Parte II
Capitulo IV
"Enterrando o Passado"
2000
O dia amanheceu nublado e frio, como de
costume. Sebastian acordara, mas não queria abrir os olhos, tentando agarrar-se
ainda ao sonho bom que tivera há pouco. Em seu sonho Eva estava curada e bem.
Foi um bom sonho, mas tinha que se levantar. Sebastian dormira com Angelo por
que a criança estava com dor de garganta e foi um sacrifício fazê-lo dormir. Levantou-se
devagar para não acordar Angelo que dormia em paz, alheio a ideia de que sua
mãe estava doente. Beijou-lhe a testa e saiu do quarto devagar em direção ao
seu.
Ao
entrar em seu quarto, viu que Eva ainda dormia. Parecia em paz, porém
diferente. Seus cabelos negros que antes eram compridos agora eram curtíssimos
por causa do tratamento e a palidez de sua pele davam-lhe um ar mais abatido. O
quarto era grande e caloroso antes, mas agora tinha o aspecto de um quarto de
hospital, com remédios no criado mudo. A pior parte era que estava se
acostumando com isso.
Sebastian
olhava pela janela a grande colina que eram as terras de Eva. Uma grande
extensão verde e bem além, a plantação de uva. Colocava a camisa depois de ter
tomado um banho rápido, abotoando os últimos botões, preparando-se para o dia
que ia enfrentar. Eram tantas as coisas que tinha que fazer: tinha tratar da
venda de vinhos para a Espanha, tinha a reunião com os fornecedores e tinha que
entrar em contato com um médico novo em Roma. Iria ser um dia cheio.
Pegou a gravata em cima da cama e dirigiu-se
até o espelho para colocá-la. Nesse momento parou, observando o homem á sua frente
refletido no espelho. Há alguns anos, quem diria que ele estaria dando nó numa
gravata para trabalhar em algo honesto, ele e seus irmãos. Devia tudo isso á
Eva. Tentar curá-la era o mínimo que podia fazer para recompensá-la.
- Angelo melhorou? – Sebastian ouviu uma
voz feminina meio sonolenta ainda atrás dele.
- Um pouco. – ele respondeu sorrindo ao
virar-se.
Eva estava sentada, recostada nos
travesseiros, esfregando os olhos e bocejando. Ela passou a mão nos cabelos
curtos ajeitando-os displicentemente, era a única coisa que dava para fazer com
eles no tamanho que estavam. Com aperto no coração, Sebastian lembrou-se que
podia ficar horas enrolando os dedos nos cabelos dela.
- Bom dia, amor. – Sebastian disse
aproximando-se e beijou-a profundamente.
- Meu dia fica bem melhor quando começa
assim. – disse ela animada.
- Então deixe-me caprichar.
Beijavam-se intensamente, entregues ao
momento, por um instante esquecendo-se do mundo lá fora, da doença, de tudo o
que o preocupava. Então Sebastian parou e olhou naqueles olhos dourados de Eva.
Ela havia se tornado a dona de seu coração, a amava, e não podia acreditar que
a estava perdendo, não daquele jeito. Afastou-se dela e desviou o olhar
deixando-a confusa. Para disfarçar, ele voltou a mexer na gravata.
- O que foi? – Eva disse confusa.
- Nada. – não a encarava. – Eu tenho
muita coisa para fazer hoje ainda e. . .
- Não precisa fingir que está tudo bem
pra me fazer sentir melhor. – ela disse com voz pesada. – Nunca mentimos um
para o outro, não comece agora. – disse fazendo ele sentir-se mal.
- O que quer que eu diga? Que eu tenho
medo? – disse alterando-se. – Que eu passo noites sem dormir, prestando atenção
se você está respirando? Que eu tenho que me segurar pra não chorar toda vez
que Angelo chama você ou pergunta por que não pode brincar com você.
- Ah querido. . . – disse enternecida se
aproximando.
- Eu não posso perder você. – Sebastian
disse com os olhos marejados.
