
mulher desesperada e, no segundo que batera os olhos em Freitas, agarrou-se ao
braço do médico.
- Por favor!- dizia desesperada por
entre lagrimas. - Meu filho, meu filho. . . – era tudo o que conseguia dizer.
A mulher puxava o braço do médico para
que ele a acompanhasse e claro ele responderia ao chamado. Freitas fez sinal
para Alice para que ela voltasse para seu quarto e acompanhou a mulher para
dentro do quarto 232. O caso tratava-se de um menino, devia ter uns doze anos
ou menos, e ele estava tento uma parada cardíaca. Num piscar de olhos,
enfermeiras e equipamentos entravam pela porta do quarto e todo o procedimento
de emergência começou a ser feito para salvar aquele garoto. Era uma corrida
contra o tempo, pois quanto mais tempo perdiam, mais sequelas deixariam, e tudo
isso acontecendo sob o olhar atento de Alice, que assistia tudo da porta sem
que ninguém a notasse.
Alice via a mãe do garoto encostada na
parede com desespero no olhar, e compadeceu-se dela. Não era justo uma mãe
assistir impotente a morte do próprio filho. Ela olhou então para Freitas, seu
empenho em salvar vidas era louvável, mas seria insuficiente, sabia disso, todo
aquele esforço era inútil, eles o estavam perdendo.
Depois de cinco minutos fazendo massagem
cardíaca na criança, Freitas viu o desfibrilador chegar. As tentativas de
ressuscitação pareciam inúteis.
- Para trás! – disse outra vez antes de
usar o desfibrilador pela terceira vez no garoto, sem resultado. – De novo! –
insistiu.
- Não, doutor, nós o perdemos. – uma
enfermeira segurou seu braço antes que ele tentasse de novo.
Alice jamais se esqueceria do olhar de
Freitas, era um misto de decepção consigo mesmo, tristeza, e seu silêncio. De
todas as coisas que haviam conversado, aquele silêncio disse mais sobre ele do
que se podia pensar. Ele lutava para salvar vidas, era para isso que estava lá.
Com o tempo, Freitas aprendera que não se pode ganhar todas, que chega uma hora
que o corpo não aguenta, já perdera algumas batalhas sim, mas era sempre
terrível para ele, principalmente quando se tratava de uma criança. Ele se
sentia tão derrotado, tanto que Alice pode ver seus olhos começarem a marejar
antes que ele se virasse para disfarçar.
- Nós o perdemos. – disse talvez para se
convencer.
As enfermeiras iam afastando-se e o
monitor continuava a emitir aquele ruído alto e desconfortável. A mãe encostada
na parede ainda não se movia, apenas olhava estática para o filho,
aparentemente estava em estado de choque e até aquele momento ninguém notara a
presença de Alice que ficara quieta até aquele momento, então ela se manifestou
de repente, assustando as enfermeiras.
- Vocês não o perderam, não ainda. –
disse ela com uma voz meiga e calma.
Calmamente, Alice ia caminhando através
do quarto em direção ao garotinho inerte e por incrível que pareça, ninguém fez
o menor movimento para impedi-la de se aproximar.
- Alice, oque está fazendo aqui?- Disse
Freitas surpreso ao finalmente perceber sua presença, porém ela não lhe
respondeu.
Alice pegou a mão do garotinho e deu
aquele sorriso característico
- Não se preocupe, querido, você vai
ficar bem. – repetiu as palavras que havia dito dias atrás.
Todos notaram. Havia tanta ternura e paz
no olhar daquela mulher, tanta que era impossível não tocar o coração, deixando
todos sem palavras. Freitas observava isso com um expressão estranha, um aperto
no coração, nunca vira uma cena dessas antes. E então, como alguns dias atrás,
Alice caiu inconsciente no chão. Num reflexo muito rápido, Freitas correu para
ajuda-la, checando os sinais vitais dela.
- Arranjem uma maca, precisamos tirar
ela daqui!
Num piscar de olhos já estavam todos
mobilizados para socorrê-la, mesmo confusos e perdidos, sem ainda entender o
que havia acontecido naquele quarto. Por um momento haviam se esquecido do
garoto, então, no meio daquele corre-corre, ouviram um ruído familiar, o ruído
do monitor, em pausados bipes, ligado á um coração que batia.
- Doutor! – a mãe do garoto chamara-o
com uma expressão assustadíssima.
O Dr. Freitas lentamente levantou-se do
chão aonde atendia Alice e virou-se em direção ao garoto. Ele estava vivo, com
os olhos abertos e se mexendo, com os braços estendidos em direção à mãe,
implorando um abraço. Qualquer um que perguntasse a algum dos presentes o que
acontecera naquela sala só teria uma resposta: um milagre.
O conflito que ocorria dentro de Freitas
era tal que o paralisara. Era ele quem havia checado os sinais vitais do
garoto, que fizera todo o procedimento para reanima-lo corretamente e nada. Ele
não reagira, estava morto, tecnicamente morto, até que. . . Não, isso não tinha
nada a ver, não acreditava nessas coisas, não acreditava em milagres. Devia
haver alguma explicação cientifica e racional para tudo isso, tinha que haver.
