sexta-feira, 29 de março de 2013

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Capitulo IV - "Enterrando o passado"

Parte II
Capitulo IV
"Enterrando o Passado"
 

        2000


        O dia amanheceu nublado e frio, como de costume. Sebastian acordara, mas não queria abrir os olhos, tentando agarrar-se ainda ao sonho bom que tivera há pouco. Em seu sonho Eva estava curada e bem. Foi um bom sonho, mas tinha que se levantar. Sebastian dormira com Angelo por que a criança estava com dor de garganta e foi um sacrifício fazê-lo dormir. Levantou-se devagar para não acordar Angelo que dormia em paz, alheio a ideia de que sua mãe estava doente. Beijou-lhe a testa e saiu do quarto devagar em direção ao seu.

        Ao entrar em seu quarto, viu que Eva ainda dormia. Parecia em paz, porém diferente. Seus cabelos negros que antes eram compridos agora eram curtíssimos por causa do tratamento e a palidez de sua pele davam-lhe um ar mais abatido. O quarto era grande e caloroso antes, mas agora tinha o aspecto de um quarto de hospital, com remédios no criado mudo. A pior parte era que estava se acostumando com isso.

       Sebastian olhava pela janela a grande colina que eram as terras de Eva. Uma grande extensão verde e bem além, a plantação de uva. Colocava a camisa depois de ter tomado um banho rápido, abotoando os últimos botões, preparando-se para o dia que ia enfrentar. Eram tantas as coisas que tinha que fazer: tinha tratar da venda de vinhos para a Espanha, tinha a reunião com os fornecedores e tinha que entrar em contato com um médico novo em Roma. Iria ser um dia cheio.

       Pegou a gravata em cima da cama e dirigiu-se até o espelho para colocá-la. Nesse momento parou, observando o homem á sua frente refletido no espelho. Há alguns anos, quem diria que ele estaria dando nó numa gravata para trabalhar em algo honesto, ele e seus irmãos. Devia tudo isso á Eva. Tentar curá-la era o mínimo que podia fazer para recompensá-la.

       - Angelo melhorou? – Sebastian ouviu uma voz feminina meio sonolenta ainda atrás dele.

       - Um pouco. – ele respondeu sorrindo ao virar-se.

       Eva estava sentada, recostada nos travesseiros, esfregando os olhos e bocejando. Ela passou a mão nos cabelos curtos ajeitando-os displicentemente, era a única coisa que dava para fazer com eles no tamanho que estavam. Com aperto no coração, Sebastian lembrou-se que podia ficar horas enrolando os dedos nos cabelos dela.

       - Bom dia, amor. – Sebastian disse aproximando-se e beijou-a profundamente.

       - Meu dia fica bem melhor quando começa assim. – disse ela animada.

       - Então deixe-me caprichar.

       Beijavam-se intensamente, entregues ao momento, por um instante esquecendo-se do mundo lá fora, da doença, de tudo o que o preocupava. Então Sebastian parou e olhou naqueles olhos dourados de Eva. Ela havia se tornado a dona de seu coração, a amava, e não podia acreditar que a estava perdendo, não daquele jeito. Afastou-se dela e desviou o olhar deixando-a confusa. Para disfarçar, ele voltou a mexer na gravata.

       - O que foi? – Eva disse confusa.

       - Nada. – não a encarava. – Eu tenho muita coisa para fazer hoje ainda e. . .

       - Não precisa fingir que está tudo bem pra me fazer sentir melhor. – ela disse com voz pesada. – Nunca mentimos um para o outro, não comece agora. – disse fazendo ele sentir-se mal.

       - O que quer que eu diga? Que eu tenho medo? – disse alterando-se. – Que eu passo noites sem dormir, prestando atenção se você está respirando? Que eu tenho que me segurar pra não chorar toda vez que Angelo chama você ou pergunta por que não pode brincar com você.

       - Ah querido. . . – disse enternecida se aproximando.