- Não vai me perder. – ela o abraçou por
trás e ele suspirou.
- Te salvei uma vez, vou te salvar de
novo. – disse determinado.
- Você já me salvou, e não tô falando do
afogamento. – sorria.
Sebastian virou-se, beijou-lhe a testa e
levantou-se. Pegou seu paletó cinza e sua maleta que estavam na poltrona e
despediu-se antes de sair do quarto. Abriu a porta fechando-a atrás de si e
ficou parado ali durante um tempo. Sempre ficava abalado quando tocava nesse
assunto. A amava, e era doloroso demais vê-la a cada dia mais doente, não
suportaria se. . . não, não queria pensar nisso, tinha que ter fé.
Desceu a escada para o primeiro andar daquele
casarão. Depois do casamento, Eva insistiu que deviam ficar na casa dela que
era maior, bem maior. Caminhou para a sala, não estava com fome para tomar café
da manhã. Lá se deparou com Luigi e Pietro, que tinham passado lá para irem
todos juntos ao vinhedo. Também estavam irreconhecíveis de terno.
- Oque fazem aqui tão cedo? – Sebastian
perguntou surpreso.
- Pietro tirou a carta. – disse Luigi
por entre os dentes atrás do irmão.
- Finalmente. – respondeu Sebastian.
- Depois de cinco tentativas, consegui.
– disse Pietro com uma alegria quase infantil. – Agora posso dirigir o carro do
Luigi e faço questão de levar todo mundo para o escritório. – Luigi atrás dele
disfarçava um olhar apavorado.
- Tem certeza? Não acha melhor treinar
um pouco com seu irmão? – Sebastian disse se segurando para não rir.
- Que nada! Eu vim dirigindo de casa até
aqui, pergunta pro Luigi, eu arrebento no volante. - disse indo em direção á
porta, deixando os dois para trás.
- É, literalmente, ele arrebenta. – Luigi
sussurrou inconformado para o amigo.
Sebastian sorriu. As peripécias de
Pietro sempre o alegravam e sorriu também quando viu Luigi fazer o sinal da
cruz antes de entrar no carro que seria conduzido por Pietro.
Por
incrível que pareça, chegaram todos vivos ao vinhedo. A reunião com os
fornecedores fora exaustiva, eles queriam reajustar os preços ao saberem que o
vinhedo estava pretendendo exportar para países fora da Europa. Abutres, é o
que eram. Sebastian estava sentado á mesa de sua sala, ruminando as decisões da
reunião. Achava que tinha conseguido um bom acordo. Em sua juventude não
imaginava que aos trinta anos estaria dirigindo um dos maiores fabricantes de
vinho da Itália. Fazia essas considerações quando Violeta, sua secretaria,
bateu á sua porta.
- Sr. Tomazi, - ela disse devagar. – Os
americanos estão ai de novo.
- De novo? – disse desanimado.
- Devo mandá-los voltar outro dia?
- Mande-os embora. – disse veemente. Ela
ia saindo quando mudou de ideia. – Quer saber, mande-os entrar. Eu mesmo vou
despacha-los.
Violeta saiu, momentos depois os dois
americanos entraram, felizes por serem recebidos. Um era moreno, cabelo muito
curto quase grisalho, usava um terno cinza e se chamava Chester Hill. O outro, mais jovem, era loiro, usava um
terno azul escuro, era Michael Smith, ambos os sujeitos desagradáveis, cada um
carregando uma pasta. Já fazia um tempo que esses dois corretores queriam
vender-lhe fazendas nos Estados Unidos, uma situação que já estava ficando
chata, por que Sebastian não queria saber disso e a insistência dos corretores
já tinha evoluído de irritante para insuportável.
- Boa tarde, Sr. Tomazi. – Chester disse
sorridente.
- Boa tarde, cavalheiros. – Sebastian
respondeu em inglês, usando sua língua mãe pela primeira vez depois de muito
tempo. – Sentem-se.