Horas depois, Alice acordou em seu
quarto outra vez, ligada ao monitor cardíaco e se sentindo fraca, fraca como
nunca se sentira em sua vida, até respirar era difícil. Estava tudo escuro, já
devia ser de noite, sentia frio. Ouviu um barulho lá fora, chovia forte e um
trovão ressoou no céu noturno.
Agora que estava bem acordada tentava
entender o que passou. Ah, sim, aquele garotinho, nossa, dessa vez se esforçara
demais, não foi como das outras vezes, sentia-se tão fraca, mais um pouco e
teria. . . bem, sabia que um dia esse momento chegaria. O momento em que não
aguentaria mais. Só sentia tristeza por ser cedo ainda, tinha muita gente que
podia ajudar.
A porta do quarto abriu-se e Freitas
entrou, tinha um ar intrigado que não fez questão de esconder. Como sempre,
puxou sua costumeira cadeira e sentou-se ao lado dela.
- Como está? – disse sério.
- Fraca, meu coração deve ter piorado,
mas é claro que já sabe disso. – disse baixo. – Então, pulando aquela parte em
que você me dá um sermão, como está o garoto?
- Ele está ótimo, mas é claro que você
também já sabe disso. – respondeu. – O quadro dele reverteu completamente, não
sei como.
- Claro que sabe, estava lá, você viu.
- O que eu vi é impossível. – dizia
tentando se convencer de suas próprias palavras.
- Não finja que não acredita, doutor.
- Sabe oque estão dizendo no hospital
inteiro? Que você é uma espécie de Santa.
Meus enfermeiros acham que viram um milagre e eu não gosto dessa situação.
- É doutor, é bem mais fácil quando se
pensa que não tem nada do outro lado. É mais fácil não acreditar. Mas você
acredita, lá no fundo, caso contrário não estaria aqui.
Isso deixou-o sem palavras.
- Como você faz isso? – disse por fim.
- É uma longa historia.
Com calma Alice começou a contar tudo do
começo. Quando tinha quinze anos, foi á festa de aniversario de uma amiga da
escola, saiu escondida da mãe, naquela idade quem não faz isso? Todos beberam
muito na festa, muito mesmo, até o garoto que dirigia o carro no qual pegara
carona no fim da festa. E não deu outra, o garoto perdeu a direção do carro e
capotaram varias vezes antes de baterem num poste. Alice mesmo bêbada entendia
o que acontecia á sua volta: estava ferida, muito ferida, os outros não se
mexiam, estavam mortos, e viu que varias pessoas rodeavam o carro. Ouviu alguém
ligar para o resgate mas não daria tempo, sangrava muito. Até que um senhor,
velho, que estava ali observando junto com os outros curiosos abaixou-se e
estendeu sua mão até ela, dizendo que tudo ficaria bem. Apagou depois disso,
acordando no hospital, incrivelmente com arranhões apenas. Quando perguntou
pelo velho, disseram que ele tivera um ataque fulminante no local do acidente,
logo depois de falar com ela. Até então ela não entendia o que havia acontecido.
Foi andando na rua, meses depois que
descobriu o que podia fazer. Estava voltando do mercado quando viu um garoto
ser atropelado na sua frente. Na hora correu para ampará-lo enquanto ligavam
ara o resgate, e inconscientemente disse: não
se preocupe, tudo vai ficar bem. Foi algo instintivo. Desmaiou depois disso
e acordou dez anos mais velha. Só então entendeu, aquele velho lhe passara algo
ao morrer, esse dom, e desde então o usava, quando achava que nada mais daria
jeito.
- Não entende? É como se eu fosse
compelia á isso. É inevitável, é algo que eu tenho que fazer.
- Você tem ideia do que fez?- disse
depois de ouvir todo o relato em silêncio. – Você aparece de repente e faz um
reboliço na minha cabeça.
- Fico lisonjeada.
Freitas sorriu.
- Pode deixar, eu vou cuidar de você. E
a senhorita, faça o favor de não aprontar mais. - Freitas aproximou-se e beijou
a testa de Alice antes de sair pela porta.
Os dias iam passando rápido e a amizade
dos dois só fazia aumentar. Sempre que podia, Freitas ia visitar Alice em seu
quarto e passavam um bom tempo conversando sobre coisas banais. Foi uma boa época,
embora Freitas a impedisse de perambular pelo hospital. Ele sabia que se
pudesse, Alice visitaria todos os pacientes, sabia que isso acabaria com ela.
Embora ela sorrisse e tivesse uma significativa melhora, a hora dela estava
chegando. E chegou, numa tarde ensolarada de novembro. Estavam no quarto dela,
e os dois conversavam animadamente há uns cinco minutos.