       - Eu não posso perder você. – Sebastian disse com os olhos marejados.

       - Não vai me perder. – ela o abraçou por trás e ele suspirou.

       - Te salvei uma vez, vou te salvar de novo. – disse determinado.

       - Você já me salvou, e não tô falando do afogamento. – sorria.

       Sebastian virou-se, beijou-lhe a testa e levantou-se. Pegou seu paletó cinza e sua maleta que estavam na poltrona e despediu-se antes de sair do quarto. Abriu a porta fechando-a atrás de si e ficou parado ali durante um tempo. Sempre ficava abalado quando tocava nesse assunto. A amava, e era doloroso demais vê-la a cada dia mais doente, não suportaria se. . . não, não queria pensar nisso, tinha que ter fé.

       Desceu a escada para o primeiro andar daquele casarão. Depois do casamento, Eva insistiu que deviam ficar na casa dela que era maior, bem maior. Caminhou para a sala, não estava com fome para tomar café da manhã. Lá se deparou com Luigi e Pietro, que tinham passado lá para irem todos juntos ao vinhedo. Também estavam irreconhecíveis de terno.

       - Oque fazem aqui tão cedo? – Sebastian perguntou surpreso.

       - Pietro tirou a carta. – disse Luigi por entre os dentes atrás do irmão.

       - Finalmente. – respondeu Sebastian.

       - Depois de cinco tentativas, consegui. – disse Pietro com uma alegria quase infantil. – Agora posso dirigir o carro do Luigi e faço questão de levar todo mundo para o escritório. – Luigi atrás dele disfarçava um olhar apavorado.

       - Tem certeza? Não acha melhor treinar um pouco com seu irmão? – Sebastian disse se segurando para não rir.

       - Que nada! Eu vim dirigindo de casa até aqui, pergunta pro Luigi, eu arrebento no volante. - disse indo em direção á porta, deixando os dois para trás.

       - É, literalmente, ele arrebenta. – Luigi sussurrou inconformado para o amigo.

       Sebastian sorriu. As peripécias de Pietro sempre o alegravam e sorriu também quando viu Luigi fazer o sinal da cruz antes de entrar no carro que seria conduzido por Pietro.

        Por incrível que pareça, chegaram todos vivos ao vinhedo. A reunião com os fornecedores fora exaustiva, eles queriam reajustar os preços ao saberem que o vinhedo estava pretendendo exportar para países fora da Europa. Abutres, é o que eram. Sebastian estava sentado á mesa de sua sala, ruminando as decisões da reunião. Achava que tinha conseguido um bom acordo. Em sua juventude não imaginava que aos trinta anos estaria dirigindo um dos maiores fabricantes de vinho da Itália. Fazia essas considerações quando Violeta, sua secretaria, bateu á sua porta.

       - Sr. Tomazi, - ela disse devagar. – Os americanos estão ai de novo.

       - De novo? – disse desanimado.

       - Devo mandá-los voltar outro dia?

       - Mande-os embora. – disse veemente. Ela ia saindo quando mudou de ideia. – Quer saber, mande-os entrar. Eu mesmo vou despacha-los.

       Violeta saiu, momentos depois os dois americanos entraram, felizes por serem recebidos. Um era moreno, cabelo muito curto quase grisalho, usava um terno cinza e se chamava Chester Hill.  O outro, mais jovem, era loiro, usava um terno azul escuro, era Michael Smith, ambos os sujeitos desagradáveis, cada um carregando uma pasta. Já fazia um tempo que esses dois corretores queriam vender-lhe fazendas nos Estados Unidos, uma situação que já estava ficando chata, por que Sebastian não queria saber disso e a insistência dos corretores já tinha evoluído de irritante para insuportável.

       - Boa tarde, Sr. Tomazi. – Chester disse sorridente.

       - Boa tarde, cavalheiros. – Sebastian respondeu em inglês, usando sua língua mãe pela primeira vez depois de muito tempo. – Sentem-se.