Os
corretores obedeceram, sentando-se á frente do empresário.
- Gentileza sua nos receber sem hora
marcada. – Michael disse educadamente.
- Eu os recebi por que eu queria deixar
uma coisa bem clara: não estou interessado em suas fazendas.
- Pode ser um bom negócio, pense bem.
- Há ótimas propriedades no Texas.
- Não quero ser grosseiro, mas a
proposta não me atrai. – tentava fazê-los entender. – O clima do Texas não é
bom para as minhas uvas.
- Para as uvas pode ser, mas nunca
pensou em expandir seus negócios? – Chester abriu a maleta e retirou uma
apresentação da proposta por escrito. – Verá que a criação de gado é uma área
que vem crescendo. – entregou os papéis á Sebastian que os pegara com notável
desdém.
- Estas fazendas estão sendo vendidas de
porteira fechada, sabe o que quer dizer? Com a casa, os móveis, o gado, os
funcionários, tudo. Uma fazenda desse tamanho, com tudo isso, pelo preço que
está é um ótimo negócio, quase de graça.
- Temos fazendas em Dallas, Houston,
Austin, Aaron River. . .
- Oque? – disse Sebastian cortando o
corretor, sendo pego de surpresa ao ouvir o nome da cidade que á muito tempo
não ouvia.
- Dallas,
Houston, Austin e Aaron River.
Isso não era possível. Será que seu
passado teimava em persegui-lo? Será que nunca teria paz? Os corretores
perceberam que o empresário ficara estranhamente abalado.
- O senhor está bem? – perguntaram
desconfiados.
- Não, não estou. – foi tudo o que ele
conseguiu dizer.
- Bem, acho melhor voltarmos outro dia,
quando estiver se sentindo melhor. – levantaram-se.
- Ligue-nos se decidir qualquer coisa.
Nosso numero está nos papéis. Boa tarde.
Afastaram-se e iam saindo quando trombaram
com Luigi e Pietro ao abrirem a porta e depois de pedidos de desculpas de
todos, os corretores se foram e os gêmeos entraram, deparando-se com Sebastian
visivelmente abalado.
- Tudo bem? – Luigi perguntou preocupado.
- O
que aconteceu? – Pietro completou. – O que esses caras queriam?
- Me vender fazendas. – disse com o
olhar vago, fazendo os irmãos se entreolharem confusos.
- E por isso você está com essa cara?
Onde que era essa fazenda, no polo norte? – Pietro jamais fora sensível.
- No inferno. – disse com a voz pesada e
olhou para os irmãos. – Em Aaron River.
Isso não podia ser coincidência, era
obra do destino. Como aparecia de repente alguém vendendo propriedades para
ele, justo em Aaron River, sua terra? Palco de acontecimentos tão sofridos em
sua vida. Não. Iria mandar aqueles corretores para o quinto dos infernos, não
queria nada com aquela cidade, nada!
Sebastian passara o resto do dia aflito
pela conversa com os corretores e com dificuldade foi cumprindo suas tarefas no
vinhedo. Durante o caminho de volta para casa tentou acalmar-se. Não queria
parecer nervoso na frente de Eva, ainda mais porque o medico com quem
conversara lhe dera esperança. Eva, essa sim era sua prioridade. “Que se danem meus fantasmas.” pensou.
Quando chegou em casa, Sebastian
deparou-se com Angelo brincando com a babá Sophia na sala, escondendo-se atrás
do sofá. Quando viu o pai, o garotinho veio correndo em sua direção com os
braços abertos e um sorriso do tamanho do mundo. Ah, como o amava. Pegou-o nos
braços e o abraçou apertado, ao que parecia, a garganta dele havia melhorado.
- Oi papai. – disse Angelo.
- Oi
filhote! Estava brincando de que? – Sebastian disse terno.
- Esconde-esconde. – sorriu.
- Mesmo? – ele olhou em volta - E onde
está a mamãe?
- Na cozinha. – sussurrou no ouvido do
pai.