- . . . e ele colocou tudo numa caixa,
mas o doido escondeu dentro do armário de esqueletos de plástico. O professor
achou e foi assim que ele bateu o recorde anterior sendo expulso da faculdade
em apenas três semanas. – ria. – Ah, eu devo estar chateando você com essas
histórias.
- Que isso, eu gosto dessas anedotas de
faculdade. Eu queria ter feito, mas. . . bem, acho que seria expulsa com duas
semanas. – gracejou o fazendo rir.
- Dr. Freitas. – uma das enfermeiras de
repente entrou no quarto e o chamou. – O novato desmaiou de novo, precisamos do
senhor aqui. – disse antes de sair pela porta tão rápido quanto apareceu.
- Teve um tiroteio entre um homem e a
policia, e os trouxeram para cá. Bem, o dever me chama.
Freitas ia dirigindo-se para a porta,
observado por Alice, e enquanto ele saía pela porta ela sentiu algo estranho,
um aperto no peito, como se algo estivesse para acontecer. Dito e feito. Alguns
minutos depois, Alice ouviu dois estampidos altos, e gritos no corredor. Ela
gelou. O bom senso dizia para ela ficar quieta, na sua. Sabia o que tinha
acontecido, alguém atirou com uma arma dentro do hospital, devia estar um
tumulto no corredor e se saísse só atrapalharia. Mas uma voz que vinha de seu
coração lhe dizia o contrario, devia sair e ver o que tinha acontecido.
Mas um momento de duvida se abateu sobre
ela. Se era verdade o que vinha sentindo, se usasse de seu dom talvez não
resistiria, mas essa era sua missão, curar as pessoas até o fim. Soube disso quando
acordara de seu acidente anos atrás, e não se esconderia agora.
Tomada de coragem e com cuidado,
levantou-se da cama e caminhou até a porta. Abriu-a e viu que no corredor
realmente havia um tumulto de gente gritando e chorando. Mais á frente, havia
uma roda que ela sabia ser em torno de uma vitima grave.
- Chamem um médico, por favor! – alguém
gritou.
“Onde
está Freitas?” ela pensou de repente sendo assaltada por um sentimento de
pânico. Os enfermeiros agora se deslocavam tentando chamar ajuda. Quanto mais
se aproximava, mais seu coração se apertava dentro do peito, e pôde ouvir uma
enfermeira chorosa dizer:
- . . . ele puxou a arma do policial que
fazia a guarda dele, deu um tiro no policial e um no Dr. Freitas.
Alice parou no meio do caminho, será que
tinha ouvido direito? Freitas estava baleado? Não podia ser. Desenfreada, foi
abrindo caminho no meio da multidão e viu uma cena que a deixou abalada: Um
homem estava com uma das mãos algemadas á uma maca, era o paciente que Freitas
mencionara; O policial aparentemente estava bem, pois usava colete a prova de
balas, ele prestava socorro á Freitas, que havia levado um tiro no peito.
- Thiago! – ela gritou.
- Alice. . . – ele disse ao ouvir a voz
dela.
Sem que ninguém impedisse, ela
aproximou-se e se ajoelhou ao lado dele. Ele sangrava muito e respirava com
dificuldade.
- Eu estou aqui, Thiago. – ela o
abraçou.
- Eu não vi a arma. . .
- Não fale, querido.
- Eu tô sangrando muito, - tossiu
sangue. – eu to morrendo.
- Não, não está. Você vai viver. – ela
sabia o que devia fazer. Sem pensar duas vezes, ela pegou sua mão e a apertou
com força.
- Não. . . não. . . – Freitas sabia o
que isso significava. - Não.
- Não
se preocupe, querido, você vai ficar bem. – disse baixo em seu ouvido.
Freitas acordou meia hora depois, fraco,
porém algo havia mudado nele. No lugar onde estavam o ferimento não havia nada
além de uma mancha vermelha desbotada. A primeira coisa que fez quando acordou
foi perguntar sobre Alice, no entanto as enfermeiras disseram que ela havia
morrido, teve um ataque fulminante ao vê-lo ferido.
Freitas
recuperou-se logo, mas nunca mais foi o mesmo. Assim como acontecera com Alice,
o dom fora passado a ele na hora de sua morte, mas ele não era tão forte quanto
ela. Logo deixou o hospital, atormentado pela lembrança de Alice. Ajudava os
outros na medida do possível, esperando o dia que iria se encontrar com ela de
novo, pois agora sabia que havia algo do outro lado.
Natalia, voce escreveu muito bem. Parabens! Precisa escrever romances, para que eu possa comprar. Nao por acaso, ja postei comentarios no seu blog. Nao uso o (Twiter ou Twitter?), apenas o Facebook. Parece que voce gosta de Ficcao, para a qual tem habilidade.
ResponderExcluirRealmente muito bom - como sempre! =D
ResponderExcluirEu gostei muito do seu blog, e queri a aprender como deixar o meu tão legal como o seu!
ResponderExcluirEu gosto de tudo que você posta e acho o seu blog muito lindo.
Se você puder, explica mais detalhado como fazer?Obrigado.