         Os corretores obedeceram, sentando-se á frente do empresário.

       - Gentileza sua nos receber sem hora marcada. – Michael disse educadamente.

       - Eu os recebi por que eu queria deixar uma coisa bem clara: não estou interessado em suas fazendas.

       - Pode ser um bom negócio, pense bem.

       - Há ótimas propriedades no Texas.

       - Não quero ser grosseiro, mas a proposta não me atrai. – tentava fazê-los entender. – O clima do Texas não é bom para as minhas uvas.

       - Para as uvas pode ser, mas nunca pensou em expandir seus negócios? – Chester abriu a maleta e retirou uma apresentação da proposta por escrito. – Verá que a criação de gado é uma área que vem crescendo. – entregou os papéis á Sebastian que os pegara com notável desdém.

       - Estas fazendas estão sendo vendidas de porteira fechada, sabe o que quer dizer? Com a casa, os móveis, o gado, os funcionários, tudo. Uma fazenda desse tamanho, com tudo isso, pelo preço que está é um ótimo negócio, quase de graça.

       - Temos fazendas em Dallas, Houston, Austin, Aaron River. . .

       - Oque? – disse Sebastian cortando o corretor, sendo pego de surpresa ao ouvir o nome da cidade que á muito tempo não ouvia.

       - Dallas, Houston, Austin e Aaron River.

       Isso não era possível. Será que seu passado teimava em persegui-lo? Será que nunca teria paz? Os corretores perceberam que o empresário ficara estranhamente abalado.

       - O senhor está bem? – perguntaram desconfiados.

       - Não, não estou. – foi tudo o que ele conseguiu dizer.

       - Bem, acho melhor voltarmos outro dia, quando estiver se sentindo melhor. – levantaram-se.

       - Ligue-nos se decidir qualquer coisa. Nosso numero está nos papéis. Boa tarde.

       Afastaram-se e iam saindo quando trombaram com Luigi e Pietro ao abrirem a porta e depois de pedidos de desculpas de todos, os corretores se foram e os gêmeos entraram, deparando-se com Sebastian visivelmente abalado.

      - Tudo bem? – Luigi perguntou preocupado.

      - O que aconteceu? – Pietro completou. – O que esses caras queriam?

       - Me vender fazendas. – disse com o olhar vago, fazendo os irmãos se entreolharem confusos.

       - E por isso você está com essa cara? Onde que era essa fazenda, no polo norte? – Pietro jamais fora sensível.

       - No inferno. – disse com a voz pesada e olhou para os irmãos. – Em Aaron River.

       Isso não podia ser coincidência, era obra do destino. Como aparecia de repente alguém vendendo propriedades para ele, justo em Aaron River, sua terra? Palco de acontecimentos tão sofridos em sua vida. Não. Iria mandar aqueles corretores para o quinto dos infernos, não queria nada com aquela cidade, nada!

       Sebastian passara o resto do dia aflito pela conversa com os corretores e com dificuldade foi cumprindo suas tarefas no vinhedo. Durante o caminho de volta para casa tentou acalmar-se. Não queria parecer nervoso na frente de Eva, ainda mais porque o medico com quem conversara lhe dera esperança. Eva, essa sim era sua prioridade. “Que se danem meus fantasmas.” pensou.

       Quando chegou em casa, Sebastian deparou-se com Angelo brincando com a babá Sophia na sala, escondendo-se atrás do sofá. Quando viu o pai, o garotinho veio correndo em sua direção com os braços abertos e um sorriso do tamanho do mundo. Ah, como o amava. Pegou-o nos braços e o abraçou apertado, ao que parecia, a garganta dele havia melhorado.

       - Oi papai. – disse Angelo.

       - Oi filhote! Estava brincando de que? – Sebastian disse terno.

       - Esconde-esconde. – sorriu.

       - Mesmo? – ele olhou em volta - E onde está a mamãe?

       - Na cozinha. – sussurrou no ouvido do pai.