Olhou bem para o menino em seus braços. Era um
menino bem esperto para os seus quatro anos, realmente muito parecido com o
pai, com seus belos olhos verdes vivos. Toda vez que o via assim, alegre e
brincando, rezava para que ele nunca tivesse que passar pelas mesmas coisas que
passou.
- Eu vou lá falar com a mamãe, - o colocara
no chão. – continua brincando com a babá.
- Tá bom, mas o tio Pietro brinca
melhor.
Sebastian riu da sinceridade da criança antes
de afastar-se e dirigir-se á cozinha. De lá vinha um aroma muito bom, que há
muito tempo não sentia. Abriu a porta da cozinha e deparou-se com uma cena que
ficaria guardada na memória: Eva, usando calça jeans, um suéter marrom com
detalhes bege e um avental, na beira do fogão, mexendo um molho de tomate que
parecia delicioso. Ela parecia tão bem, a palidez habitual sumira, estava
corada, ficou parado lá observando sem que ela notasse, lembrando-se da época
antes da doença. Era tudo igual, a única diferença era o cabelo curtíssimo. Por
um momento parecia que ela nunca havia estado doente, que os últimos tempos
foram na verdade um pesadelo ruim, distante, á muito deixado para trás.
- Deixa-me adivinhar, está fazendo
lasanha? – disse denunciando sua presença.
- Oi querido! – ela se aproximou e o
beijou. – Acertou, estou fazendo lasanha.
- Nossa, o que aconteceu com você? –
disse impressionado.
- O dia foi passando, fui me sentindo
bem, e ficar na cama o tempo todo é muito chato. Brinquei com Angelo o dia
inteiro. Nossa, como ele é hiperativo. – voltou a mexer o molho.
- Eu acho ótimo você estar se sentindo
melhor, só não abusa. – ele disse com um ar estranho.
- Como assim? – disse em tom meio
ofendido.
- Ah, só não quero que se exagere. Esse
é um filme que já vimos antes. – disse ele sério.
Ela virou-se para ele encarando-o.
- Eu estou me sentindo ótima. Ia ajudar
um pouco alegria da sua parte. – disse emburrada voltando-se outra vez para o
molho.
- Me desculpa. – disse ele aproximando-se
e abraçando ela por trás. – Eu tive um dia cheio, não liga pra mim. – ele
beijou-lhe a nuca, sentindo o cheiro do cabelo dela, aquele cheiro bom de fruta
do shampoo que ela usava.
- Como foi a reunião com os
fornecedores?
- Não
foi tão ruim quanto um enforcamento, mas eles se esforçaram. – ele brincou.
- E o que mais?- estava interessada.
- Não
quero falar sobre isso. – disse inquieto, afastando-se.
- Os americanos foram lá de novo?
- Foram. – ele respondeu pesadamente.
- E por que você se incomoda tanto com
eles? – não entendia.
- Por que qualquer ligação com aquele
lugar me faz mal. – desabafou – Eles queriam me vender uma fazenda em Aaron
River, onde tudo aconteceu.
- Não quer voltar para lá, para sua
terra? – perguntou.
- Nunca
mais. – negou logo. – Por que eu sei, se eu voltar, a primeira coisa que eu vou
fazer é procurar aquele. . . – conteve-se – aquele homem, e eu não quero isso.
- E a sua “vingança”?
- Talvez,
quando eu ainda estava perdido, nas ruas. – ele meneou a cabeça - Mas agora
tenho você e Angelo e não vou por tudo á perder. - disse sério.
- Não sabe como isso me deixa feliz! –
ela o abraçou. – Não sabe o quanto eu rezei para que você acalmasse seu coração
e não pensasse mais nisso, neles.
- Você me ensinou a ser melhor.
Sebastian a abraçava como se Eva fosse a
única coisa que pudesse espantar seus medos do passado e lhe trazer paz. Mas
Eva sabia que lá no fundo, ele não estava em paz. Só estaria quando acertasse
as coisas.
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