       Olhou bem para o menino em seus braços. Era um menino bem esperto para os seus quatro anos, realmente muito parecido com o pai, com seus belos olhos verdes vivos. Toda vez que o via assim, alegre e brincando, rezava para que ele nunca tivesse que passar pelas mesmas coisas que passou.

       - Eu vou lá falar com a mamãe, - o colocara no chão. – continua brincando com a babá.

       - Tá bom, mas o tio Pietro brinca melhor.

       Sebastian riu da sinceridade da criança antes de afastar-se e dirigir-se á cozinha. De lá vinha um aroma muito bom, que há muito tempo não sentia. Abriu a porta da cozinha e deparou-se com uma cena que ficaria guardada na memória: Eva, usando calça jeans, um suéter marrom com detalhes bege e um avental, na beira do fogão, mexendo um molho de tomate que parecia delicioso. Ela parecia tão bem, a palidez habitual sumira, estava corada, ficou parado lá observando sem que ela notasse, lembrando-se da época antes da doença. Era tudo igual, a única diferença era o cabelo curtíssimo. Por um momento parecia que ela nunca havia estado doente, que os últimos tempos foram na verdade um pesadelo ruim, distante, á muito deixado para trás.

       - Deixa-me adivinhar, está fazendo lasanha? – disse denunciando sua presença.

       - Oi querido! – ela se aproximou e o beijou. – Acertou, estou fazendo lasanha.

       - Nossa, o que aconteceu com você? – disse impressionado.

       - O dia foi passando, fui me sentindo bem, e ficar na cama o tempo todo é muito chato. Brinquei com Angelo o dia inteiro. Nossa, como ele é hiperativo. – voltou a mexer o molho.

       - Eu acho ótimo você estar se sentindo melhor, só não abusa. – ele disse com um ar estranho.

       - Como assim? – disse em tom meio ofendido.

       - Ah, só não quero que se exagere. Esse é um filme que já vimos antes. – disse ele sério.

       Ela virou-se para ele encarando-o.

       - Eu estou me sentindo ótima. Ia ajudar um pouco alegria da sua parte. – disse emburrada voltando-se outra vez para o molho.

       - Me desculpa. – disse ele aproximando-se e abraçando ela por trás. – Eu tive um dia cheio, não liga pra mim. – ele beijou-lhe a nuca, sentindo o cheiro do cabelo dela, aquele cheiro bom de fruta do shampoo que ela usava.

       - Como foi a reunião com os fornecedores?

       - Não foi tão ruim quanto um enforcamento, mas eles se esforçaram. – ele brincou.

       - E o que mais?- estava interessada.

       - Não quero falar sobre isso. – disse inquieto, afastando-se.

       - Os americanos foram lá de novo?

       - Foram. – ele respondeu pesadamente.

       - E por que você se incomoda tanto com eles? – não entendia.

       - Por que qualquer ligação com aquele lugar me faz mal. – desabafou – Eles queriam me vender uma fazenda em Aaron River, onde tudo aconteceu.

       - Não quer voltar para lá, para sua terra? – perguntou.

       - Nunca mais. – negou logo. – Por que eu sei, se eu voltar, a primeira coisa que eu vou fazer é procurar aquele. . . – conteve-se – aquele homem, e eu não quero isso.

      - E a sua “vingança”?

      - Talvez, quando eu ainda estava perdido, nas ruas. – ele meneou a cabeça - Mas agora tenho você e Angelo e não vou por tudo á perder. - disse sério.

       - Não sabe como isso me deixa feliz! – ela o abraçou. – Não sabe o quanto eu rezei para que você acalmasse seu coração e não pensasse mais nisso, neles.

       - Você me ensinou a ser melhor.

       Sebastian a abraçava como se Eva fosse a única coisa que pudesse espantar seus medos do passado e lhe trazer paz. Mas Eva sabia que lá no fundo, ele não estava em paz. Só estaria quando acertasse as coisas.

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